Eu roçava os vinte anos e, embora
tímido como um gamo, era um tanto arrojado nos procedimentos.
Trémulo de admiração, descobrira
Fernando Pessoa por esses dias, gostava especialmente de um poema, atribuído a
Álvaro de Campos, que se iniciava com um:
Lembro-me
bem do seu olhar.
Ele
atravessa ainda a minha alma.
Como
um risco de fogo na noite.
e casava bem com a minha sensibilidade
de então. Andava com ele em permanência na cabeça.
Nessa tarde, como em muitas outras
tardes, estava sentado à mesa de tampo de mármore de um café, uma sebenta da
faculdade aberta sob os olhos, aguardando a minha atenção ao conteúdo. Mas,
sentada na mesa em frente, estava, lendo também, uma maravilhosa personagem, e
de cada vez que mexia as mãos para virar uma página – do que só poderia ser poesia
– ou acomodar uma madeixa de cabelo, a minha percepção ganhava asas. Era ela
bela e delicada como uma figurinha de marfim e os gestos daquelas mãos,
esguias, brancas, clamavam por uma sonata, um soneto, uma miniatura a óleo… Mas
não me ajeitando com pinceis, nem tendo por ali a porra de um piano, comigo só restavam
as ideias e as palavras por dizer (como diria o próprio Pessoa). Então
levantou-se, desapareceu, etérea, para os lados do quarto de banho das senhoras…
À época ela passeava-se pelos
corredores inacessíveis dos vinte e cinco anos, ou por aí, e eu, como disse, roçava
os vinte – não me atreveria nunca a enfrentar esses degraus de incerteza! Então
sarrabisquei – em letra quase de imprensa para ter a certeza de ser bem entendido
– uma frase inspirada que, célere como um cupido, lhe deixei sobre o livro
abandonado na mesa. Dizia:
Ao
vê-la, ao observar as suas mãos, assalta-me uma emoção que alguns poderiam,
grosseiramente, apelidar de estética…
E voltei ao lugar, olhando em volta a
controlar possíveis atenções de outros clientes daquele escaninho do café. Uns
minutos mais tarde ela reapareceu, reparou em si própria no espelho que forrava
a parede por cima da mesa, sentou-se. Depois apercebeu o papelito encrespado,
alisou-o, leu-o, a surpresa e um leve rubor tomaram-lhe conta da face. Quando
levantou a cabeça para olhar em volta, identificar o criminoso, já eu,
desinteressante e anónimo, estava abismado nas páginas áridas da minha sebenta.
© Fotografia de Pedro Serrano, Braga, 2010.
Não sei se lhe chamaria tímido, ou simplesmente sonso!
ResponderEliminar@ Anónimo: Call me any name you like I will never deny it (Bob Dylan, "Farewell Angelina")
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