29 maio 2011

CASAMENTO À CHUVA












Em consonância com a velha paixão do noivo pelo Japão, as mesas onde decorreu a boda ostentavam nomes como Samurai, Tóquio, Kyoto; e o próprio design do bolo de casamento era uma alusão ao país do Sol Nascente… Na minha qualidade de padrinho do R., fiquei na mesa principal, a das Carpas, signo de longevidade, em companhia dos nubentes, dos avós e restantes padrinhos, sentado entre a mãe da noiva e a mãe do noivo, uma tremenda responsabilidade.
No final da festa, já perto de meia-noite, saltando para o papel de chauffeur de limusina, conduzi os recém-casados a Lisboa, onde iam pernoitar antes de voar para a lua de mel num país do Mediterrâneo. 
A noite, como o dia, esteve incerta e, no regresso, percorri os 80 km que me separavam de casa entre bátegas de água e tranches de névoa, a auto-estrada quase deserta e a minha mente, como muito me acontece quando guio sozinho e em piloto automático, vogando por tudo o que tinha conduzido até àquele casamento à chuva, uma história que se iniciara uns quase trinta anos atrás.
Em meados dos anos 70, como aconteceu com muitos outros conterrâneos seus, a Vera trocou o Brasil por Portugal, para aqui terminar a sua licenciatura em Medicina. Vinha lá de cima da Rondônia, e antes de se aventurar na Medicina fora, por uns breves anos, professora primária numa escola. Lembro-me vagamente dela, de a ver nos corredores da Faculdade de Medicina, no Porto, mas o nosso curso tinha umas centenas de alunos e nunca cheguei à fala com ela.
Voltei a encontrá-la em 1984, quando migrei para o Sul do país e vim parar ao mesmo centro de saúde onde ela trabalhava, e foi a primeira amizade que fiz cá por estes lados. Nesses dias ela tinha um filho de dois anos (R., o noivo) e estava grávida de uma menina que, muitos, tantos, anos depois viria a ser a primeira namorada adulta do Zé João, o meu filho que ainda estava longe de existir nessa tarde em que, recém-chegado a esta terra, ela se disponibilizou para nos ajudar a encontrar casa e nos recomendou com entusiasmo a vivenda com venezianas e vista para o mar onde hoje escrevo este texto.
Nesses dias em que, após quatro anos de Trás-os-Montes, eu começava vida nova entre as colinas suaves do Oeste, brilhando verdes entre o muito azul céu e mar de Agosto, os sentimentos da Vera ondulavam em tristeza. O seu casamento correra mal e, para se afastar do epicentro do desgosto, trocara Lisboa por uma vila obscura da província, para recomeçar tudo de novo, sozinha, um menino nos braços, outra na barriga.
O tempo passou e curou ou, pelo menos, amaciou as feridas e a Vera casou de novo, a Cristiana nasceu, logo a seguir apareceu o Zé João e ambos se emporcalharam, entre agapantos e rosas, nos canteiros do quintal aqui de casa, os quatros a correram e gritaram de susto nas águas verdes do mar aos pés das nossas casas vizinhas.
Horas, dias, meses, outros anos se escoaram, as quatro crianças foram crescendo inseparáveis e, uma noite de Junho, sem aviso, eu abati-me como um saco, quase assassinado por um coração que se preparava para deixar de bater de modo definitivo. A Vera veio a correr, logo que a João, minha mulher e mãe do Zé João, lhe telefonou aterrada e, no trajecto sacolejante de uma ambulância, é a voz dela que lembro nos breves momentos de emersão da consciência, o seu aflito sotaque brasileiro perguntando, enquanto me enfiava comprimidos sob a língua e regulava o volume de oxigénio para a minha boca e nariz:
“Pedro, me ouve? Está se sentindo melhor?”
