Tento pôr-me na pele dela e imagino
que se terá sentido uma parte surpreendida, uma parte contente e duas partes
nervosa ao dar-se conta que a sua estreia nas grandes salas de espectáculo do
país tivera como resultado a venda de todos os bilhetes no Porto (Casa da Música) e em Lisboa.
Ontem à noite, um Sábado frio de
Janeiro sarrabiscado de chuva, o Centro Cultural de Belém (CCB) estava cheio
como um ovo para ouvir Gisela João, uma cantora cujo primeiro CD foi
considerado a revelação do ano, já por aqui falei disso há uns bons meses num
texto a que chamei A Noção dos Blues.
Quando ela apareceu por aí a cantar houve logo quem se apressasse a
classificá-la como fadista, coisa que eu não faria de ânimo leve pois Gisela é
isso mas vai para além disso e, por ser mais do que isso, tenho a certeza, não
faria a triste figura que fez a Amália ao atrever-se a cantar êxitos da
Broadway, esmagando as canções ao não conseguir mais do que espartilhá-las na
gargantilha de fadista.
Quem, quase às nove em ponto, nos entrou
pelo palco do CCB, onde uma guitarra portuguesa e duas guitarras acústicas de
acompanhamento aguardavam, foi uma moça pequena, loura, de cabelos soltos, saia
curta e ténis nos pés, uma pose rasteirinha
como ela própria escolheu para se retratar à audiência. A voz, quando
conversa com o público, é a voz tímida e de vincado sotaque nortenho de uma rapariga
que está algo nervosa, que diz esperar que o público goste dela e espera que
tudo corra bem.
Começou a cantar e a garota foi varrida
do mapa por uma mulher a quem esquecemos a estatura, que se agiganta quando
sublinha o fraseado com gestos veementes e inevitáveis, que anula o tempo com o seu cantar,
como se tivesse sido possuída por algo que lhe ultrapassa o contorno ou o seu
controlo, uma presença impossível de explicar apenas em termos de dotes da voz
ou de técnica de interpretação, embora a técnica esteja lá no pronunciar da
cada palavra. Meu Deus, está-nos a ser dado assistir a um milagre, isto é, a
algo que não tem explicação lógica, que é mais do que a soma das visíveis partes. Aquilo
não é só fado, aquilo é música no que a música tem de mais transcendental. Ela
poderia estar a cantar blues, supõe-se, ou baladas ou standards de jazz ou seja
o que for, pois foi-lhe concedido o dom raro de conseguir vestir canções.
Fechei os olhos durante “Maldição” (um
fado soberbo que a Amália também cantava), e a magia mantém-se sem a imagem, o
arrepio do momento único está lá, a corporização do trágico que o poema
invoca é-me soprada ao ouvido como se fosse o único espectador sentado na sala.
Quanto ao público, rendido desde os
brancos lençóis de “Madrugada Sem Sono”, a belíssima canção que escolheu para
abrir o show. Podia ouvir-se cair um alfinete durante a interpretação da dama, fenómeno
raro numa audiência lusa, que, mesmo fora dos meses invernais, tossica muito e,
agora que já não se usam leques, tem o tique de se abanar à media luz dos
telemóveis.
© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa, 25 Janeiro 2014.
Que bem que tu sentes a coisa.
ResponderEliminar@ Obrigado, anónimo, pela coisa!
ResponderEliminar"Menino do Rio, calor que provoca arrepio
ResponderEliminarDragão tatuado no braço, calção corpo aberto no espaço
Coração de eterno flerte, adoro ver-te
Menino vadio, tensão flutuante do rio
Eu canto para Deus proteger-te
O Havaí, seja aqui, tudo o que tu sonhares
Todos os lugares, as ondas dos mares
Pois quando eu te vejo eu desejo o teu desejo
Menino do Rio, calor que provoca arrepio toma esta canção"
""como um beijo"".
@ Anónimo, Para ser franco não veja a relação, mas tudo bem.
ResponderEliminarA relação?
ResponderEliminarVou-te dizer: A arte de bem escrever.
"Com emoção, ou sem emoção"?
Com emoção.
@ Anónimo, Ah, assim é mais aproximativo. Obrigado.
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