A avó do Paulo teve dez filhos, tem
vinte e cinco netos e sete bisnetos vivos. Foi também ela que criou o Paulo,
pois a mãe emigrou para Espanha quando ele era pequenino, onde ainda vive.
Todos os outros tios do Paulo, aliás, estão diasporizados por esse mundo fora:
quatro, de norte a sul em Portugal; um na Dinamarca, os restantes no Luxemburgo,
Estados Unidos...
Conheci-a no Hospital de Santo Antão.
Tínhamos acabado de regressar de tomar um café quando vi o Paulo dirigir-se a uma
senhora que estava ao balcão da recepção. Desconfiei que fossem parentes quer
por lhes achar uma parecença, quer pelo modo carinhoso com que a envolvia,
mesmo ali em pleno espaço público do hospital onde é um dos médicos mais
importantes. Abraçava-a, fazia-lhe festas na cara e eu, entre o surpreso e o
divertido, observava tudo a uns recatados metros. Depois ele avançou para mim
de braço dado com a senhora, disse:
“Queria apresentar-lhe a minha avó...”
Não pude trocar muitas palavras com
ela, uma vez que que, nos seus setenta e seis anos, só se expressava em
crioulo, ainda para mais o de Santo Antão, que é bastante cerrado e diferente
do badio de Santiago, aquele a que os
meus ouvidos estão mais acostumados. Mas isso não foi muito importante, pois
nunca vi ninguém tão expansivamente afectuoso (de sorriso permanente e um
brilho nos olhos, semicerrados por pálpebras pesadas), e que exprimisse tanta
satisfação por estar neste mundo dos vivos! Ela viera a uma consulta e fomos
levá-la lá fora até ao transporte que a devolveria a casa, a uns seis km dali,
na aldeia onde nasceu o Paulo. Na despedida, o neto prometeu que, à tarde,
passaria por casa dela. Despedi-me também, com um daqueles longos apertos de
mão africanos em que ficamos a olhar para a pessoa de que nos despedimos de mão
na mão, num acumular de tempo que seria considerado insuportável por padrões
europeus.
“Obrigado”, dizia-me ela com um
sorriso rasgado e terno, “muito obrigado”, e eu sem fazer ideia de quê.
À tarde, ao darmos por terminado o
trabalho desse dia, o Paulo perguntou se preferia que me deixasse na
residencial onde estava hospedado ou se gostaria de ir com ele ver a avó e a
casa onde tinha nascido, na localidade de Marrador.
A casa onde o Paulo veio a este mundo
é toda azul e tem uma pequena capela como companhia, também ela toda azul, excepto
pela cruz no telhado. Para se chegar à residência sobem-se uns degraus de pedra
sobre os quais espreitam as largas e brilhantes folhas das bananeiras que Dona
Maria Antónia, a avó do Paulo, rega quinzenalmente. Ao cimo das escadas
esperava-nos o prolongamento do sorriso benfazejo que conhecera de manhã no
hospital e, ao seu lado, um neto que ali mora e dois bisnetos, sentados, muito
juntos e quietos, no banco de alvenaria que bordeja o terraço em frente à porta
de casa. No rebordo das costas desse banco, separando-o do quintal de
bananeiras que verdejava em baixo, uma comprida floreira enchia-se dos mimos
que Dona Antónia ali faz crescer para companhia: rosas, uma sementes de maracujá
que aguardam o eclodir da terra, pés de manjerona; mais além uma tangerineira,
uma promessa de limoeiro.
Ao ver-me esmagar entre os dedos e
cheirar uma folha da manjerona, ela quis saber como se chamava a planta no meu
país, usou o Paulo como intérprete mas eu reconhecera a palavra, respondi antes
da tradução:
“Manjerona, como aqui. Também temos lá
uma planta de folha mais pequena que cheira assim, como esta, e a que chamamos
manjerico”.
Ela sorria, olhando-me dos olhos vivos
espreitando por trás das pálpebras; dizia ao Paulo:
“O teu amigo tem uma cabeça feliz...”
Percebi as palavras mas não o
significado da expressão, o Paulo explicou que ela se referia ao modo rápido como
eu captava as coisas mesmo sem perceber a língua. Mas, confesso, não foi assim
tão difícil, pois, porventura percebendo o risco de distância de estar entre cinco
pessoas que falavam idioma diferente do meu, a velha senhora, sempre que
dialogava comigo, pegava-me na mão e assim a ia mantendo como que a suprir esse
desentendimento por outro meio de expressão; como se eu, cego para as palavras,
pudesse ser guiado até ao entendimento pelo contacto físico.
Paulo e D. Maria Antónia. |
Na hora da partida, quando nos
despedimos, foi com a sensação de me estar a ir embora de um sítio familiar e,
aí, já entendi melhor os repetidos obrigados que ela nos dirigia e o “boa-noite”
final com que me saudou à janela do jipe, apesar de o sol ainda brilhar em
plena luz sobre a terra regada.
© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.
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