Istambul, 1 de Outubro
Agora, que aqui estamos há mais de uma semana,
consigo ter uma impressão geral da cidade. E tal como Atenas, na sua branquidão
e luz crua, se me parecia com Faro, Istambul faz-me lembrar Lisboa: no ar
decadente de cidade mal cuidada, nas cores dos edifícios. Aqui, tal como em
Lisboa, abunda o ocre descascado, o amarelo desbotado, o vermelho arroxeado de
vinho-tinto vomitado.
Continuamos à espera de transporte para sair da
cidade, talvez seja amanhã; hoje, na visita quotidiana à agência, o chefe
mandou-nos ter as malas prontas, podemos vazar a qualquer momento, alguém irá
avisar-nos ao hotel. Enquanto isso vamos levando uma vida muito sossegada,
tenho-me lembrado amiúde do poema do Ferlinghetti:
A vida que levo é
muito sossegada.
Passo os dias no café
do Mike
a admirar os campeões
do grupo Dante de
Bilhar
e os viciados dos
matraquilhos [1].
A única diferença é que no nosso café se joga
dominó, damas e cartas. De resto é uma mesa pacata e silenciosa, com o Rui a
ler as peregrinações do Siddhartha e do Govinda, o Larry a escrever as suas
notas e eu entretido com o Overland to
India and Australia, que continua a ser o meu livro de cabeceira. Já vou no
Paquistão e tenho aprendido imenso, que aquilo é mesmo bem-feito, um precursor
dos Lonely Planet e dos Rough Guide de hoje em dia. O guia,
feito a pensar nos viajantes pé-descalço como nós, fala de tudo: vistos e
vacinas necessários para entrar num país; divisas e de como as comprar no
mercado negro; locais onde ficar, preços, comodidades das instalações e, até se
são seguros ou não; onde se come e por quanto e, sistematicamente, informações
sobre as drogas recreativas que se podem encontrar em cada país: preços, onde
as arranjar e perigos relacionados com a sua aquisição; posse e possibilidade
de consumo em público. Inclusive, chega ao detalhe de listar o nome das pessoas
que cumprem penas de prisão em cada um desses países e pede que os visitemos e
lhes levemos bens básicos e companhia, que as prisões por aqui são um pesadelo
de estadia e maus-tratos. A Turquia, por exemplo, é um dos países de grande
dureza neste campo e um dos nomes que consta do Overland como estando actualmente encarcerado em Istambul é o de um
americano que foi apanhado, na figureta de um bombista suicida, com uma grande
quantidade de barras de hashish
enroladas no corpo e cuja história daria origem, dois anos mais tarde, ao filme
O Expresso da Meia Noite [2].
Falando em
americanos: o Doug já não nos faz companhia, infelizmente. Foi-se hoje em
direcção a Israel e o Rui acompanhou-o ao outro lado do Bósforo, onde ia
apanhar o seu transporte. Mesmo o Larry se prepara para abrir dentro de três ou
quatros dias e nós, os que já devíamos ter partido há séculos, ainda por aqui
criamos musgo. Gosto disso e de ter
percebido que estes atrasos nos trazem benefícios inesperados: foi assim que
conhecemos de mais perto o Doug e o Larry, foi assim que dei conta que se ouvem
as sirenes dos barcos do porto à noite, quando estou deitado na cama do hotel;
que me habituei a esperar o canto dos muezins
a horas certas. É curioso a gente pensar como
exclusivo muçulmano este convite cantado à oração, mas já em Atenas se
ouvia cristãmente este mesmo tipo de chamamento pela tardinha.
À noite
fomos jantar ao Lâle Pudding Shop e, por falar em Atenas, quem havíamos de
encontrar a espiolhar o placard onde estão afixados os recados que os viajantes
ali deixam? As duas irmãs austríacas que conhecemos em casa do David, no dia em
que fomos expulsos do Hare Krishna Temple! Adivinhem para onde vão? Como o
mundo é pequeno: aguardam a partida da mesma camioneta que nós!
Estivemos
pelo Lâle até à meia-noite, saltando
de celebração em celebração numa orgia
de cervejas, com os clientes a cantarem o “Frère
Jacques“ em
coro, e quando regressámos ao hotel, já para o tarde e o entornado, o japonês
informou-nos sem nenhum sinal exterior de comoção que o autocarro para Teerão
parte amanhã às quatro da tarde. No seu leito, o alemão ressona na paz dos
querubins assírios.
Encontrámo-nos
com o Larry ao fim da manhã do dia seguinte, para um adeus, pois desta vez é
que é mesmo. Estamos todos um pouco emocionados e ele não olhou para trás
quando desatou a andar pela rua fora em direcção ao Güngör, o nosso hotel
primevo em Istambul.
Aqui está a
camioneta, aqui estamos todos a enfiar as mochilas no espaço por cima dos
assentos; ninguém confia muito nos porta-bagagens. Ao nosso lado, do lado de lá
da coxia, vão sentadas a Léa e a Brigitte, as
francesas louras, e à nossa frente sentou-se um casal de belgas que fez
algum alarido ao chegar, pois achavam que estávamos sentados nos lugares que
lhe competiam. Como assim, se a merda dos bilhetes não têm lugares marcados?!
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