Noite. Continuo ao volante com a sensação de não chegar a tempo. Encaixei o auricular mãos-livres do telemóvel na orelha, assim não corro todos os perigos de atender um telefone em andamento.
O meu pai não gostava de gatos. Sempre foi um mistério para nós e, já grandinhos, era com ambivalência que o ouvíamos referir, satisfeito, ter acabado de enfiar umas chumbadas da espingarda pressão-de-ar nos vadios que sempre frequentam os quintais. Outras vezes pegava num toco de vassoura, ou similar, para os “zupar” ou, não chegando a tempo da sova, pelo menos para assustar até à expulsão temporária o felino que se roçava nos arbustos da vizinhança do limoeiro.
Com esta disposição, tinha de ser às escondidas que dávamos um pires de leite ou restos de refeição ao gatito preto que se afeiçoara à casa e cuja sequela de pata partida nos partia os corações. Menos a ele, claro.
Com o passar dos anos, embora a aversão se mantivesse pulsátil, a sua manifestação atenuou-se e tornou-se mais corriqueiro ver um gato rondar a porta da cozinha ou assumir ares de proprietário torrando ao sol na tijoleira.
Depois, já recentemente, confessou o motivo de tanta aversão: tinha sido arranhado por um gato, um dia, quando era muito pequeno e se aproximara do bicho com aquela confiança aberta própria da infância. Senti-me frustrado com a confissão! Tantos anos a tentar convencê-lo a permitir-nos ter um gatizo, tantas acrobacias de pensamento a tentar acondicionar a sua repulsa em medos ancestrais, a desculpar-lhe a fraqueza, e, afinal, tudo se devia a ter sido, uma única vez, arranhado por um gato! E eu, que adorava bichinhos macios, tive de sublimar todas as tendências peluciais da meninice em bonecas de pano espanholas.
O tempo foi amaciando tudo isto e, sem consentimento explícito, o meu pai lá permitiu que um gato adoptado pelos meus sobrinhos, que viviam num andar, fosse acolhido temporariamente no nosso quintal... Depois, já a minha mãe tinha morrido, apareceu uma gata, muito meiga, de pelagem fofa e tonalidades desmaiando entre o castanho e o branco; de físico bem tratado, mas quiçá com carências afectivas, que passou a preferir o nosso jardim. Estaciona em cima dos nossos muros, cobiça a lareira pelo lado de fora dos vidros das portas da sala; a minha irmã Clarinha dá-lhe de comer, mais a pílula de 15 em 15 dias. Um dia, descobri o meu pai, em meias, a coçar-lhe o dorso com os pés, a dizer com um ar travessamente contente:
“Estás a ver? Ela parece gostar do tratamento...”
Toca o telemóvel no meio de luzes difusas. É a Susana, com a voz à beira do desvario. Na última hora o pai resvalou para uma espécie de inconsciência, a respiração tornou-se entrecortada e ruidosa. Pergunto pela posição das mãos, se estão a ter algum movimento: estou a recear o gesto, tão próprio dos moribundos, de acariciar com a ponta dos dedos a fímbria do lençol, como as crianças fazem com um pano de fralda ou a almofadinha favorita à procura do conforto que invoca o sono. Ela parece espantada com a pergunta, quer que alguém vá lá, urgentemente, vê-lo, pois está combinado entre nós que não o tiraremos de casa sob pretexto algum.
“Um médico! Não arranjas ninguém que venha cá? Já!? Vê se arranjas alguém, és médico!”
Um médico, para ir a casa de alguém, já!, às oito da noite... Sei bem a resposta que se dá a pedido desses: “Se está assim tão mal, o melhor é levá-lo ao hospital...”
Telefono à Raquel, médica de família no Porto, em quem deposito toda a confiança do mundo em termos clínicos. Explico-lhe o contexto, peço para me aconselhar alguém, um contacto de telefone.
Ela sugere um nome ou dois, quando se apercebe que estou a guiar propõe-se fazer o contacto, depois pergunta:
“Quer que eu vá lá?”
Não quero. É hora de jantar, interrompi-lhe o ir para a mesa, os gémeos estarão na banheira à espera de serem enrolados em lençóis de banho felpudos e ralhetes carinhosos; não a quero sujeitar a uma visita domiciliária a 10 km de distância e cujo desfecho prevejo sombrio. Ela insiste, calmamente:
“Não quer mesmo que eu vá, Pedro? Eu vou lá, fica mais tranquilo, não tem de andar, feito louco, à procura de alguém... Sabe que a esta hora não vai ser fácil.”
Acabo por aceitar, o leve remorso de a estar a envolver nisto diluindo-se no apaziguamento de ter entregue o assunto em tão boas mãos.
“Vou já para lá, depois ligo-lhe. Guie com cuidado...”
Lá fora está escuro. A auto-estrada está vazia. Merda, tenho de meter gasolina, a luz da reserva acendeu-se, já está em amarelo fixo. Preso em telefonemas, não me dei conta de quando isso aconteceu.
É uma estação de serviço nos arredores de Coimbra, deserta, com a agulheta na mão olho fixamente o deslizar dos números, de vez em quando espreito o telemóvel pousado no banco do passageiro, a vigiar se a luz se acende. Está uma noite gelada e um ventinho cortante fez-me levantar a gola do casaco, estou insuficientemente agasalhado para o ar livre de Novembro.
Não o sei ainda, não estou lá, mas a esta hora, no Porto, o meu pai expulsou o ar dos pulmões pela última vez e não voltou a inspirar – completa-se o ciclo que começou com a sua primeira inspiração, quando nasceu. A minha urbana, sofisticada e altiva irmã mais nova desmoronou-se no chão do quarto num choro convulsivo, como uma qualquer órfã siciliana.
Pago, entro no carro, deslizo para a auto-estrada silenciosa e negra. Pouco depois o telefone toca. É a Raquel, adivinho o que me vai dizer ainda antes que o diga. Di-lo com cuidado, num tom de voz e num discurso de perfeito equilíbrio entre o pessoal e o profissional, fornecendo a quantidade de informação certa para o momento e avaliando, simultaneamente, qual está a ser a minha reacção à notícia, a interferência que isso poderá ter na minha segurança rodoviária. Em seguida informa-me que ficou em casa do meu pai até chegarem os homens da agência funerária, passou o certificado de óbito e articulou com a agência os detalhes legais; confortou os elementos da família que lhe pareceram mais afectados no momento: a minha irmã mais nova e o marido, o meu cunhado Gil, pessoas que nunca vira anteriormente.
“Fica bem?”, perguntou antes de desligar e finalmente ir poder jantar.
Em minha casa, agora a 250 km de distância, a panela de sopa deve ter arrefecido completamente sobre o disco do fogão.
© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) 2007; (2) 2008; (3) 2010.
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