Do lado de lá, cego, flutuando para fora do meu corpo em direcção ao nada, eu acenava que sim, que me sentia bem (pode ver esta história em Coração Independente). Estações viraram folhas como páginas de livro, as nuvens correram nos céus como cavalos alados, quantas marés vazaram e voltaram a encher na Praia da Areia Branca. Numa dessas páginas de calendário, o segundo casamento da Vera acabou num estertor doloroso, os dois miúdos, que, perdido o biológico, muito se tinham ligado ao novo pai de afeição, ficaram desolados nessa espécie de segunda orfandade. Uns anos depois o mesmo  negrume bateu à porta do convalescente, do novel ressuscitado em que eu me transformara.
Adiante, que eu comecei a escrever este texto com a intenção de falar de um casamento à chuva e confidenciar aos meus ouvintes as reflexões que, como uma música que se ouve ao longe, cruzaram a minha mente, depois de deixar o R. e a Denise num hotel de Lisboa.
Ontem, no casamento do filho mais velho da Vera, o meu filho Zé João, namorado da Verinha, a filha do meio da Vera, músico de profissão, ofereceu como presente aos noivos o concerto que pontuou a boda e, para isso, trouxe do Porto com ele um guitarrista tripeiro, um contrabaixista minhoto e um baterista polaco.
Na enorme sala, sentados pelas mesas atoalhadas de branco onde circulava alegremente o champagne e as conversas, marcaram presença os dois ex-maridos da Vera, pais dos seus três filhos, a actual esposa do primeiro marido e, também, sensatamente distribuída a outra mesa, a seguda ex-mulher dele, a senhora pela qual, há muitas luas atrás, o homem deixara a Vera com um Nuno ranhoso pela mão e uma Verinha ainda sem nome num ventre proeminente. Na nossa mesa, ao lado direito da Vera, estavam sentados os primeiros sogros da Vera, avós paternos do noivo e da Verinha e, cuidadosa e carinhosa, a Vera levantava-se amiúde para ir encher os pratos dos velhos senhores com iguarias que não lhes fizessem demasiado dano nesse dia de chorosa emoção. 
De vez em quando, eu próprio me levantava para ir aos aparadores do buffet servir-me mais um pouco e, proveitoso, o meu olhar envolvia a sala, tomava a temperatura do ambiente para, baseado em evidência, poder serenar o R. e a Denise que, sempre que se cruzavam comigo, me segredavam:
“Achas que está a correr tudo bem?”
Lá ao fundo, em cima do pequeno palco, o conjunto do Zé João, tocava temas bossa-nova, pois toda a família brasileira da Vera andava por ali e o novo namorado da Cristiana (a filha mais nova da Vera) é brasileiro. Pela sala, correndo incansáveis entre o palco e as mesas, os meios-irmãos mais pequenos, filhos dos novos casamentos dos vários ex-maridos e ex-mulheres, corriam e gargalhavam e a Maria e a Ágata, também elas meias-irmãs, deslizavam de braços entrelaçados, elegantes e leves na sua juventude e beleza.
Numa animada mesa, só de mulheres, sentava-se a João, minha ex-mulher, mãe do meu filho que é namorado da filha da mãe do noivo, e numa outra, quase em frente, pisquei o olho ao Jorge (segundo ex-marido da Vera e pai da Cristiana) e acenei à mãe dele, que todos conhecemos e tratamos por avó Mimi e que é também ex-sogra da Vera.
Confusa, cara ouvinte? E, em caso afirmativo, confusa com qual detalhe? Com tanto nome, ligações e ex-ligações familiares ou com a presença no casamento de gente que tão cruelmente, às vezes simplesmente tão tolamente, bateu e fez bater os outros com a cabeça nas paredes?
Ah, pois, mas essa é a qualidade não logicamente explicável da minha amiga Vera (a mãe, que não a filha, pois a filha é a namorada do meu filho Zé João) que, numa mágoa sem sombra de mágoa, tem o dom de reunir à sua volta toda a galeria dos seres que fizeram ou fazem parte da sua vida.


© Fotografias de Pedro Serrano, 28 Maio 2011. De cima para baixo: (1) Bolo de noivos japonês; (2)  Vera; (3) Maria e Ágata; (4) Aliança da Denise nas mãos de menina-das-alianças.




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