21 novembro 2010

Efeitos secundários [excerto de entrevista]

ML (jornalista): Pode-nos falar um pouco mais sobre a sua experiência com os doentes de lepra?
PS (entrevistado): Como sabe, um dos efeitos secundários do 25 de Abril foi a liberdade. Uma das facetas do exercício em prol desse desiderato passou por abrir as portas anteriormente fechadas, devolver à comunidade todos os seus filhos… Isso começou com os presos políticos, continuou pelos loucos e acabou nos leprosos.



Do ponto de vista técnico, este relaxe era bastante viável, pois, no que aos malucos dizia respeito, o arsenal terapêutico dos anos 70/80 permitia manter os doentes mentais, mesmo os mais assanhados, numa contenção compatível com a vida ao ar livre. Quanto aos leprosos, a sua libertação era igualmente possível: o seu número já era, em Portugal e mau-grado a ditadura, muito diminuto, sabe-se que o contágio é difícil e lento, e as drogas usadas no tratamento da doença são muito eficazes, mesmo em ambiente fascista.
Quem, curiosamente, não achou muita graça a todo este jorrar de liberdade foi a dita comunidade que, posta em sossego e sem ter sido preparada, lhe viu ser devolvida, num repente, antigas dores de cabeça e antiquíssimos horrores.
ML: Sim, mas voltando aos leprosos…
PS: Como sabe, a Revolução dos Cravos foi em 1974 e uma escassa meia-dúzia de anos depois arranquei eu para Trás-os-Montes, com a incumbência de dirigir o Centro de Saúde de Regato da Mágoa, o primeiro dos cinco Centros de Saúde de um projecto Luso-Norueguês no âmbito da Saúde. A Noruega, depois de anos a apoiar os movimentos de libertação africanos, sentia-se, agora que Portugal  abraçara a senda democrática, de consciência pesada e resolveu investir no nosso atrasado país. E, como se faz com qualquer país subdesenvolvido de gema, fê-lo investindo numa área geográfica onde a mortalidade infantil rondava as 7 mortes por cada 100 crianças com menos de um ano de idade, onde havia tétano em recém-nascidos, surtos de febre tifóide, o sarampo matava que se fartava. Abundava o alcoolismo e a subnutrição infantil, em cada 100 crianças em idade escolar 75 abrigavam parasitas na barriga, havia tuberculose de escarro sangrento e, ah!, lepra.
ML: Pois… Mas se pudesse focar-se nos leprosos, no tal Sr. António Veiga de que me falou ao telefone.
PS: Como sabe, a responsabilidade tecnico-hierárquica pela doença de Hansen (outro nome para este flagelo) competia, como ainda compete, à Direcção-Geral da Saúde. Havia, até, um programa vertical de combate a esta micobacteriose tão indesejável. Assim, mal aterrei em Trás-os-Montes (Outono de 1980, os castanheiros chamejavam a paisagem e os seus frutos sado-masoch, revestidos a couro e pico, pejavam os solos) recebi um contacto dos Serviços Lisboetas, a indagarem da minha disponibilidade para ser responsável pelos 10 leprosos registados no concelho. É que queriam passar a pasta...
ML: A pasta?!
PS: Sim. Como sabe, até pouco tempo antes todos os leprosos do país estavam confinados numa instituição orientada para o efeito, uma quinta ali para os lados de Cantanhede, conhecida pela Tocha (o nome da localidade mais próxima). Todos os leprosos do país se achavam ali internados, numa espécie de turismo rural prolongado. Famílias inteiras, a lepra – devido ao seu modo de contágio lento e íntimo – é uma doença de grande incidência familiar, hospedadas e tomando a sua medicação em regime muito confortável para quem trata (podia-se controlar uma toma observada da medicação) e para a sociedade, que podia andar descansada pelas ruas do país sem risco de se cruzar com esses descartáveis ambulantes, que já nem campainha ao pescoço eram obrigados a usar, como acontecia nos previdentes tempos da Idade Média!
Com o 25 de Abril toda essa malta foi devolvida à comunidade, até porque já eram poucos e tudo aquilo ficava muito caro, não sei, até, se já não começava a tilintar a ideia de fazer da Tocha um hotel de charme, albergando um celebrativo e nostálgico bar chamado Under My Skin.
A comunidade, como sabe e como lhe dizia no princípio desta agradável troca de impressões, não achou graça a esta devolução e, o que é mais curioso, os leprosos também não! Por um lado, eles imaginavam bem como iam ser recebidos por parentes e vizinhos, por outro, alguns dos doentes mais novos não tinham conhecido na vida outro lugar a não ser a quinta da Tocha, onde chegou a haver escola e tudo. Era, para todos os efeitos, o seu (quero dizer: deles) lar.
Foi isto que herdei, como, calculo, outros colegas terão herdado semelhante no resto do país. Dez leprosos, mais os medicamentos para os tratar; a responsabilidade de os manter controlados, a obrigação de comunicar o surgimento de novos casos, o evoluir dessas duas mãos cheia de doentes, passe a imagem, para uma cura ou para a morte.
