20 março 2013

UMA CABEÇA FELIZ


A avó do Paulo teve dez filhos, tem vinte e cinco netos e sete bisnetos vivos. Foi também ela que criou o Paulo, pois a mãe emigrou para Espanha quando ele era pequenino, onde ainda vive. Todos os outros tios do Paulo, aliás, estão diasporizados por esse mundo fora: quatro, de norte a sul em Portugal; um na Dinamarca, os restantes no Luxemburgo, Estados Unidos...
Conheci-a no Hospital de Santo Antão. Tínhamos acabado de regressar de tomar um café quando vi o Paulo dirigir-se a uma senhora que estava ao balcão da recepção. Desconfiei que fossem parentes quer por lhes achar uma parecença, quer pelo modo carinhoso com que a envolvia, mesmo ali em pleno espaço público do hospital onde é um dos médicos mais importantes. Abraçava-a, fazia-lhe festas na cara e eu, entre o surpreso e o divertido, observava tudo a uns recatados metros. Depois ele avançou para mim de braço dado com a senhora, disse:
“Queria apresentar-lhe a minha avó...”
Não pude trocar muitas palavras com ela, uma vez que que, nos seus setenta e seis anos, só se expressava em crioulo, ainda para mais o de Santo Antão, que é bastante cerrado e diferente do badio de Santiago, aquele a que os meus ouvidos estão mais acostumados. Mas isso não foi muito importante, pois nunca vi ninguém tão expansivamente afectuoso (de sorriso permanente e um brilho nos olhos, semicerrados por pálpebras pesadas), e que exprimisse tanta satisfação por estar neste mundo dos vivos! Ela viera a uma consulta e fomos levá-la lá fora até ao transporte que a devolveria a casa, a uns seis km dali, na aldeia onde nasceu o Paulo. Na despedida, o neto prometeu que, à tarde, passaria por casa dela. Despedi-me também, com um daqueles longos apertos de mão africanos em que ficamos a olhar para a pessoa de que nos despedimos de mão na mão, num acumular de tempo que seria considerado insuportável por padrões europeus.
“Obrigado”, dizia-me ela com um sorriso rasgado e terno, “muito obrigado”, e eu sem fazer ideia de quê.
À tarde, ao darmos por terminado o trabalho desse dia, o Paulo perguntou se preferia que me deixasse na residencial onde estava hospedado ou se gostaria de ir com ele ver a avó e a casa onde tinha nascido, na localidade de Marrador.
A casa onde o Paulo veio a este mundo é toda azul e tem uma pequena capela como companhia, também ela toda azul, excepto pela cruz no telhado. Para se chegar à residência sobem-se uns degraus de pedra sobre os quais espreitam as largas e brilhantes folhas das bananeiras que Dona Maria Antónia, a avó do Paulo, rega quinzenalmente. Ao cimo das escadas esperava-nos o prolongamento do sorriso benfazejo que conhecera de manhã no hospital e, ao seu lado, um neto que ali mora e dois bisnetos, sentados, muito juntos e quietos, no banco de alvenaria que bordeja o terraço em frente à porta de casa. No rebordo das costas desse banco, separando-o do quintal de bananeiras que verdejava em baixo, uma comprida floreira enchia-se dos mimos que Dona Antónia ali faz crescer para companhia: rosas, uma sementes de maracujá que aguardam o eclodir da terra, pés de manjerona; mais além uma tangerineira, uma promessa de limoeiro.
Ao ver-me esmagar entre os dedos e cheirar uma folha da manjerona, ela quis saber como se chamava a planta no meu país, usou o Paulo como intérprete mas eu reconhecera a palavra, respondi antes da tradução:
“Manjerona, como aqui. Também temos lá uma planta de folha mais pequena que cheira assim, como esta, e a que chamamos manjerico”.  
Ela sorria, olhando-me dos olhos vivos espreitando por trás das pálpebras; dizia ao Paulo:
“O teu amigo tem uma cabeça feliz...”
Percebi as palavras mas não o significado da expressão, o Paulo explicou que ela se referia ao modo rápido como eu captava as coisas mesmo sem perceber a língua. Mas, confesso, não foi assim tão difícil, pois, porventura percebendo o risco de distância de estar entre cinco pessoas que falavam idioma diferente do meu, a velha senhora, sempre que dialogava comigo, pegava-me na mão e assim a ia mantendo como que a suprir esse desentendimento por outro meio de expressão; como se eu, cego para as palavras, pudesse ser guiado até ao entendimento pelo contacto físico.
Paulo e D. Maria Antónia.
Na hora da partida, quando nos despedimos, foi com a sensação de me estar a ir embora de um sítio familiar e, aí, já entendi melhor os repetidos obrigados que ela nos dirigia e o “boa-noite” final com que me saudou à janela do jipe, apesar de o sol ainda brilhar em plena luz sobre a terra regada. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

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