07 fevereiro 2018

NEM SEMPRE DO FUNDO DO MAR SE CONSEGUE VER O CÉU

Havia uma sala, ampla, mesas e cadeiras, um balcão de bar com bancos altos e, contíguo, um outro espaço cujo acesso era separado do primeiro apenas pela sugestão de passagem formada pela intersecção de um lintel e duas paredes. Esse segundo salão era praticamente ocupado por um grande tanque de formato reniforme em cujo centro, como se lhe tivesse crescido ali um cálculo, destacava uma plataforma também em forma de rim. Com uma profundidade desnivelada, que atingia o metro e sessenta na zona mais funda, supunha-se ser uma piscina e havia quem usasse o tanque como tal, buscando após o banho as espreguiçadeiras do relvado exterior para uma cura de sol.
Na plataforma do tanque-piscina estava estendida, descalça, uma mulher de vestido alaranjado, solto, que lhe chegava abaixo dos joelhos. Parecia adormecida ou talvez, crendo na expressão geral do corpo, num estado de desalinho entorpecido. Dentro de água, próximo do sítio em que jazia, viam-se dois objectos alongados que, de longe, a quem chegava ao salão vindo do restaurante pareciam dois casulos claros, de contornos arredondados e frouxos e medindo cerca de três palmos cada.
Eu entrara no complexo à procura de alguém e como não o encontrasse na cafeteria tinha avançado para o salão da piscina, pois era frequente as pessoas espalharem-se por ali, entretendo-se com as vistas de água ou com o chapinhar de crianças na parte menos profunda do tanque. Só quando, intrigado por aquela mancha laranja que tomava uma posição mais de cama do que de piscina, me aproximei é que compreendi que as duas formas paradas na água, uma submersa outra boiando de borco, eram crianças pequenas, crianças de colo e obviamente já afogadas.
Senti formar-se-me uma exclamação na garganta, talvez um alerta sonoro dirigido àquela mãe tão ausente, grito travado na sua emissão por ter vislumbrado, surgindo na curvatura da parte mais estreita do rim, um terceiro objecto, este flutuante e movendo-se lentamente ao sabor do suave ondulado da água. Percebi rapidamente que se tratava de uma terceira criança, do tamanho aproximado dos irmãos, mas esta ainda viva e deitada de lado quase à tona da água. O corpo estava agora muito próximo do local onde me encontrava e pude observar que a situação do bebé – tratava-se de criança dos seus cinco ou seis meses – era periclitante: de facto, embora a cabeça estivesse ainda ao rés da água, a roupa enchumaçada de água que vestia puxava-o para o fundo e a boquita, entreaberta e arfante, ficava por breves instantes abaixo da linha de água, só o nariz se mantendo desobstruído. Então quando passou por mim, flutuando como uma mala não reclamada no tapete rolante de um aeroporto, pus-me de joelhos e puxei-o para fora de água. Era uma menina, intuí pela roupa que usava e por um não sei quê feminino. Peguei nela ao colo e espalmei-lhe os ossos do peitinho numa palmada vigorosa até que um pequeno jacto de água foi gorgolejado e ela abriu os olhos para mim.
“Estás bem?”, perguntei.
Ela acenou a cabeça, ao mesmo tempo que cuspia outro golo de líquido.
“Tens frio?”
Embora me tivesse acenado negativamente, eu sabia que um dos problemas de estar imerso na água – tinha-o visto nos conselhos televisivos da Direcção-Geral da Saúde – era a hipotermia, o perigoso arrefecimento dos corpos que torna as pessoas azuis e pode ser tão fatal como as braseiras não ventiladas em ambiente rural. Como, entretanto, tinha entrado no salão uma senhora, que se quedara assarapantada ante o incidente, gritei-lhe que corresse a buscar uma toalha em que pudéssemos enrolar e aquecer a pobre criança.
Enquanto esperava abracei-a contra mim, o que expulsou o derradeiro gole de água que ela ainda manteria nos pulmões.
“Como te chamas?”, quis saber.
“Renata Sofia”, respondeu, “obrigado por me teres tirado da água...”
“Os teus irmãos não se safaram, quando cheguei já estavam naquele estado...”, disse apontando os objectos naufragados. “São teus irmãos, não são?”
“São... E aquela ali de cor de laranja, sem dar acordo, é a minha mãe...”
Entretanto a senhora chegou, esbaforida, com uma toalha que calculei tivesse arrancado a uma mesa posta, pois ouvira momentos antes o ruído de louça partida e o tilintar metálico de talheres a tombar.
“Já te sentes melhor, minha querida?”, perguntou ela a Renata Sofia assumindo o fácies compungido que se usa com os desventurados.
Renata Sofia acenou com a cabeça e recebeu com passividade desconfiada as carícias que a outra lhe prodigalizou no cabelo ainda encharcado.
“Coitadinha”, gemeu a senhora, “como te chamas, meu amor?”
“Sofia Renata”, disse a miúda do meu colo.
“Ah, Sofia Renata, que lindo nome! Tenho uma netinha, um pouco mais velhinha do que tu chamada Sofia Alexandra... Que idade tens, minha querida?”
“Seis meses e três semanas...”
Eu mantivera-me em silêncio o tempo todo, mas quando a senhora deu por finda a boa acção e se foi, perguntei à catraia:
“Ouve lá, afinal em que ficamos? Chamas-te Renata Sofia ou Sofia Renata?”
Ela estava sentada no chão ao meu lado, entretida a limpar a concha do ouvido com uma ponta da toalha, mas olhou-me com ar malandro e disse:
Renata Sofia, é claro; mas chateiam-me as pessoas intrometidas como ela. Já viste o raio de toalha que desencantou para me secar?! É que isto nem sequer algodão é, é uma espécie de tecido engomado; arranha imenso!”
“Deixa lá”, tentei consolá-la, “nem sempre do fundo do mar se consegue ver o céu...”

Imagem: Composição plástica "No fundo do mar está o céu que não vemos" da autoria de Fernando Varanda, Lisboa, 2018.




   

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