Nada disso se revelou muito difícil. Todos eles, convidados a deixar a Tocha há relativo pouco tempo, estavam mais do que interessados em continuar o tratamento e os medicamentos não se vendiam nas farmácias, era o Centro de Saúde que guardava o stock e o distribuía de acordo com as necessidades. Alguns dos doentes surgiram no Centro de Saúde por iniciativa própria, a outros escrevi pedindo que aparecessem, a um ou outro, mais tímido, foi a equipa do centro de saúde procurar.
Os que apareceram espontaneamente foram recebidos, quase ao modo iraniano da pedrada, pelo pessoal da secretaria. A primeira vez que isso aconteceu, envergonhado e logo que discorri a motivação daquele alarido, fui procurar o indesejado em causa ao jardim, convidei-a para entrar, recebi-o no meu gabinete de director.
Quem tinha sentado à minha frente era um senhor delicado, com um cabelo branco-de-neve cortado à escovinha e uma face onde luziam uns olhos azuis inteligentes, um deles algo riscado pelo tom clara-cozida de uma catarata. Chamava-se António Veiga, tinha uns bem conservados 81 anos e, enquanto falava com ele, eu tentava, disfarçadamente, encontrar no seu corpo alguns dos psichés que associamos à lepra, talvez ver cair-me à frente dos olhos o seu nariz. Nada, o que mais impressionava naquela figura era o ar arguto, o pensamento claro, a pose aristocrática; a camisa de colarinhos engomados e tesos, própria para ir à vila. Depois... Bem, olhando com atenção, o Sr. Veiga tinha as sobrancelhas um tanto rarefeitas, a arcada supraorbital era um nada reforçada, o que lhe conferia um fácies remotamente leonino; talvez lhe faltassem duas ou três pontas dos dedos (já não me lembro) nas mãos que se exprimiam tão condizentemente com o discurso.
O Sr. António Veiga era o mais velho de todos os meus leprosos, como tal todos os outros, por terem começado a beneficiar dos tratamentos mais cedo na vida, tinham ainda menos sinais visíveis da doença. Alguns não tinham sinais visíveis de todo e queixavam-se apenas de alterações da sensibilidade cutânea.
Nesse dia, o da primeira visita de um leproso ao Centro de Saúde, instituí uma regra clara: de cada vez que aparecesse um desses doentes, o procedimento passaria por o conduzirem ao gabinete do director, onde este seria recebido e orientado para a prestação de cuidados necessária. Sempre, para acabar de todo com os psichés dos tempos da Outra Senhora.
Nessa época (1980/1984) o concelho de Regato da Mágoa era, juntamente com o de Alcoutim, o concelho mais atrasado de Portugal e os seus indicadores de desenvolvimento e saúde faziam lembrar a África subsaariana actual. Mas, mesmo dentro do concelho, havia assimetrias e os meus 10 doentes leprosos eram, na sua maioria, originários da freguesia mais a Norte, uma zona de floresta onde os lobos e os javalis se move livremente (um pouco do ambiente dessa zona pode ser vislumbrado no meu blogue no texto Remédio Santo).
ML: Passados todos estes anos, tem uma ideia do que é feito dessa gente?
PS: Como sabe, saí de Trás-os-Montes no Verão de 1984. Nunca mais soube nada dessa gente. Durante os anos em que lá permaneci, o Sr. António Veiga visitava-me com certa regularidade; umas duas ou três vezes por ano, que a aldeia dele não tinha transportes para a vila e ficava perdida no meio da serra. Conversávamos um pouco sobre tudo, ele era um homem sábio. Numa dessas visitas ofereceu-me um poema, escrito, numa caligrafia trémula e infantil, em papel pautado. Um poema sobre a sua sorte de doente, sobre a vida e a condição humana, onde a lepra é apenas um fait-divers entrevisto. Não perdi o rasto a esse  poema, pois usei-o como epígrafe num artigo que viria a publicar sobre o tema da Medicina Popular.
ML: Será que poderíamos ter acesso a esse poema?
PS: Mando-lhe ainda hoje, se me deixar o seu mail...
   Sofro da minha cabeça
   Ou da coluna vertebral
   Quem uns dias anda bem
   Nem sempre anda mal.
   Agora a respeito à minha vista
   Ando sempre com azar
   Dizem-me que tenho de cegar para me operar
   E isto é um caso que me faz desanimar.
   Já não me importa a vida
   Nem de quem dela critica
   Tenho o estômago cheio
   De remédio da botica.
ML [extracto de mail]: Um muito obrigado pelo envio do poema. Sabe o que se terá passado com o seu autor?
PS [extracto de mail]: Tendo em conta a idade que tinha à época (81 anos) e tendo-se tudo isto passado há cerca de 30 anos, calculo que o Sr. Veiga se passeie agora por pastagens mais verdes, que tenha despido a sua pele magoada e que a sua face, levemente leonina, sorria aos outros cordeiros que também por ali  descansam.

Fotos, de cima para baixo: (1) © Pedro Serrano, Lisboa (2007); (2) Mãos de leproso, fotógrafo desconhecido. A foto foi obtida em blogue da internet, que a usa sem citar a fonte. Se algum dia a encontrar rectificarei a sua autoria.

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