Ontem, dia 4 de Setembro de 2010, num prolongado encontro gastronómico no vale do Douro, soube pela minha prima Zi o que queria dizer ‘Zaida’. É que a Zi, coitada, herdou o ‘Zaida’ como nome. E, mal saiu da pia baptismal, toda a gente desatou a experimentar-lhe alcunhas como quem experimenta carapins: ficou Zi para a maioria, Zaidinha e Zizi para meia-dúzia. Com um nome destes, a Zi, que cultiva o português com desvelo, escavou pelo significado com a curiosidade ansiosa de quem procura os pais biológicos.
Zaida é um nome árabe, isso eu já sabia, e quer dizer ‘felicidade’. Ou dito de outro modo, se não fosse a influência árabe na Península a minha avó materna seria pura e simplesmente conhecida como D. Felicidade.
Pois, como já por aqui disse, D. Felicidade tinha uma relação patologicamente retentiva com as suas receitas de cozinha, que tratava como tesouros de Estado e mantinha aferrolhadas no armário da copa, em frente ao pequeno relógio de pêndulo que por ali havia e que, tenho a certeza, tivesse a minha avó vivido no século XXI e não no XX, seria substituído por uma câmara de videovigilância com monitores de controlo no quarto dela.
Já vos deixei a receita do Rolo de Barcelos, doce pouco comum e um dos mais consagrados do receituário da minha avó e hoje, mau-grado os anos que passaram sobre o seu passamento, o seu olhar fuzila-me do Assento Etéreo ao adivinhar aquilo que me preparo para fazer dentro de momentos. E, não fosse ela estar no Céu, seria mesmo prudente da minha parte considerar a hipótese de mau-olhado.
No texto em que pus à disposição do cosmos a receita do Rolo de Barcelos falei também no Doce Tirsense, o la crème de la crème dos doces da avó Zaida. Ainda não tinha transcrito a receita, pois faltava-me uma fotografia que ilustrasse, minimamente, com o que se parece. Mas ontem, no almoço-lanche-jantar em Cambres, ele surgiu sobre as mesas como uma bênção de fim de Verão, abrilhantado em três travessas com friso de azuis e dourados como o dia que estava. Trémulo, mais rápido que todos e antes que alguém lhe espetasse a colher, saquei do telemóvel e colhi três instantâneos, um por travessa.
É certo que se pode comer ao longo de todas as estações e, nesse aspecto, ele é como as rabanadas, mas o Doce Tirsense é, claramente, um doce de Verão. Antigamente, aliás, como não havia estufas e morangos todo o ano, só se podia sonhar em comê-lo no Verão e, antes da invenção do frigorífico, calculo que fosse guardado em cave bem sombria e fresca nas horas que antecediam a sua subida triunfal para a proximidade do centro de mesa, pois a sua divindade não consente posição de menor destaque.
Agora, antes de passar à exposição dos ingredientes e técnica de confecção, permitam que diga que vislumbro algo de sensual no modo como aquele doce chega à mesa: acabado de sair dos claustros do frigorífico, ao enfrentar a luz do mundo exterior, o rosado dos morangos como que alastra sobre o branco imaculado e tenro das claras em castelo que, resguardando o dourado-moreno do doce de ovos que se oculta sob elas, tremem como um busto arfante ante a gulosa ameaça de, em escassos minutos, virem a ser inauguradas por uma irreprimível colher.
“Não há melhor do que isto!”, comentava, servindo-se à ganância, o meu primo Pedro, filho da minha prima Zi, neto da minha tia Teresa e bisneto da guardiã implacável das receitas. Este vício já vai na quarta geração...
Ingredientes:
6 gemas
2 claras
250 gramas de açúcar
1 chávena de chá de leite
1 cálice de vinho do Porto
morangos frescos q.b.
miolo de noz q.b.
Confecção:
Batem-se as gemas com o açúcar, à mão e num tacho não aquecido.
Quando já estiver a fazer "bolhinhas", junta-se o leite e o vinho do Porto.
Leva-se ao lume até ferver.
Ao levantar fervura, põe-se o disco mais brando e deixa-se ferver durante 5 minutos, mexendo sempre.
Põe-se numa travessa e deixa-se arrefecer.
Leva-se ao frigorífico.
Batem-se as 2 claras em castelo e espalham-se cuidadosamente sobre o creme.
Enfeita-se com morangos e miolo de noz.
Nota: Só o creme é que vai ao frigorífico, as claras, os morangos e as nozes juntam-se antes de servir.
© Fotografias de Pedro Serrano, Quinta do Mourão (Cambres, Douro) 2010.
Acreditem, não há violação mais doce...
ResponderEliminarFelicidade
@ Cara Felicidade,
ResponderEliminarConcordo em absoluto. É o paraíso do céu da boca, perdoe-me a redundância...