Se a nossa mala tivesse chegado, ou
sido recolhida, da passadeira rolante dez segundos mais cedo o automóvel que
nos caberia na bicha para os táxis seria o que estaria um lugar à frente
daquele que acabou por nos calhar. Se, pelo contrário, a mala tivesse sido
vomitada na passadeira dez segundos mais tarde, já o táxi que nos estaria
destinado em sorte ia ser um cuja frente estava encostada às traseiras daquele
que efectivamente parou à nossa frente e esse, o que nos calhou, teria já
disparado pela noite com outros passageiros que não seríamos nós mas sim
aqueles que nos precediam na fila...
Com táxis, já se sabe, a gente tem de
ter o maior cuidado em todo o mundo, sobretudo em países em vias de
desenvolvimento onde não se fala a nossa língua. Um dos princípios básicos é
exigir que ponham o taxímetro a funcionar e uma cautela elementar é, antes de o
transporte arrancar, indagar do motorista quanto nos vai custar o serviço e
ajustar com ele um valor.
Foram esses princípios que pratiquei
com a mulher que saiu do táxi e se dirigiu para as traseiras de modo a abrir a
bagageira e aí enfiar as nossas parcas bagagens. Era uma tipa morena, de longo
e tufado cabelo negro e o preço que me indicou era sobreponível àquele que
tinha sido apontado como razoável pelo serviço de informações do aeroporto.
“É à volta disso”, disse ela, “mais
coisa menos coisa; no entanto não lhe posso garantir o valor exacto: depende do
que marcar o taxímetro...”
Gostei do pormenor que referia o
taxímetro, pois havia já ali uma intenção de ligar o taxímetro; gostei o ser
uma mulher o chauffeur que nos havia calhado (são sempre mais civilizadas do
que os homens na conversa e menos agressivas no guiar); gostei do ar geral, não
se detectava uma má onda na aura dela, o que é sempre bom para início de contrato.
E lá nos metemos nas traseiras do táxi, para uma viagem que ia durar uns bons
três quartos de hora. Depois ela perguntou se queríamos que fechasse as janelas
e ligasse o ar condicionado. Estava uma noite tão maravilhosa, com um ar tão
tépido que lhe disse que não, que preferia ir de janelas abertas.
“Óptimo”, respondeu, olhando pelo
retrovisor, “também prefiro ir assim. Esteve um dia abrasador, e agora sabe bem
este fresco na cara...”
E lá fomos pela noite, os canudos do
cabelo dela volteando loucamente pela auto-estrada, forçando-a constantemente a
uma tentativa de o afastar da cara.
Atenas é cidade imensa (tem seis
milhões de habitantes), pelo que fomos circunvagando
por estradas desconhecidas, passando por cenários que logo eram chupados para o
esquecimento, viadutos, letreiros de néon feitos com letras tiradas
directamente de compêndios de Física e de Matemática e cujo sentido nos era,
assim de repente, impenetrável. A não ser quando passávamos pelos logótipos
universais e algo tristonhos, que recordavam a monotonia do mundo, da Ikea, do
Lidl, do Carrefour, da Vodafone. Também ali...
Entretanto ela quis saber, conversa de
taxista mais do que universal, se era a primeira vez que estávamos na Grécia,
de onde éramos... Decidi baralhar um pouco o jogo e, inclinando-me para a
frente, para me fazer ouvir por sobre o estralejar da ventania que soprava
pelas quatro janelas escancaradas, obriguei-a a adivinhar, fornecendo pistas:
“Somos de um país à rasca, como o
vosso, com uma troika em cima de nós, como vocês...”
“Espanha”, disse ela.
“Não, mas está quente...”
Após ter chegado à solução, chegou a
nossa vez de querer saber algo sobre ela, pois falava um inglês tão fluente que
tinha de haver ali um mistério face à versão primeiros-socorros e ao macarrónico
sotaque do inglês comum aos povos do sul. Era Libanesa de nascimento (o que a
fazia ter o árabe como língua materna), mas emigrara aos dezasseis anos para os
estados Unidos, onde tivera Los Angeles como base, mas, trabalhando no comércio de jóias, viajara por
todo o país e o seu local preferido era Miami, por causa dos cubanos e do seu
modo de ser. Um dia viera passar férias à Grécia e ficara por aqui. Claro que
deu para perceber que tinha havido um gajo pelo meio e dois filhos a completar
o ramalhete, a funcionar como âncora-prisão no novo país, não assim tão
distante do Líbano natal. Fora professora de inglês durante uns bons anos, mas
a crise empurrara-a para este novo trabalho de patrulhar de carro as ruas da
Ática.
“Mas gosto disto”, confessou, “sou amiga
do dono do táxi e isto funciona como uma espécie de terapia para mim...”
Com a fluência patognomónica dos
meridionais, a conversa foi-se entretecendo na noite, pontuada pelas rabanadas
de vento, pelo gesto dela de desemaranhar a trunfa e pelas minhas tentativas de
evitar mastigar cabelos na minha inclinação por entre os bancos. Curiosa, coisa
que ia percebendo na linguagem gestual que me ia chegando pelo retrovisor, quis
saber os nossos nomes; e nós o dela. A resposta não era simples:
“Nos Estados Unidos era Marilyn; mas
aqui o nome por que sou conhecida é Marlene...”
“Ah, cinematograficamente muito
apropriado”, comentei eu: “uma Monroe americana e uma Dietrich europeia...”
Ela riu, confessou que Marlene
Dietrich era uma das suas actrizes favoritas.
No decorrer de toda aquela conversa, o
carro fora evoluindo das grandes autoestradas, das circulares externos e
internas da cidade, para um ambiente de ruas mais pequenas e o ar marítimo perfumava
agora as janelas – estávamos já a chegar ao Pireu, o nosso destino.
Estacionado o carro à porta do hotel,
como se fosse retocar a maquilhagem ou assim, ela reposicionou o retrovisor de
molde a enquadrar-nos bem e perguntou se tínhamos dois minutos para a ouvir.
Como dizer que não a uma pessoa tão genuinamente amistosa como Marilyn, quero
dizer: Marlene?
“Ouçam, sou taxista, não sou guia
turística, mas se quiserem posso levar-vos num circuito pela cidade e, como
gosto muito de história, posso contar-vos o que tenho aprendido sobre os
lugares...”
E explicou-nos que havia três
circuitos mais comuns: um que se dedicava à cidade e aos seus clássicos; outro
que incluía Atenas e os arredores até Corinto, e um terceiro que exigia já um
dia inteiro e se espraiava até ao Peloponeso...
“Ainda não sabemos bem o que vamos
fazer estes três dias em Atenas”, respondi muito sentadinho no banco de trás e desejoso
de arrumar as malas e ir espreguiçar as quase doze horas de viagem, “não tem um
cartão que nos deixe...? Depois, conforme o que decidíssemos, telefonava...”
Ela esticou-se sobre o porta-luvas
como se fosse sobre uma carteira e remexeu no caos que reinava no seu interior.
Em seguida, por entre os encostos do banco dianteiro, estendeu-me um cartão de
visita. Antes de o meter no bolso deitei-lhe o olhar de relance da praxe cortês.
Havia nele um nome e um telefone:
MARLEN-MARILYN DAKESSIAN. KIV: 6979
1925 2...
E dois endereços de e-mail …
(continua)
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Atenas; (2) Pireu; Junho 2014.
Sem comentários:
Enviar um comentário