12 novembro 2011

MARINA, MARINA!


Esganado de fome, ao avistar no horizonte a área de serviço de Santarém virei-me para a minha acompanhante e quase mais afirmei do que perguntei:
“Paramos aqui a comer qualquer merda?”
Ela acenou com a cabeça, eu apressei-me a fazer pisca e desaguei na zona do restaurante.
Estranhará o leitor menos avisado que tenha usado de linguagem tão desassombrada para com a senhora que seguia no banco ao meu lado, mas tudo se harmonizará se revelar que a Carolina T. é natural do Porto e não se choca com trivialidades. Em abono dela, posso ainda acrescentar que é pessoa que abriga na mesma alma um coração de ouro e um humor com um concentrado cáustico capaz de desincrustar a ferrugem de um submarino afundado nas águas de Matosinhos há cem anos.
Nesse dia, viajávamos de Lisboa, onde tínhamos estado a trabalhar a semana inteira, e como eu ia para o Porto, sendo ela de lá, partimos em boa companhia, o estômago a dar a uma da tarde, a ronronar, mas nós ignorando-o para não atrasarmos a saída e a chegada.
Após percorrermos o passeio dos tristes em volta dos expositores do self-service entrámos de cotovelos em riste com os nossos tabuleiros na zona das mesas, o pescoço esticado à procura de um local aprazível. Sentados, depois de uma fatia de broa aviada com rapidez, alcancei então o apaziguamento gástrico que me possibilitou circunvagar o meu olhar pela sala.
“Não olhe de repente, mas acho que está ali o Zé, aquele juiz amigo do Carlos e da Isabel...”
“Quem?!”, perguntou ela, virando a cabeça na direcção do meu olhar.
“O Zé, aquele amigo do Carlos que é casado com a Marina. Sabe quem é, não sabe?”, insisti, pois a Carolina era também visita regular da casa desses nossos amigos de Viana do Castelo.
“A Marina sou capaz de reconhecer”, disse ela sorvendo uma colherada de sopa, “mas a ele acho que não; penso que só o vi uma vez em Viana, e de raspão...”
“Pois acho que é ele que está ali, com aquela senhora velhota”, continuei, mirando com insistência o tipo barbudo e grisalho que, a duas mesas de distância, se afadigava com os talheres.
A Carolina, já de si personalidade reflexiva, estava concentrada na refeição e mantinha-se monossilábica, deixando largueza à minha tarefa de fixar o outro tipo, na procura de uma confirmação de identidade, suposição que se foi robustecendo, pois, às tantas, pareceu-me que o homem reparara em mim e me olhava com o mesmíssimo ar da pessoa que procura folhear outra nas suas memórias.
“É de certeza ele”, transmiti à Carolina, “a senhora é que não sei quem é; talvez a mãe... ou a sogra”.
Ela fitou-me com um olhar pouco interessado.
Entretanto, na mesa do meu interesse, o par dera por acabada a refeição e começava a levantar-se. Quando o vi em pé, calmeirão, o leve ar de urso desorientado e bonacheirão, tive a certeza que era o Zé da Marina e, à aproximação da nossa mesa, levantei-me célere e atravessei-me no caminho.
“Olá”, saudei, “então por aqui?”, cumprimentei, estendendo a mão ao Zé e dirigindo um aceno à senhora.
O tipo parou, apertou-me a mão, sorriu com familiaridade; encetámos uma conversação sobre o tempo que ia tão mau, o trânsito; o pararmos ali para comer qualquer coisa, encontrarmo-nos assim... Sentada à mesa, despachando uma salada de frutas, a Carolina disfrutava a cena com o interesse suficientemente disfarçado para lhe permitir observar mas não ser chamada a participar na efusividade circundante.  
E, finalmente, eu saquei a carta que era necessário jogar, aquela que me permitiria cimentar em definitivo as coincidência felizes daquele encontro:
“Então e a Marina...?”
O homem alvoroçou-se ao ouvir a palavra, os olhos brilharam-lhe, estendeu umas significantes mãos na minha direcção, e eu arquivei os meus 100 % de certeza de estar perante a pessoa certa.
“Olhe que vamos agora mesmo para lá!”, respondeu, “este mau tempo deu cabo do passadiço, desconjuntou uma série de tábuas e vamos ver como é que ficou o barco, parece que até houve alguns que ficaram a boiar, soltos pela marina!”
Despedi-me o mais rapidamente que me foi possível do entusiasmo do desconhecido, evitando olhar a Carolina que, com o recolhimento de quem acaba de regressar ao banco depois de tomar a hóstia sagrada, tinha enterrado a cabeça no queixo na tentativa de adiar por mais uns segundos a explosão de uma gargalhada.    

© Fotografia de Pedro Serrano, Matosinhos, 2011.

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