28 setembro 2021

VOU-TE CONTAR: 76. Coincidências

Em um dia lastimosamente chuvoso do mês de Janeiro de 2021 olhei, por uma última vez, o interior da casa que acabara de esvaziar e fechei a porta sobre mim. Aos meus pés, no lado exterior da soleira, quedava o caixote de cartão onde fora enfiando aqueles pequenos objectos que, embora sem utilidade previsível, não consegui deixar no contentor de lixo mais próximo. Peguei o caixote, meti-o na mala do carro e virei costas ao local em que morara até abandonar o ninho paterno e onde, sem ter de me interrogar, entrara e saíra durante os últimos cinquenta anos.

Um dos despojos abrigados no caixote consistia em dois ou três maços, ainda cintados, de cartões de visita do meu pai, pequenos rectângulos de cartolina branca de 9 centímetros de comprimento por 5 de altura. Como deitar fora, assim, sem mais, algo tão tremendamente pessoal? E, arrastando-os comigo, olhando agora para eles entre as paredes da minha casa, como dar-lhes serventia sem vir a ser assaltado pela sensação de que o fazia indevidamente? Uma coisa é passarmos um traço de caneta sobre o nosso nome num cartão - pretendendo com esse gesto suspender ou atenuar a nossa persona - outra, muito diferente, é riscar o nome por outrem, por uma pessoa que não pertence já sequer ao mundo dos vivos, mas cuja lembrança permanece viva em nós. Seria o equivalente a negar-lhe a voz. Tendo decidido que os conservaria, resolvi então que os utilizaria como marcador de livros, para rabiscar notas pessoais ou memorandos, enfim, como algo prestável mas usado somente em circuito fechado e que só poderia ser prescindido após ter cumprido a sua função de mensageiro. Eram algumas centenas, chegar-me-iam para muitos meses, porventura alguns anos...

Passei a tê-los em profusão ao alcance dos olhos, sobre a secretária, a encontrá-los pousados em diferentes locais da casa, esquecidos em cima de uma mesinha acabado que fora o livro em que usara um deles para marcar páginas. Mas, um dia, dei comigo a olhar atentamente para um desses pequenos rectângulos, pois, por razões que ignoro, a sua individualidade descera sobre a minha consciência. Reparei então, e pela primeira vez, que no cartão constava apenas o nome nu do meu pai, sem o atributo prévio que costumava ilustrar o papel de receita ou cartões anteriores em que a sua profissão de médico era assinalada com um 'Dr.'. Observei também que na morada inscrita no rodapé constava já um código postal de sete dígitos e um número de telefone com nove algarismos, o que me permitiu concluir serem estes cartões relativamente recentes, pois datava de 1999 essa alteração na extensão dos números de telefone. Daí o pensamento saltou rapidamente para o meu pai, falecido em 2007, e para esses dias em que terá decidido mandar substituir os velhos cartões de visita por novos cartões em que toda a vida anterior, vincada sob traços de uma profissão, fora mandada apagar. Conhecendo-o, estou certo de que essa decisão terá sido longamente premeditada e o instante em que a tomou sentido como um degrau que se desce num caminho até pouco antes ascendente, pois que a existência passa depressa como um sopro. Mas o meu pai não era pessoa de se anunciar, de se queixar, de tudo isso restou apenas um vestígio e a minha interpretação.


Intrigado e impressionado pela revelação silenciosa, vasculhei os meus papeis na tentativa de encontrar um papel de receita dos seus dias activos como médico, queria comparar o que constava num e noutro desses documentos de uso tão exclusivamente pessoal e onde não havia lugar a manuseio de terceiros. Encontrei, quase perdida, uma única folha amarelada, em cujo cabeçalho está inscrito o nome, a actividade médica, e duas moradas, uma profissional e a outra pessoal. A primeira indica o seu consultório na Rua de Sá da Bandeira, no Porto, um prédio de esquina, de fachada arredondada, onde, em criança, fui levado frequentes vezes, pois no mesmo andar - o terceiro - ficava também o consultório do meu pediatra, do pediatra das minhas irmãs. Desses dias longínquos e desse local retinha imagens remotas e vagas, a necessitar que uma nova visita as refrescasse e cristalizasse com nitidez...  

Havia um elevador estreito, forrado a madeira escura, com uma porta de correr de malha de ferro que produzia, ao ser movimentada, o ruído de sabres entrechocando-se, armaduras de metal. Depois, à saída do elevador, erguia-se uma porta em cada lado do átrio, que na sua mudez expectante de ferragens e vidro martelado, quase gritava que a responsabilidade pelo mundo onde entraríamos seria totalmente de quem chegava e escolhia à esquerda ou à direita... Mas a nossa mãe sabia a campainha a que tocar e quando a porta se abrisse com um traquejo eléctrico estaríamos num vestíbulo onde, atrás de um balcão de madeira (tão escura como a do forro do elevador e a do painel da porta), se sentava uma senhora que, ruidosamente, nos saudava, envergonhando-nos perante as outras pessoas que esperavam consulta numa sala de porta aberta e, sem mais nada para fazer, se entretinham a ouvir quem chegava e qual o seu destino em termos dos quatro ou cinco médicos que ali prestavam serviço.

