18 outubro 2010

VOU-TE CONTAR: 27. Nada ficou como dantes

Estacionei num lugar impossível em frente à entrada, estendi uma moeda ao arrumador e fui vasculhar uma daquelas lojas de flores que há sempre em frente aos cemitérios, na vizinhança de oficinas onde se aparelham lápides e se gravam baixos-relevos fúnebres.
Ia à procura de rosas, mas só as havia de papel encerado. Comprei umas flores semelhando rosas pequeninas, tinham-nas brancas, vermelho-pálido e violeta; quis destas últimas. À saída da loja, um homem tomou-me o bouquet das mãos, empunhou uma tesoura de poda:
“É para jarra?”
“Sei lá”, respondi, “não faço ideia...”
“Então é melhor cortar pouco...”, contemporizou ele a bissectriz, dando um pequeno golpe ao pé.
Não ia ali desde o dia do funeral, faz três anos no mês que vem. Não vira sequer ainda a pedra que tínhamos mandado fazer para cobrir o quadrilátero de terra que encima a campa.
“Estou aqui numa daquelas lojas em frente ao cemitério, que fazem lápides, sabes?”, disse a minha irmã mais nova quando atendi o telefone, “vamos tratar da pedra?”
Havia que decidir o tipo de pedra, o que inscrever nela, que tipo de entalhes preferir para as letras.
“Granito, não achas?”
Sim, sem dúvida, entre o rigor do granito e o adoçado do mármore, o meu pai preferiria, com toda a certeza, a simplicidade austera do primeiro. E depois o granito é a cor da aldeia dele, da paisagem que lhe envolveu a infância. 
“O homem quer saber o que se vai escrever e a cor das letras: podem ser sem cor – a cor da pedra –, dourado ou em preto.”
Foi fácil acordarmos o registo do primeiro e do último nome, o primeiro e o último ano, depois ficámos em silêncio: era tudo? Ela disse:
“Podíamos pôr uma frase qualquer, não achas?, que dissesse alguma coisa sobre ele...”
Lembrei que talvez uma frase sobre nós, o que ficava em nós depois dele partir, dissesse ainda mais sobre ele. 
São três da tarde e está um dia benévolo de Outono, um gato preto dorme, enroscado ao sol, no topo de um jazigo. O cemitério é enorme, mas optei por tentar encontrar o local sem perguntar nada. Depois, se me perdesse, perguntaria; não me apetecia dizer a quem ia. Segui a intuição dos pombos.
Fui lá dar quase directamente; de repente reconheci a curva no caminho, o canto, encostado às traseiras de um jazigo, onde a campa está. Zigzagueei entre campas e ei-la, que é aquela de certeza; reconheci a pedra de uma foto de telemóvel que a Susana me mandou para mostrar como tinha ficado a lápide. Então, a dois metros de ter de parar por ter chegado ao meu destino, ao lado da hortênsia e do pé de roseira enfezados que brotam de uma sepultura abandonada, os olhos enchem-se-me de lágrimas sem aviso, sem aperto do peito, sem evocação nenhuma, apenas, suponho, porque o reencontrei ao fim deste tempo todo. Naquele estado de silêncio reflexivo, receptivo. E ele que tem estado sempre ali.
Peço mentalmente licença e sento-me sobre a lápide de mármore da campa da senhora que está ao lado dele. Fico um pouco, a olhar a pedra, sem pensar em nada de concreto, como se tivesse mergulhado no buraco de tempo e de intenção que há entre o fim de uma expiração e a próxima inspiração. 
Sobrevivem-nos as pedras e a luz do sol.


















© Fotografias de Pedro Serrano, Porto, 2010.

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