Havia
uma sala, ampla, mesas e cadeiras, um balcão de bar com bancos altos e,
contíguo, um outro espaço cujo acesso era separado do primeiro apenas pela
sugestão de passagem formada pela intersecção de um lintel e duas paredes. Esse
segundo salão era praticamente ocupado por um grande tanque de formato
reniforme em cujo centro, como se lhe tivesse crescido ali um cálculo,
destacava uma plataforma também em forma de rim. Com uma profundidade
desnivelada, que atingia o metro e sessenta na zona mais funda, supunha-se ser
uma piscina e havia quem usasse o tanque como tal, buscando após o banho as
espreguiçadeiras do relvado exterior para uma cura de sol.
Na
plataforma do tanque-piscina estava estendida, descalça, uma mulher de vestido
alaranjado, solto, que lhe chegava abaixo dos joelhos. Parecia adormecida ou
talvez, crendo na expressão geral do corpo, num estado de desalinho entorpecido.
Dentro de água, próximo do sítio em que jazia, viam-se dois objectos alongados
que, de longe, a quem chegava ao salão vindo do restaurante pareciam dois
casulos claros, de contornos arredondados e frouxos e medindo cerca de três
palmos cada.
Eu entrara
no complexo à procura de alguém e como não o encontrasse na cafeteria tinha
avançado para o salão da piscina, pois era frequente as pessoas espalharem-se
por ali, entretendo-se com as vistas de água ou com o chapinhar de crianças na
parte menos profunda do tanque. Só quando, intrigado por aquela mancha laranja
que tomava uma posição mais de cama do que de piscina, me aproximei é que compreendi
que as duas formas paradas na água, uma submersa outra boiando de borco, eram
crianças pequenas, crianças de colo e obviamente já afogadas.
Senti
formar-se-me uma exclamação na garganta, talvez um alerta sonoro dirigido àquela
mãe tão ausente, grito travado na sua emissão por ter vislumbrado, surgindo na
curvatura da parte mais estreita do rim, um terceiro objecto, este flutuante e
movendo-se lentamente ao sabor do suave ondulado da água. Percebi rapidamente
que se tratava de uma terceira criança, do tamanho aproximado dos irmãos, mas
esta ainda viva e deitada de lado quase à tona da água. O corpo estava agora
muito próximo do local onde me encontrava e pude observar que a situação do
bebé – tratava-se de criança dos seus cinco ou seis meses – era periclitante:
de facto, embora a cabeça estivesse ainda ao rés da água, a roupa enchumaçada
de água que vestia puxava-o para o fundo e a boquita, entreaberta e arfante,
ficava por breves instantes abaixo da linha de água, só o nariz se mantendo
desobstruído. Então quando passou por mim, flutuando como uma mala não
reclamada no tapete rolante de um aeroporto, pus-me de joelhos e puxei-o para
fora de água. Era uma menina, intuí pela roupa que usava e por um não sei quê
feminino. Peguei nela ao colo e espalmei-lhe os ossos do peitinho numa palmada
vigorosa até que um pequeno jacto de água foi gorgolejado e ela abriu os olhos
para mim.
“Estás
bem?”, perguntei.
Ela
acenou a cabeça, ao mesmo tempo que cuspia outro golo de líquido.
“Tens
frio?”
Embora
me tivesse acenado negativamente, eu sabia que um dos problemas de estar imerso
na água – tinha-o visto nos conselhos televisivos da Direcção-Geral da Saúde –
era a hipotermia, o perigoso arrefecimento dos corpos que torna as pessoas
azuis e pode ser tão fatal como as braseiras não ventiladas em ambiente rural.
Como, entretanto, tinha entrado no salão uma senhora, que se quedara assarapantada
ante o incidente, gritei-lhe que corresse a buscar uma toalha em que pudéssemos
enrolar e aquecer a pobre criança.
Enquanto
esperava abracei-a contra mim, o que expulsou o derradeiro gole de água que ela
ainda manteria nos pulmões.
“Como
te chamas?”, quis saber.
“Renata
Sofia”, respondeu, “obrigado por me teres tirado da água...”
“Os
teus irmãos não se safaram, quando cheguei já estavam naquele estado...”, disse
apontando os objectos naufragados. “São teus irmãos, não são?”
“São...
E aquela ali de cor de laranja, sem dar acordo, é a minha mãe...”
Entretanto
a senhora chegou, esbaforida, com uma toalha que calculei tivesse arrancado a
uma mesa posta, pois ouvira momentos antes o ruído de louça partida e o
tilintar metálico de talheres a tombar.
“Já
te sentes melhor, minha querida?”, perguntou ela a Renata Sofia assumindo o fácies
compungido que se usa com os desventurados.
Renata
Sofia acenou com a cabeça e recebeu com passividade desconfiada as carícias que
a outra lhe prodigalizou no cabelo ainda encharcado.
“Coitadinha”,
gemeu a senhora, “como te chamas, meu amor?”
“Sofia
Renata”, disse a miúda do meu colo.
“Ah,
Sofia Renata, que lindo nome! Tenho uma netinha, um pouco mais velhinha do que
tu chamada Sofia Alexandra... Que idade tens, minha querida?”
“Seis
meses e três semanas...”
Eu mantivera-me
em silêncio o tempo todo, mas quando a senhora deu por finda a boa acção e se
foi, perguntei à catraia:
“Ouve
lá, afinal em que ficamos? Chamas-te Renata
Sofia ou Sofia Renata?”
Ela
estava sentada no chão ao meu lado, entretida a limpar a concha do ouvido com
uma ponta da toalha, mas olhou-me com ar malandro e disse:
“Renata Sofia, é claro; mas chateiam-me
as pessoas intrometidas como ela. Já viste o raio de toalha que desencantou
para me secar?! É que isto nem sequer algodão é, é uma espécie de tecido engomado;
arranha imenso!”
“Deixa
lá”, tentei consolá-la, “nem sempre do fundo do mar se consegue ver o céu...”
Imagem: Composição plástica "No fundo do mar está o céu que não vemos" da autoria de Fernando Varanda, Lisboa, 2018.
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