Mesmo se o fito da visita não fosse o nosso pai, mas, antes, consultar o médico de crianças, esta não aconteceria sem que, depois, ele fosse alertado da nossa presença, fosse pela recepcionista, fosse pelo próprio pediatra que, finda a consulta, atravessaria o espaço para ir bater à porta do nosso pai para o informar que ali estávamos e qual o resultado do nosso estado de saúde, informação que ficaria também na posse do doente sentado em frente ao meu pai e ressoaria no lençol da marquesa onde se deitavam, se enroscaria no tampo rotativo, para ajustamento da altura, do banco e, finalmente, pousaria numa das prateleiras do armário envidraçado onde eram guardados os instrumentos do ofício e as amostras dos medicamentos.

À saída, fechou-se a porta desse terceiro andar em Sá da Bandeira, bateu-se a porta do elevador, encostou-se a pesada porta de ferro forjado e vidro martelado da saída e uma dessas vezes, sem o saber, fora a última em que ali se entrara. Pela mesma última vez fechou-se depois a porta da casa onde eu morara e a tampa da bagageira após aí ter acondicionado o caixote com os cartões de visita do meu pai. 

Após a sua morte tornou-se necessário tratar de heranças e partilhas e quem melhor do que um advogado competente para desenrolar esse novelo, aliviar do algo doloroso que é olhar esses assuntos do ponto de vista legal? Saído do Porto há mais de trinta anos, eu não conhecia ninguém, mas o Vasco e a Margarida, filhos da minha irmã mais velha, sabia de um, a quem costumavam recorrer, excelente, segundo diziam de serviços que lhe tinham sido prestados. Marcou-se uma entrevista e um dos meus sobrinhos forneceu o nome e a morada aonde me dirigir. 

Era na Rua Sá da Bandeira e ao chegar ao local e confirmar o número da porta olhei com um misto de espanto, temor e expectativa o prédio arredondado, de esquina, onde ficara o consultório do meu pai, do pediatra... O andar do advogado, dizia o papel que eu guardara na carteira, ganhava agora uma luz de impossibilidade: era o terceiro, como só acontece nos filmes e nos contos.

E o elevador continuava a ter uma porta de correr, a ser forrado a madeira escura e, em cima, o átrio mantinha as mesmíssimas portas de vidro martelado e ferro forjado e até a campainha continuava a soar como um besouro sonolento. Mas tudo tinha um ar recente, classificado, cuidado: a decadência dos anos corridos não afectara nem entristecera o local, provavelmente fora tudo restaurado por alguém sabedor, atento e reverente ao que encontrou. 

A porta abriu-se com um trincolejo e, atrás de um balcão de madeira escura, uma menina sorria e, pela hora, adivinhava que eu seria fulano, à procura do Dr...

"O mundo é pequeno", disse o advogado quando, sem o conseguir evitar, lhe transmiti a incredulidade pela coincidência do local onde o encontrava.

"Tinha uma ideia que o consultório do avô ficava por aqui, mas não sabia que era neste prédio e, muito menos, neste andar", comentou a Margarida com naturalidade, rodando as páginas do seu Moleskine e preparando a esferográfica.

Muitos meses corridos sobre esta primeira consulta jurídica e na sequência dos seus frutos regressei à cidade para a escritura da venda da casa de onde levara os cartões de visita. Era inverno outra vez, chovia e rondava no ar aquela bruma espessa de que o Porto é pródigo. Ao contrário de outros tempos, em que os cartórios eram avaros e rígidos como repartições, agora eles abundam pela cidade, o advogado pôde escolher o mais conveniente e o local parecia-se mais com uma agência de viagens: tinha-nos calhado um vizinho do Mercado do Bom Sucesso, cuja existência eu ignorava de todo. No final, ao sair para o exterior, a bruma tinha-se dissipado um pouco e embora continuasse a chover era claro o pedaço de cidade perante mim. Do outro lado da rua, a escassas dezenas de metros, erguia-se um prédio onde nos andares mais baixos está instalado um centro comercial, espaço que se pode atravessar até sair por uma das portas das traseiras que deita para a Rua da Meditação, artéria curta e discreta cujo topo é constituído pelo muro do cemitério de Agra Monte. Ao contrário do que tudo faria crer, o meu pai não escolhera o jazigo de família do cemitério mais próximo da sua antiga casa, nem sequer o outro Prado do Repouso onde jaziam as cinzas da minha mãe, falecida uma dúzia de anos antes dele. Por razões que nunca revelou, optou por uma campa naquele cemitério cujos ciprestes e cimos de jazigo eu podia vislumbrar dali, à porta do cartório onde a sua casa, por mãos que ele conhecera bem, mudara para mãos que ele nunca conheceria. 

© Fotografias de pedro serrano, Porto 2018.

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