03 dezembro 2011

Contigo en la distancia (2.º andamento)


Em termos musicais julgava que Cuba era caso único, que não existia outro país no mundo onde, sem mexer um dedo, uma pessoa passasse o dia imerso em música, em que a música fosse tão inseparável do batimento vital dos habitantes.
Até escrevi por aqui um texto sobre isso (Contigo en la distancia), mas enganei-me na exclusividade do território e a palmatória chegaria à minha mão sete anos depois, num frio dia de fim de Outono...
Numa gelada noite de Novembro, saído de um avião a hélice que me trouxera de Munique, apanhei um táxi para o centro de Leipzig onde iria passar o fim de semana. Leipzig é uma cidade da antiga Alemanha de Leste e é impossível passear pelas suas ruas, sobretudo ao cruzar a antiga sede da Stasi (a terrível e eficaz polícia política do regime comunista da defunta Alemanha Democrática), sem sentir um calafriozinho e dirigir uma prece a John Le Carré.
Leipzig é uma urbe tranquila, lembrando um pouco o Porto no seu tom geral acinzentado, nos seus edifícios de pedra inteira. O trânsito, pelos padrões europeus, é escasso e silenciosos eléctricos atravessam a cidade a toda a hora, ao minuto previsto no horário. E, a pouco e pouco, a gente começa a reparar: ponte Beethoven, avenida Gustav Mahler, escola de música Félix Mendelssohn... Tal como já sucedia nos séculos XVII e XVIII, em Leipzig as igrejas continuam a ser o grande centro musical da cidade, eu que o diga que em dois dias assisti a dois concertos em duas igrejas e, se tivesse ficado mais tempo, poderia continuar nesse regime de modo indefinido, pois todas as semanas há um programa musical diferente.
Nesta época do ano às quatro e meia já é noite e a foto da ponte Beethoven (aqui ao lado) foi tirada às cinco da tarde por umas mãos que ficaram geladas só pelo breve minuto que ficaram fora das luvas de lã polar. Depois, fomos à missa das seis da tarde na igreja de São Tomás, um edifício tão descomunal que, pelas nossa bitola arquitectónica, mais parece uma catedral e onde, entre 1727 e até à sua morte em 1750, João Sebastião Bach foi o mestre da música que se organizava pela cidade e principal instrumentista do órgão que ainda existe em São Tomás.
Apesar de duraram uma hora, as missas luteranas são menos chatas do que as nossas e bastante mais inspiradoras. De todo o tempo da cerimónia, o padre fala, no máximo, uns quinze minutos, alguns dos quais para enquadrar e anunciar as peças musicais que vamos ouvir de seguida. Durante o resto do tempo os fiéis escutam música pura e se uns rezarão com a banda sonora ideal, outros perder-se-ão em pensamentos vários e vagos e os restantes ouvirão apenas música. Música de Bach, naturalmente, algumas daquelas cantatas que ele produzia ao ritmo de uma por semana, mas também peças de colegas seus da época e, ainda, autores contemporâneos, interpretadas nesse dia por um coro de rapazitos cujas vozes angelicais e os agudos desumanos nos transportavam para um reino que não é decididamente deste mundo.

Confortados, percorríamos, silenciosos, as antigas ruas da cidade em direcção ao nosso jantar quando reparei num cartaz afixado na frontaria da igreja de S. Nicolau.
“Que engraçado! A semana passada comprei em Lisboa a Missa de Requiem do Verdi – apeteceu-me ver como seria um requiem do século XIX – e agora olha para ali...”
Ele observou com cuidado o cartaz que anunciava, para o dia seguinte, a Missa de Requiem de Giuseppe Verdi, às dezassete horas, na igreja de S. Nicolau.
“Queres ir, pai?”, perguntou.
Fomos. Aquilo durou duas horas, que passaram sem se dar conta, e na nave da igreja, invadindo a zona do altar, uma multidão de mais de cem pessoas, entre músicos, maestro e cantores, derramou sobre a igreja cheia a obra italiana que, aqui e ali, faz lembrar uma ópera. E, às nove e meia da noite, estávamos já a descer as escadas de uma cave onde assistimos a um belo concerto de jazz dado pelos Apfelkomp(l)ott Compota de Maçã, um trio de saxofone-contrabaixo-bateria formado por colegas do Zé João na escola de música Felix Mendelssohn.
No dia seguinte, a meio de um domingo que já anoitecia, despedi-me dele à porta da gigantesca estação de comboios de Leipzig. Pouco depois estava no aeroporto, a aguardar o meu avião para Frankfurt, de onde teria voo de regresso a casa.
Quando o avião levantou voo, colei a cara ao vidro crescentemente esfriado da janelita, vendo as luzes de Leipzig cada vez mais ao longe e o negrume da noite fechando-se sobre aquele lugar perdido no mundo onde ficava, entregue a si próprio, o meu filho.

© Fotografias: De cima para baixo: (1) Máquina fotográfica usada pela Stasi, fotógrafo desconhecido; (2) (3) (4) (5), Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.






1 comentário:

  1. Vê-se que ainda não foste a New Orleans.
    Não conheço Cuba nem Leipzig e estive em New Orleans antes do Katrina.
    Ao que sei o Bairro Francês voltou ao que era. E era um espectáculo diário de jaznas ruas e praças,para não falar da animação das noites de 6.ª e sábado.
    Tens que lá ir.

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