24 março 2012

VOU-TE CONTAR: 48. TELLING TELES


Marco Aurélio (121-180 D.C.)
         Repara agora no que tens debaixo dos olhos
                                  Marco Aurélio, Pensamentos


Passou já demasiada água sob a ponte e nada, para além do tédio, se passava nessas visitas que me prendesse a atenção e, então, as minhas memórias do assunto são perecíveis como os fragmentos de tecido com que Fifi presenteava os filhos do velho amigo.
Nos longas semanas do mês de Setembro que sempre passávamos na terra do meu pai, nos arredores de Viseu, havia um ritual que era preciso cumprir em cada ano: ir visitar os Correia Teles a Fornos de Algodres, uma terra na ponta de uma estrada cheia de curvas. A mulher, relembrou-mo a minha irmã Clara, chamava-se Alzira e o marido Alfredo, nome que assentava bem melhor à sua compleição e temperamento do que o Fifi pelo qual era tratado. Moravam numa casa à beira da estrada e o que melhor recordo do lugar é a sensação de atravessar uma tarde onde imperava um marasmo só interrompido pelo zunido sonolento de moscas barradas por vidraças de janelas.
Fifi era um tipo esgalgado, aparecia-nos enfiado em fatos demasiado largos e com cortes que já não se usavam, o cabelo, a ficar ralo, esticado sobre a cabeça à custa de brilhantina, uns olhos, esverdeados como águas paradas, afundados na cara chupada de ulcerado gástrico. A mulher não destoava...
Ao fim do dia, desfolhando no banco de trás do carro catálogos de amostras de tecido (Fifi era dono de uma fábrica), regressávamos aliviados a Queirã. Acho que até o meu pai, que era quem nos arrastava para aquilo, se sentia aliviado, tornando-se mais loquaz à medida que o nosso boca-de-sapo serpenteava em direcção a Viseu e Fornos de Algodres se esfumava na poeira.
Mas, enfim, o que a minha mãe nos explicava como justificação daquele massacre era que Fifi era amigo do nosso pai desde a sua juventude, desde os tempos em que ele andava no liceu. E eu e a Clarinha silenciávamos nesse espanto do nosso pai – de Fifi Teles! – ter alguma vez andado no liceu....
Graças aos sete anos que penou no seminário, o meu pai só ingressou no último ciclo do liceu já tarde, numa idade em que os alunos já se estão a passar para a universidade. A sensação de libertação que acompanha essa mudança para a vida civil é notória nas descrições que o meu pai regista no diário dos seus vinte anos, agenda que encontrei, depois da sua morte, camuflada no meio de todas as outras agendas que conservou, numa das gavetas da sua secretária.
Nessa agenda há algo que chama de imediato a atenção: muitas das entradas são redigidas em inglês, um inglês de neófito, algumas delas são até mistas: o texto mistura inglês e português numa mesma entrada! À medida que a percorremos a gente descobre o motivo: o meu pai usava o inglês como código, para proteger de olhos alheios (que de línguas estranhas só conheciam as mortas) aspectos mais íntimos da sua existência:
“I spoke three times to Amilosi.”
“I wrote to Amilosi.”
“I saw Amilosi today.”
E, precipitava-se o mês de Fevereiro para a primavera, de repente esse misterioso nome brota da agenda como trepadeira, sem percebermos de onde vem mas descobrindo muito rapidamente tratar-se de uma personagem feminina, e também que aquele “spoke” talvez refira telefonemas, pois quando estava ao vivo com ela o meu pai preferia o “saw” ou o mais específico e satisfatório “went to the cinema with Amilosi and sat down near her”.
1937.
No desconhecimento objectivo de quem será aquela misteriosa donzela, há, no entanto, algo na leitura que nos faz suspeitar de uma proximidade com um tal Teles, nome que o meu pai cita constantemente e com quem refere ter estado, ter saído, ter conversado...
“Fomos, eu o Teles e o Rogério Teles para lá da estação beber uma célebre garrafa de champanhe acompanhada de pastéis de Vouzela...”
Só em 6 de Maio o mistério nos é desvendado:
“Fui à festa da Senhora da Saúde onde prendi uma Mademoiselle, Maria da Luz Teles I love you.”
e ficámos a perceber que a misteriosa Amilosi é, para além de irmã do companheiro e amigo Alfredo Teles, uma rapariga solidária e generosa:
“ I spoke to Amilosi who was no cravanço para os tuberculosos.”
A 12 de Maio, uma quarta-feira, o meu pai “asked her a photograph”, mas dessa fotografia, ou da simples informação sobre se o pedido foi correspondido, perdeu-se o rasto, assim como de Amilosi, uma vez que as raras entradas da agenda de 1937 após o Verão deixam de a referir de todo, como se com a chegada do Outono o vento tivesse começado a soprar noutra direcção. 

© Fotografia: Fotógrafo desconhecido, 1937.

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