01 janeiro 2015

A DÉCIMA SEGUNDA UVA PASSA

Numa das extremidades do quarteirão onde está implantado, no Porto, o Hospital de S. João, foi, há uma dezena de anos, construído um hotel e um pequeno centro comercial. Este tem dois andares, sendo o superior preenchido por áreas de restauração. É no rés-do-chão que se encontra a quase totalidade das lojas, dispostas ao redor de um espaçoso átrio. O átrio é com frequência animado por espectáculos de música, exposições e pequenas feiras do livro.
Em Dezembro de 2007, vindo do estacionamento subterrâneo, entrei no centro comercial e tropecei numa exposição. As pinturas afixadas eram da autoria de doentes internados na pediatria oncológica do hospital e o produto da venda destinava-se a melhoramentos no serviço. Abrandei a ver os quadros e acabei por comprar um deles pelo preço marcado: 20 euros. Segundo a etiqueta, a autora chamava-se Marta L., tinha sete anos e assinava o quadro com um “Marta 007” que nunca consegui apurar se assinalava o ano em que a tela fora pintada ou a idade da artista.
Quanto à pintura, cativou-me de imediato a atenção, pois continha em si aquilo que Picasso referia como a “genialidade da infância”, um dom inato que se vai perdendo com a idade e que ele, quando já maduro e famoso, dizia perseguir. Primeiro havia o azul que ocupava a tela por inteiro, um azul nocturno mas claro como o dia, onde estavam semeadas umas dezenas de estrelas, tão fantásticas na reverberação como as que Van Gogh exagerou nas suas noites. Umas eram douradas e cintilantes, outras brancas e furavam o firmamento. Umas eram pequenas e situadas lá longe, no alto do quadro; outras enormes: uma destas encimava a árvore de Natal sem vaso que ocupava toda a altura do quadro e outra, explicitamente cadente no rasto de guache branco que riscava a noite em movimento descendente, viera, como uma estrela-guia, iluminar a terra e as figuras que ocupavam o rodapé da tela.
Azul, verde, dourado, amarelo, branco, vermelho, preto, prata, púrpura...
Ao nível terreno – ainda assim assombrado pela portentosa noite e pelo pinheiro de natal erguido até ao céu, as bolas vermelhas dos enfeites competindo com as estrelas siderais – estacionava um trenó apoiado em pneus e umas cabeças de rena sorriam, em pose de retrato, para o espectador. Ao lado dos malandros animais, atarefava-se um minúsculo pai Natal que, a um diminuto saco, extraía grandes presentes que se iam acumulando, num luxo de papel colorido e laçarotes inspirados, na base da árvore.   
Aqui em casa o quadro não tem tido poiso fixo, mas este ano foi parar à parede por cima do presépio: fica ali bem, pois assemelha-se a fotografia que tivesse sido pendurada na sala de estar de uma sagrada família de desenhos animados.
Hoje, na passagem de 2014 para 2015, dei por mim a confirmar a extraordinária luz que emite a tela e a descobrir, como sempre acontece quando a olho, novos pormenores na pintura da Marta. Que será feito dela? Sete anos em 2007? Sete e sete são catorze... Quer dizer que hoje em dia já teria telemóvel e amigos no Facebook... Aquilo foi pintado na época em que foi doente da pediatria e um quadro daqueles, com aqueles detalhes, aquelas cores todas, deve ter demorado o seu tempo. Sim, mas os internamentos nas doenças oncológicas infantis podem ser prolongados... Sete anos de idade? Às tantas tinha leucemia, é uma das doenças malignas mais comuns naquela fase da vida... Deve ter passado pela sua dose de cabeça sem cabelo, de sistemas de soros (maiores do que ela) enfiados nuns bracitos magros... Que será feito dela, será que ainda... O quadro não responde, continua a brilhar à minha frente numa alegria eterna e milagrosa como só os natais da infância.
  

(à Dona Luísa e Patrícia)

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, Dezembro 2007; (2) Praia Areia Branca, Janeiro 2015.

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