Esganado de fome, ao avistar no
horizonte a área de serviço de Santarém virei-me para a minha acompanhante e
quase mais afirmei do que perguntei:
“Paramos aqui a comer qualquer merda?”
Ela acenou com a cabeça, eu apressei-me
a fazer pisca e desaguei na zona do restaurante.
Estranhará o leitor menos avisado que
tenha usado de linguagem tão desassombrada para com a senhora que seguia no
banco ao meu lado, mas tudo se harmonizará se revelar que a Carolina T. é
natural do Porto e não se choca com trivialidades. Em abono dela, posso ainda acrescentar
que é pessoa que abriga na mesma alma um coração de ouro e um humor com um
concentrado cáustico capaz de desincrustar a ferrugem de um submarino afundado
nas águas de Matosinhos há cem anos.
Nesse dia, viajávamos de Lisboa, onde
tínhamos estado a trabalhar a semana inteira, e como eu ia para o Porto, sendo
ela de lá, partimos em boa companhia, o estômago a dar a uma da tarde, a
ronronar, mas nós ignorando-o para não atrasarmos a saída e a chegada.
Após percorrermos o passeio dos
tristes em volta dos expositores do self-service entrámos de cotovelos em riste com os nossos tabuleiros na zona das mesas, o pescoço
esticado à procura de um local aprazível. Sentados, depois de uma fatia de broa
aviada com rapidez, alcancei então o apaziguamento gástrico que me possibilitou
circunvagar o meu olhar pela sala.
“Não olhe de repente, mas acho que
está ali o Zé, aquele juiz amigo do Carlos e da Isabel...”
“Quem?!”, perguntou ela, virando a
cabeça na direcção do meu olhar.
“O Zé, aquele amigo do Carlos que é
casado com a Marina. Sabe quem é, não sabe?”, insisti, pois a Carolina era
também visita regular da casa desses nossos amigos de Viana do Castelo.
“A Marina sou capaz de reconhecer”,
disse ela sorvendo uma colherada de sopa, “mas a ele acho que não; penso que só o
vi uma vez em Viana, e de raspão...”
“Pois acho que é ele que está ali, com
aquela senhora velhota”, continuei, mirando com insistência o tipo barbudo
e grisalho que, a duas mesas de distância, se afadigava com os talheres.
A Carolina, já de si personalidade
reflexiva, estava concentrada na refeição e mantinha-se monossilábica, deixando
largueza à minha tarefa de fixar o outro tipo, na procura de uma confirmação de
identidade, suposição que se foi robustecendo, pois, às tantas, pareceu-me que
o homem reparara em mim e me olhava com o mesmíssimo ar da pessoa que procura
folhear outra nas suas memórias.
“É de certeza ele”, transmiti à
Carolina, “a senhora é que não sei quem é; talvez a mãe... ou a sogra”.
Ela fitou-me com um olhar pouco
interessado.
Entretanto, na mesa do meu interesse,
o par dera por acabada a refeição e começava a levantar-se. Quando o vi em pé,
calmeirão, o leve ar de urso desorientado e bonacheirão, tive a certeza que era
o Zé da Marina e, à aproximação da nossa mesa, levantei-me célere e
atravessei-me no caminho.
“Olá”, saudei, “então por aqui?”,
cumprimentei, estendendo a mão ao Zé e dirigindo um aceno à senhora.
O tipo parou, apertou-me a mão, sorriu
com familiaridade; encetámos uma conversação sobre o tempo que ia tão mau, o
trânsito; o pararmos ali para comer qualquer coisa, encontrarmo-nos assim...
Sentada à mesa, despachando uma salada de frutas, a Carolina disfrutava a cena
com o interesse suficientemente disfarçado para lhe permitir observar mas não
ser chamada a participar na efusividade circundante.
E, finalmente, eu saquei a carta que
era necessário jogar, aquela que me permitiria cimentar em definitivo as
coincidência felizes daquele encontro:
“Então e a Marina...?”
O homem alvoroçou-se ao ouvir a
palavra, os olhos brilharam-lhe, estendeu umas significantes mãos na minha
direcção, e eu arquivei os meus 100 % de certeza de estar perante a pessoa
certa.
“Olhe que vamos agora mesmo para lá!”,
respondeu, “este mau tempo deu cabo do passadiço, desconjuntou uma série de
tábuas e vamos ver como é que ficou o barco, parece que até houve alguns que
ficaram a boiar, soltos pela marina!”
Despedi-me o mais rapidamente que me
foi possível do entusiasmo do desconhecido, evitando olhar a Carolina que, com
o recolhimento de quem acaba de regressar ao banco depois de tomar a hóstia
sagrada, tinha enterrado a cabeça no queixo na tentativa de adiar por mais uns
segundos a explosão de uma gargalhada.
© Fotografia de Pedro Serrano, Matosinhos, 2011.
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