22 agosto 2021

DE MORTUIS NIL NISI BONUM (Não faleis senão bem dos mortos)

Encontrei-o um dia numa das esquinas a nascente da rotunda da Boavista, na cidade do Porto. Visto de hoje, o paradeiro era até bastante lógico, pois ele morava a um quarteirão dali, na rua da Quinta Amarela. Mas estávamos num fim de manhã em 1969, eu tinha quinze ou dezasseis anos, não perdia tempo com detalhes desses.

Tudo quanto vi foi o meu colega de liceu Miguel Lamares, armado de um sorriso superior na cara barbada, nos olhos míopes ampliados por lentes grossas. Se comparado comigo, um tipo finguelas, ele é enorme, avantajado, há algo que lembra um urso e lhe dá um toque assustador, embora seja um bonacheirão. O Miguel está ali parado, como um poste do correio, daqueles redondos e grossos, tal se estivesse à espera de alguém que o arrancasse à imobilidade e aconteceu que esse alguém fosse eu. 

"Se soubesses o que tenho aqui..."

"O que é, Miguel?", digo, percebendo que se refere a um quadrilátero esbranquiçado que transporta encaixado no sovaco.

Ele não diz nada, olha em frente, para o passeio do lado de lá da rua, mas remexe o sovaco, revela um pouco mais e, pelo formato percebo que é um disco, um LP.

"O que é, Miguel, deixa ver..."

"Aposto que nunca ouviste nada como isto", continua ele, misterioso como um menir.

"Não sei, sei lá; se não me mostras..."

"Já ouviste uma música chamada 'Soul Sacrifice'...?”

Confessei que não.

"E uma chamada 'Evil Ways'?”

"Também não..."

"Estás ultrapassado, merdoso", concluiu com o à vontade e a sobranceria de ser uns meses mais velho do que eu. "Isto é o que vai dar... Isto é um som totalmente novo..."

Depois, como se fizesse um strip lento, permitiu que eu olhasse a capa do álbum, na qual um focinho arreganhado de leão se contornava a carvão numa caricatura em que surgiam cabeças rapadas, humanas, camufladas nas minudências do desenho. Não era preciso ser muito esperto para concluir que não iria emprestar o disco a um tipo que, afinal de contas, conhecia tão mal, mas não desisti de tentar ouvir aquilo: que raio de banda se iria chamar Santana? Até parecia uma coisa portuguesa, minhota, de rancho folclórico! Santana!?

"Se eu te levar uma cassete, gravas-me isso?"

"É uma hipótese...", respondeu.  

É óbvio que acabou por gravar, que o Miguel, apesar do gigantismo intimidante e dos modos ásperos, era um coração de leão, largo e bondoso.

O tempo tiquetaqueou, frequentamos agora Universidades diferentes (ele em Matemáticas, eu em Medicina) mas continuamos a cruzar-nos no mesmo café, onde arrastamos o nosso tédio pelas mesas. E de um desses enormes bocejos, nasceu a ideia de irmos dar uma volta longa, quem se daria conta de que perdíamos umas aulas enfadonhas, ainda por cima a Páscoa iria, em breve, riscar a Primavera de pétalas e céus de anil.

Arrancámos no meu Fiat 128 sem outro destino fixo do que virar a tromba azul do carro para sul. A combinação dos quatro ocupantes do automóvel era bastante improvável, alguns de nós mal conhecia alguns dos outros: ia eu, ao volante, o Miguel a meu lado, para que lhe coubessem as pernas e, no banco de trás, seguia o Paulo (uma gralha matraqueante e excêntrica, que não se calava um minuto) e, cosendo-se com o assento, o Vítor, aluno de engenharia, um tipo pequenino e cabeçudo, tímido como um colibri, que não abria a boca senão para gargalhar um murmúrio a cada disparate que o Paulo soltava, a cada réplica, cortante ou sarcástica, que um dos ocupantes da frente dava. Assim deambulámos por quase uma semana e, no Algarve, o ar já estava tépido e fragrante do odor das laranjeiras... Ficámos dois dias por Faro, instalados na Pensão Nautilus, de onde escrevi um postal endereçado a mim próprio, por gosto em captar o momento e para chocar os meus pais.

Nunca, nunca mais vi o Miguel e, apesar de ir perguntando a seres coetâneos com quem me ia cruzando, nada mais soube sobre ele. A imagem que me ficou da sua pessoa, cristalizada na memória, foi a daquele tipo de cabelo escuro, comprido e algo indomável nas pontas encrespadas; o bigode farfalhudo; uns olhos bondosos camuflados atrás do fundo da garrafa das lentes. Já neste século, usando o Facebook, inseri o seu nome e observei as opções que me foram devolvidas pelo motor de busca... Havia um Miguel Lamares, residente em Portimão, professor de liceu, que talvez pudesse ser ele. Mas não podia ter a certeza, a confidencialidade dos dados não me permitia ver fotos, ter acesso a mais elementos. Resolvi mandar uma mensagem, particular, que o Facebook deixava fazê-lo. Nunca obtive resposta.


Presente, Agosto de 2021: chega-me a notícia da morte dele, aos 69 anos, lá pelo Sul onde estivemos juntos uma vez; residia em Portimão, onde era professor no liceu local há trinta anos. A notícia do jornal electrónico é encimada por duas fotos: à esquerda, a preto e branco, o Miguel que eu conheci nesses dias dos nossos vinte anos, e, à direita, um Miguel, a cores, que não reconheceria se por ele passasse numa esquina a nascente da Rotunda da Boavista. Este último Miguel é um bocado careca, não usa óculos e os seus olhos, enfim revelados, são atentos, sorridentes e hospitaleiros. Nada que não estivesse à espera.

 

 

6 comentários:

  1. Adorei ler o texto! Mil obrigadas! Sou a filha, Inês :) Esse Miguel Lamares no FB era ele, ele não ligava nada a redes sociais, dai a ausência de resposta, muito possivelmente. Adorei ler a descrição dos vossos 20 anos... e a pessoa descrita, é sem dúvida nenhuma a memória e a representação que tenho do meu pai. Gostava de saber mais dessas histórias!

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  2. Lindo e comovente
    Uma partida demasiado prematura ��

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  3. Olá Inês, muito obrigado pelo comentário. Talvez já saiba isso pela Pequi, mas em 2014 escrevi um livro chamado Não Venhas Tarde (a crónica de uma viagem por terra do Porto até ao Nepal, feita em 1976) em que falava do Miguel, a propósito da música do Santana, uma música que se ouvia muito por essas paragens. Na sequência disso tentei procurá-lo e entrar em contacto e aí essa cena da mensagem do Facebook. Não deu em nada e só consegui saber novidades dos Lamares quando encontrei a Pequi, também através do Face. A imagem que guardo do seu pai, como outros que o conhecíamos nessa altura, é a de um falso resmungão, um pseudo-bruto tímido, mas nunca me convenceu muito essa imagem e nunca deixei de ter prazer na companhia e de guardar uma imagem terna dele. Daí o post. Besito

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  4. Assim se prova que o Miguel era uma pessoa muito, muito especial. Deixava marca profunda em quem tinha o privilégio de o conhecer - eu tive sorte, conheci-o bem. Apesar de nos encontrarmos muito menos do que devíamos...

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