Quando éramos mesmo pequenos, a minha
irmã e eu costumávamos ficar em casa dos meus avós maternos sempre que os nossos
pais iam de férias a qualquer lado estrangeiro. Significava mudar de país para
todos nós: por eles, que iam até Itália ou França ou ilhas, e por nós, filhos,
que atravessávamos a rua e entrávamos o portão em frente para dormir em camas
estranhas, sentir portas que rangiam de modo diverso das da nossa casa e ouvir
vozes que, embora familiares, não eram as que no habitual se iam despedir antes
do adormecer. De manhã, na sala onde a minha avó e a minha tia passavam as
horas e onde a Dina vinha saber o que ia ser o almoço, podia ir até à janela e
espreitar a casa em frente: dali via a janela do meu quarto, o quintal onde
costumava brincar, mas não era a mesma coisa como se estivesse lá. Estava
separado de tudo aquilo pela ausência dos meus pais, a própria imagem da casa
escapara-se aos contornos de um lar... Habituava-me, agora que estava noutra
possessão, procurava uma continuação qualquer para os meus dias e se,
porventura, os meus pais, ao fim do dia, conseguiam uma chamada lá do país onde
estavam, não me mexia para ir engrossar a gente que cacarejava em torno da
mesinha do telefone e continuava, dobrado no tapete do andar de cima, a
desenhar castelos e aviões e barcos, sem responder ao esganiço do “Pedro anda
ao telefone”, como se nada fosse comigo, pois nada comigo era.
Disso mesmo se queixava a minha mãe no
postal que me foi endereçado de Palma de Maiorca na primavera de 1959, tinha eu
cinco anos. Alguém mo terá lido, uma vez que ainda não sabia juntar palavras e
mesmo que o soubesse não haveria de decifrar a letra da minha mãe ou a do meu
pai na metade de baixo do postal. Conseguia sim perceber que eram diferentes e
enquanto a da minha mãe se desenrolava em curvas como as flâmulas na torre de
menagem dos meus castelos de papel costaneira, a caligrafia acerada do meu pai
ia deixando marca na paliçada que ornava as margens do fosso do castelo e
protegia o acesso à ponte levadiça. A minha mãe perguntava também – para além
de estar desconsolada por não ter
podido falar comigo – se me andava a portar bem, e dizia que a Emilinha mandava
saudades como se isso me interessasse alguma coisa. O meu pai tinha um amigo
chamado Dr. Gonzaga, médico como ele, um homem parecido com o Groucho Marx e
com uma engraçada voz, simultaneamente rouca e cana rachada, e às vezes ele e a
mulher dele iam passar férias com os meus pais a um sítio. Levavam sempre com
eles a filha, Emilinha, uma menina, um pouco mais idosa do que a minha irmã de
oito anos, que tocava acordeão e vestiam de espanhola à hora do jantar. Os meus
pais, ao regressar e contar os acepipes – digo, as peripécias – das viagens
referiam sempre que a Emilinha tinha sido posta a tocar acordeão para toda a
gente que estava no hotel ou que ia no barco do cruzeiro e parecia-me que
contavam isso como se fosse um assunto que teria sido mais sensato não ter
acontecido. Acho que a minha irmã Clarinha ficava mais impressionada com a
Emilinha, a sua travessa de espanhola espetada no cabelo e o seu acordeão do
que eu.
A metade de baixo do postal começava
com o meu pai a dizer “nada de coscuvilhices”, a perguntar como iam os meus
castelos e a dizer que tinham vistos muitos “por aqui” onde quer que isso
tivesse sido. Talvez me trouxesse alguns, dizia ele, e era tudo antes dos “beijos”
já atravancados pela falta de espaço e a invadir a divisória do postal onde se
lia impresso: ESPAÑA – Modelo patenteado n.º 55.464.
Mas o que me tinha impressionado mais naquilo tudo fora a parte da frente do postal e todas as noites – antes de me apagarem a luz – olhava com terror os dedos retorcidos e enganchados da mulher de chapéu que se podia transformar a qualquer momento num monstro ou assim. O postal, ao contrário dos postais que conhecia, não era uma fotografia e conseguia-se mesmo mexer e passar o dedo pela roupa que ela usava para baixo do pescoço tisnado e para cima dos tornozelos. As saias eram de pano verdadeiro e o corpete um género de tricot rematado com laços brancos, de onde saiam os braços – esses sim desenhados no cartão do postal – que se retorciam para trás. O que quereria ela dizer com aquilo? Parecia poder estar a tocar um acordeão invisível que tivesse atrás das costas... Com cuidado, e quando ninguém estava a ver, tentava levantar-lhe a orla da saia, mas por baixo não havia corpo nem nada, só cola a prender uma ponta de renda branca, ali pendurada como as de papel recortado que punham na ponta das prateleiras da despensa.
Mas o que me tinha impressionado mais naquilo tudo fora a parte da frente do postal e todas as noites – antes de me apagarem a luz – olhava com terror os dedos retorcidos e enganchados da mulher de chapéu que se podia transformar a qualquer momento num monstro ou assim. O postal, ao contrário dos postais que conhecia, não era uma fotografia e conseguia-se mesmo mexer e passar o dedo pela roupa que ela usava para baixo do pescoço tisnado e para cima dos tornozelos. As saias eram de pano verdadeiro e o corpete um género de tricot rematado com laços brancos, de onde saiam os braços – esses sim desenhados no cartão do postal – que se retorciam para trás. O que quereria ela dizer com aquilo? Parecia poder estar a tocar um acordeão invisível que tivesse atrás das costas... Com cuidado, e quando ninguém estava a ver, tentava levantar-lhe a orla da saia, mas por baixo não havia corpo nem nada, só cola a prender uma ponta de renda branca, ali pendurada como as de papel recortado que punham na ponta das prateleiras da despensa.
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