Numa
das extremidades do quarteirão onde está implantado, no Porto, o Hospital de S.
João, foi, há uma dezena de anos, construído um hotel e um pequeno centro
comercial. Este tem dois andares, sendo o superior preenchido por áreas de
restauração. É no rés-do-chão que se encontra a quase totalidade das lojas,
dispostas ao redor de um espaçoso átrio. O átrio é com frequência animado por
espectáculos de música, exposições e pequenas feiras do livro.
Em Dezembro de 2007, vindo do estacionamento subterrâneo, entrei no centro
comercial e tropecei numa exposição. As pinturas afixadas eram da autoria de
doentes internados na pediatria oncológica do hospital e o produto da venda
destinava-se a melhoramentos no serviço. Abrandei a ver os quadros e acabei por
comprar um deles pelo preço marcado: 20 euros. Segundo a etiqueta, a autora
chamava-se Marta L., tinha sete anos e assinava o quadro com um “Marta 007”
que nunca consegui apurar se assinalava o ano em que a tela fora pintada ou a
idade da artista.
Quanto
à pintura, cativou-me de imediato a atenção, pois continha em si aquilo que
Picasso referia como a “genialidade da infância”, um dom inato que se vai
perdendo com a idade e que ele, quando já maduro e famoso, dizia perseguir.
Primeiro havia o azul que ocupava a tela por inteiro, um azul nocturno mas
claro como o dia, onde estavam semeadas umas dezenas de estrelas, tão
fantásticas na reverberação como as que Van Gogh exagerou nas suas noites. Umas
eram douradas e cintilantes, outras brancas e furavam o firmamento. Umas eram
pequenas e situadas lá longe, no alto do quadro; outras enormes: uma destas encimava
a árvore de Natal sem vaso que ocupava toda a altura do quadro e outra,
explicitamente cadente no rasto de guache branco que riscava a noite em
movimento descendente, viera, como uma estrela-guia, iluminar a terra e as
figuras que ocupavam o rodapé da tela.
Azul,
verde, dourado, amarelo, branco, vermelho, preto, prata, púrpura...
Ao
nível terreno – ainda assim assombrado pela portentosa noite e pelo pinheiro de
natal erguido até ao céu, as bolas vermelhas dos enfeites competindo com as
estrelas siderais – estacionava um trenó apoiado em pneus e umas cabeças de
rena sorriam, em pose de retrato, para o espectador. Ao lado dos malandros
animais, atarefava-se um minúsculo pai Natal que, a um diminuto saco, extraía grandes
presentes que se iam acumulando, num luxo de papel colorido e laçarotes
inspirados, na base da árvore.
Aqui
em casa o quadro não tem tido poiso fixo, mas este ano foi parar à parede por
cima do presépio: fica ali bem, pois assemelha-se a fotografia que tivesse sido
pendurada na sala de estar de uma sagrada família de desenhos animados.
Hoje,
na passagem de 2014 para 2015, dei por mim a confirmar a extraordinária luz que
emite a tela e a descobrir, como sempre acontece quando a olho, novos
pormenores na pintura da Marta. Que será feito dela? Sete anos em 2007? Sete e
sete são catorze... Quer dizer que hoje em dia já teria telemóvel e amigos no
Facebook... Aquilo foi pintado na época em que foi doente da pediatria e um
quadro daqueles, com aqueles detalhes, aquelas cores todas, deve ter demorado o
seu tempo. Sim, mas os internamentos nas doenças oncológicas infantis podem ser
prolongados... Sete anos de idade? Às tantas tinha leucemia, é uma das doenças
malignas mais comuns naquela fase da vida... Deve ter passado pela sua dose de
cabeça sem cabelo, de sistemas de soros (maiores do que ela) enfiados nuns
bracitos magros... Que será feito dela, será que ainda... O quadro não
responde, continua a brilhar à minha frente numa alegria eterna e milagrosa
como só os natais da infância.
(à Dona Luísa e Patrícia)
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, Dezembro 2007; (2) Praia Areia Branca, Janeiro 2015.
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