23 junho 2014

A BALADA DE MARILYN MARLEN (Parte 2)

Na Grécia cada pedra é eloquente e o mar está presente em todo o lado, como se o país fosse um estilhaçado de ilhas.
Não admira, por isso, que os filhos de Marilyn, ela com dezassete e ele com dezasseis anos, sonhem em trabalhar no mar. A rapariga quer ser capitão de navio e o rapaz, que não quer perder muito tempo com estudos, mecânico naval. A mãe tem uns contactos na marinha mercante, espera poder a vir ajudar.
Tudo isto nos contou ela numa esplanada sobre o porto do Pireu, enquanto bebíamos mazagrans frappés sob a sombra tutelar de um dos dois gigantescos leões que flanqueiam a entrada do porto. Apesar da  majestade da condição e do tamanho da estátua é um leão de ar triste, talvez por prever que a sua presença ali iria eternizar-se sob a forma de uma réplica, já que a sua persona original está no Museu Britânico, envidraçado e longe da vista do mar.
Mas adianto-me na continuação da história do conhecimento de Marilyn-Marlen, saltei, pelo menos, o episódio do nosso passeio por Atenas.
Antes de seguir para as ilhas acalentávamos a intenção de um giro por Atenas, dar, pelo menos, um salto à Acrópole sob cujos pinheiros eu tinha dormido uma noite em 1976, mas que, escandalizado pelo excesso de turistas, não visitei na época. Assim, peguei no cartão que a taxista nos deixara no final da viagem em que nos transportara do aeroporto para o hotel do Pireu, e telefonei a combinar um frete.
Marlen apanhou-nos sobre o cedo, pois, como ela dizia e eu sabia, o calor que faz lá cima, na Acrópole, é deificamente desumano a partir do meio da manhã! Ainda recordava essa manhã do quase fim de Setembro em que acordara, pouco passaria das seis da madrugada, com a luz incidente do sol e os berros dos guardas para que nos puséssemos a andar dali. Raios, a Acrópole, mesmo que do lado de fora das vedações, não era nenhum dormitório para turistas pé-descalço!
Quando nos deixou entre os pinheiros mansos na base do enorme rochedo onde pousa o Parténon e velam as Cariátides, Marlen calculou em cerca de hora e meia o tempo do passeio. Ela ficaria ali, no táxi, à nossa espera: os bilhetes de acesso aos monumentos eram caros e, sobretudo, era impossível estacionar naquele mar de autocarros.
Na ideia dela deveríamos optar por ver, assim daquela forma abreviada e condensada numa manhã, a Acrópole, o templo de Zeus, a antiga Agora, o Estádio, onde sempre se iniciam quaisquer Jogos Olímpicos (a chama é conservada e guardada na Grécia), e o render da guarda aos pés das escadas do Parlamento. Achámos bem o esboço, apenas lhe disse não estarmos muito interessados no render da Guarda, nos soldados... Ah, mas Marlene tinha uma obsessão pelo render da Guarda, achava aquilo ao mesmo nível de interesse de qualquer uma das outras velhas grandezas gregas. E não descansou enquanto não obteve informações detalhadas sobre a cerimónia, os horários, e não nos despejou numa vista privilegiada sobre a dança, com algo do soprado da pose de pavões, da troca de dois soldados exaustos usandos saias por dois soldados frescos usando saias.
Marlen andou connosco das nove da manhã quase às quatro da tarde, deixando-nos sozinhos e à vontade nas nossas voltas, mas aproveitando o tempo em que nos deslocávamos entre ruínas para nos pôr a par dos pormenores históricos relacionados com os monumentos e intercalar nessas explicações de guia mais um milhão de pormenores sobre a Grécia actual, Atenas, as suas origens arménias e o seu quotidiano como taxista, cidadã e mãe de família.     
No dia seguinte iríamos para a ilha de Hydra e ela quis saber a que hora partia o nosso barco, se precisávamos de transporte até ao ferry. Que não, respondi, o hotel, já por isso escolhido, era a menos de dez minutos a pé do porto, o caminho a descer e as nossas bagagens leves. Ela ficou absorta por uns momentos e disse:
“A essa hora estou livre: venho aqui buscar-vos e levo-vos ao barco, à minha conta. E, se estiverem para aí, gostava de vos oferecer um café antes da partida...”
É por isso que estamos, então, sentados numa esplanada sob o leão triste, rodando as palhinhas nos copos altos do mazagran e partilhando pedaços de existência com uma taxista arménia, de nome duplo, antecedentes americanos e, finalmente, adoptada pelos gregos.
Antes de partir para Hydra combinámos com ela o regresso, pois íamos precisar de táxi para ir ficar a um hotel junto ao aeroporto, para apanhar um voo curto até Thyra, também conhecido por Santorini. Antes de se despedir de nós com um beijo à portuguesa ela perguntou se, nesse dia, poderia trazer a filha. Tinha-lhe falado em nós e ela ficara com curiosidade de nos conhecer.
Saltemos as escadas de Hydra e uns dias no tempo e agora é o momento, ao cair da tarde, em que o nosso ferry, partido de Hydra e com paragem na ilha de Paros, se prepara para acostar no porto do Pireu. No cais, Marlen está à nossa espera, acompanhada da filha, do filho e da namorada do filho.
“Como vamos caber todos no táxi?!”, pensei.
Mas não, o filho (um rapaz de perfil completamente grego e abespinhada timidez) e a namorada estavam ali só para nos conhecer. A filha, essa sim, seguiu connosco no lugar do pendura. Falava mal inglês, pelo que a mãe, depois de uma mais uma saraivada de diálogo em inglês trocada entre nós por entre os encostos dos assentos do táxi se virava para a filha, como uma ave que mastigou comida para a regurgitar na boca da cria, para lhe confiar, em grego, o que acabara de ser dito. Olhando de lado, no seu perfil exacto de estátua, o nariz nascendo a direito da testa e seguindo por ali abaixo sem ângulos ou mossas, a rapariga bebia as palavras e os gestos generosos de Marlene enquanto seguíamos pela noite fora a caminho do nosso destino imediato. 
© Fotografias de Pedro Serrano, Grécia, Junho 2014. De cima para baixo: (1) Acrópole; (2) (3) (4) Atenas.

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