05 agosto 2015

NÃO VENHAS TARDE: 21. A VIDA QUE LEVO É MUITO SOSSEGADA

Istambul, 1 de Outubro
Agora, que aqui estamos há mais de uma semana, consigo ter uma impressão geral da cidade. E tal como Atenas, na sua branquidão e luz crua, se me parecia com Faro, Istambul faz-me lembrar Lisboa: no ar decadente de cidade mal cuidada, nas cores dos edifícios. Aqui, tal como em Lisboa, abunda o ocre descascado, o amarelo desbotado, o vermelho arroxeado de vinho-tinto vomitado.
Continuamos à espera de transporte para sair da cidade, talvez seja amanhã; hoje, na visita quotidiana à agência, o chefe mandou-nos ter as malas prontas, podemos vazar a qualquer momento, alguém irá avisar-nos ao hotel. Enquanto isso vamos levando uma vida muito sossegada, tenho-me lembrado amiúde do poema do Ferlinghetti:
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a admirar os campeões
do grupo Dante de Bilhar
e os viciados dos matraquilhos [1]. 
A única diferença é que no nosso café se joga dominó, damas e cartas. De resto é uma mesa pacata e silenciosa, com o Rui a ler as peregrinações do Siddhartha e do Govinda, o Larry a escrever as suas notas e eu entretido com o Overland to India and Australia, que continua a ser o meu livro de cabeceira. Já vou no Paquistão e tenho aprendido imenso, que aquilo é mesmo bem-feito, um precursor dos Lonely Planet e dos Rough Guide de hoje em dia. O guia, feito a pensar nos viajantes pé-descalço como nós, fala de tudo: vistos e vacinas necessários para entrar num país; divisas e de como as comprar no mercado negro; locais onde ficar, preços, comodidades das instalações e, até se são seguros ou não; onde se come e por quanto e, sistematicamente, informações sobre as drogas recreativas que se podem encontrar em cada país: preços, onde as arranjar e perigos relacionados com a sua aquisição; posse e possibilidade de consumo em público. Inclusive, chega ao detalhe de listar o nome das pessoas que cumprem penas de prisão em cada um desses países e pede que os visitemos e lhes levemos bens básicos e companhia, que as prisões por aqui são um pesadelo de estadia e maus-tratos. A Turquia, por exemplo, é um dos países de grande dureza neste campo e um dos nomes que consta do Overland como estando actualmente encarcerado em Istambul é o de um americano que foi apanhado, na figureta de um bombista suicida, com uma grande quantidade de  barras de hashish enroladas no corpo e cuja história daria origem, dois anos mais tarde, ao filme O Expresso da Meia Noite [2].
Falando em americanos: o Doug já não nos faz companhia, infelizmente. Foi-se hoje em direcção a Israel e o Rui acompanhou-o ao outro lado do Bósforo, onde ia apanhar o seu transporte. Mesmo o Larry se prepara para abrir dentro de três ou quatros dias e nós, os que já devíamos ter partido há séculos, ainda por aqui criamos musgo. Gosto disso  e de ter percebido que estes atrasos nos trazem benefícios inesperados: foi assim que conhecemos de mais perto o Doug e o Larry, foi assim que dei conta que se ouvem as sirenes dos barcos do porto à noite, quando estou deitado na cama do hotel; que me habituei a esperar o canto dos muezins a horas certas. É curioso a gente pensar como  exclusivo muçulmano este convite cantado à oração, mas já em Atenas se ouvia cristãmente este mesmo tipo de chamamento pela tardinha.
À noite fomos jantar ao Lâle Pudding Shop e, por falar em Atenas, quem havíamos de encontrar a espiolhar o placard onde estão afixados os recados que os viajantes ali deixam? As duas irmãs austríacas que conhecemos em casa do David, no dia em que fomos expulsos do Hare Krishna Temple! Adivinhem para onde vão? Como o mundo é pequeno: aguardam a partida da mesma camioneta que nós!
Estivemos pelo Lâle até à meia-noite, saltando de celebração em celebração numa  orgia de cervejas, com os clientes a cantarem o “Frère Jacques  em coro, e quando regressámos ao hotel, já para o tarde e o entornado, o japonês informou-nos sem nenhum sinal exterior de comoção que o autocarro para Teerão parte amanhã às quatro da tarde. No seu leito, o alemão ressona na paz dos querubins assírios.
Encontrámo-nos com o Larry ao fim da manhã do dia seguinte, para um adeus, pois desta vez é que é mesmo. Estamos todos um pouco emocionados e ele não olhou para trás quando desatou a andar pela rua fora em direcção ao Güngör, o nosso hotel primevo em Istambul.
Aqui está a camioneta, aqui estamos todos a enfiar as mochilas no espaço por cima dos assentos; ninguém confia muito nos porta-bagagens. Ao nosso lado, do lado de lá da coxia, vão sentadas a Léa e a Brigitte, as  francesas louras, e à nossa frente sentou-se um casal de belgas que fez algum alarido ao chegar, pois achavam que estávamos sentados nos lugares que lhe competiam. Como assim, se a merda dos bilhetes não têm lugares marcados?!

Imagem: Cena do filme Midnight Express, 1978. 





[1] Lawrence Ferlinghetti, poema ‘Autobiografia’ da antologia Como Eu Costumava Dizer, Cadernos de Poesia, D. Quixote, 1972, tradução de José Palla e Carmo.
[2] Midnight Express, de Alan Parker, 1978.

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