Camuflado no horizonte, Santo Antão
avista-se logo que, aterrados na ilha de São Vicente, descemos em direcção à
cidade do Mindelo. A outra ilha lá está, nas traseiras de um cenário de mar que
no dia da chegada se agitava verde de raiva e espumado nos cantos da boca. Mas
os cambiantes da luz sobre os relevos da ilha vizinha produzem no céu uma
paleta de brancos, lilases e ocres que se confundem com as imprecisões do
horizonte, uma miragem que por instantes se revela como terra à vista para logo
se esbater na bruma mística dos arquipélagos.
Se um dia for a São Vicente, visitar a
incontornável cidade do Mindelo, não deixe de ir a Santo Antão, fique mais um
dia ou dois para visitar Santo Antão como deve ser. Não se deixe preguiçar por
não haver avião para Porto Novo ou para a Ponta do Sol nem intimidar pela
viagem de barco entre as duas ilhas, pois durante
a escassa hora que dura a travessia, o ferry ronrona, ensonado como os
passageiros, e o nosso destino mantém-se sempre à vista, o que reforça uma
sensação de segurança. E, depois, se é do tipo enjoativo, tem sempre à mão o
saquinho de plástico que uma simpática menina lhe oferece ao entrar no barco e
que a maioria das pessoas, por inútil para o fim a que se destina, acaba por
usar para guardar os restos de alguma refeição leve consumida a bordo.
Ao paladar, Santo Antão é como uma
daquelas pastilhas em que uma metade é de cacau amargo e a outra de chocolate
de leite. O que vemos, quando o barco se vai aproximando da ilha, é terra
árida, em nada diferente da ilha que acabámos de deixar, como se um vulcão tivesse
arrefecido apenas na semana passada e nada tivesse deixado senão a amarga tonalidade
do basalto solidificado, uma memória de cinzas. No nosso caso, a linha
divisória entre a metade amarga e a doce tem o significativo nome de Delgadinha, uma escarpa a altitude de
águias, em que a largura do terreno mal chega para a faixa da estrada de
empedrado onde zigzagueia o nosso transporte; crista que, de um e do outro lado
dos retrovisores laterais, mergulha em ravinas que nos provocam a nostalgia
própria dos seres desasados. Sim, como o gume estreito de uma faca, a
Delgadinha corta-nos a respiração e dá o mote para definir a ilha de Santo Antão,
uma majestosa filigrana de rocha suspensa no mar.
“Quem não gostar de rochas e montanhas
é melhor não vir a Santo Antão”, dizia-me o Paulo puxando o travão de mão no
meio da estrada, para que saíssemos do jipe a espreitar os vales profundos e as
formigas que, por carreiros pendurados no ar se dirigiam para as suas casas com
vista para o infinito.
Continuámos viagem, parando aqui e ali
para dar uma boleia, como deuses assistindo ao esfarrapar das nuvens que, aos
nossos pés, se rasgavam contra cordilheiras afiadas como dorsos de dinossauros.
De surpresa em surpresa mal acreditava estar em África, pois a vegetação ia-se
adensando em matas de pinheiros, eucaliptos, criptomérias e outras árvores dos
climas temperados. E, lá em baixo, faiscando num azul esmaltado que contrasta
com o anilado anémico do céu, sempre o mar, a recordar-nos que tudo podia não
ser mais do que um sonho que uma vaga deixou a descoberto por agora.
Anoitecera, a paisagem desapareceu.
Desfiz a mala pelos armários do meu quarto da residencial Top d’Coroa (o nome de um monte de formato curioso da ilha) e fui
jantar um polvo guisado ao Cantinho d' Amizade, o sítio adequado para se comer na povoação da Ribeira Grande.
Adormeci no meio do pessoano latir esparso dos cães na noite que, mais do que
perturbar, pontuavam o silêncio.
No dia seguinte, como quem fora mudado
de cenário por espíritos benfazejos e brincalhões, acordei entre mangueiras,
jacarandás, bananeiras, tufos de buganvílias e plantações de cana-de-açúcar.
Mas isso é a outra metade desta história que, em rubrica fora do local habitual,
dedico ao Paulo Graça, um natural de Santo Antão que, com hospitaleira
naturalidade, me recebeu e mostrou a sua terra.
© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.
Quando lhe perguntei: "E Santo Antão? Dizem que é lindo!", respondeu-me: "Ana Cristina, é de cair para o lado! Deslumbrante!". Obrigada por este bocadinho. Mesmo sem conhecer ao vivo, direi: "Tem toda a razão".
ResponderEliminarBeijo
@ Ana Cristina: Tem de ir lá, aliás agora tem lá gente conhecida e o Paulo gostará de a ver, tenho a certeza. Bj
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