17 março 2012

VOU-TE CONTAR: 47. TROCADO EM MIÚDOS


De todos os miúdos que, sentados ao redor do bispo, pasmam para a objectiva da máquina fotográfica com uma expressão entre o bovino ou o alucinado há um, único, que parece olhar para fora da fotografia como se afirmasse pela pose e pela expressão: o meu enquadramento não é este!
Reparem nele, no extremo esquerdo da fotografia, de pé, quando era de idade para estar no grupo dos sentados, encostado aos grandes e cabendo à justa na imagem como se chegara atrasado para a foto com a sua nova família. Aposto que a chapa foi tirada num Domingo, após a missa, e que o senhor bispo honrou muito os presentes ao posar com eles sob as esquálidas janelas do Seminário de Viseu.
Durante a longa vida do meu pai nunca pus os olhos nesta fotografia ou soube, sequer, da sua existência. Topei com ela, objecto único dentro de uma pasta de elásticos, ao arrumar os despojos do seu escritório, mais de dois anos eram passados sobre a morte dele, e já todos os papéis prioritários tinham sido catalogados; todas as fotografias dos álbuns de família rememoradas e postas a resguardo da humidade de uma casa que se estava a fechar para o mundo.
Ninguém sonhava que o meu pai tinha esta foto nem compreendia qual a razão por ser guardada longe dos olhares. Nunca vira uma imagem sua do tempo do seminário, o pouco que sabia da sua estadia de seis ou sete anos por lá contara-mo ele sem grande detalhe, de modo que foi um baque passar uns olhos surpresos por aquele rebanho sombrio e reconhecer de imediato a jovem ovelha tresmalhada em cuja face parecem dançar traços do meu sobrinho Gil, do meu filho.
Mais ou menos no Verão em que encontrei a fotografia descobri  duas agendas de que já por aqui falei (O mistério das agendas pretas) e cuja leitura me ajudou a compreender a direcção em que olharia o meu pai nesse Domingo a preto e branco de 1929 ou 1930 (teria ele os seus treze anos?), e em que só o olhar parece conseguir escapar ao que era o seu presente nessa manhã submersa.
O meu pai ficou sem mãe ainda criança e o meu avô viu-se a braços com dez filhos pequenos, dos quais sete inúteis seres do sexo feminino, não despacháveis de imediato. Nesses dias, as opções de futuro de uma mulher passavam sempre, se não fosse um coiro intransponível ou tivesse dote, pelo casamento e as de um macho por escolher entre cara ou coroa, que é como quem dizia escolher a cara de um militar ou a tonsura de um padre.
Encurralado, o meu avô paterno tratou logo de semear as raparigas mais novas pela casa das tias mais próximas e dois dos três rapazes foram endereçados ao seminário, um deles o meu pai. Cama, mesa, roupa lavada; educação garantida e futuro razoável; quanto à infância ainda por cumprir, o miúdo que a dobrasse e a metesse no saco...   
“Dia radioso! Aniversário natalício do Sr. Eduardo Serrano. Quantas belas recordações já não nos traz um relancear de olhos através destes 18 anos passados sobre a terra”, escrevia ele, na agenda de 1935, no dia dos seus 19 anos. Aniversário passado no seminário, sozinho, festejando-se a si próprio e desejando que o Verão chegasse depressa para se desforrar na caça, numa pescaria.
É, aliás, o mais vincado sentimento que deixa a leitura das páginas desse diário sucinto, registado em agenda comercial: a solidão de um rapaz que se foi fazendo sempre sozinho, pois o pai, nas visitas que faz a Viseu e aos seminário, é sobretudo para “encomendar 25 missas pela almas do Purgatório”. Com alegria, o meu pai regista as ocasiões em que passou por lá uma das irmãs mais velhas e lhe deixou um açafate de cerejas ou pêssegos e nunca, ao longo desse ano, uma única queixa ou sinal de desalento é passado a tinta.
Seriam características que manteria ao longo da vida, as de não se queixar dela; as de observar e celebrar com deslumbramento a natureza lá fora:
“7 de Março – O sol macio! O céu acrisolado como ainda não vi este ano. Houve missa cantada.”
Mas, nas entrelinhas dos registos, aos olhos de quem teve uma infância e juventude menos agreste, impressiona a solidão gelada dos dias daquela agenda, de quem só percebi o motivo para ter sido conservada quase no final da leitura: foi nesse ano de 1935 que o meu pai ganhou coragem e, sem uma mãe que amaciasse o terreno do embate, comunicou ao meu avô que não queria seguir o destino que este lhe tinha traçado, que não queria ser padre e que eram suas intenções completar o ensino liceal cá fora e aprender inglês!
Na agenda do ano de 1937 (a única outra que o meu pai conservou das suas décadas  juvenis), é também cristalina a razão pela qual a guardou o resto da vida, aninhada na gaveta do meio da sua secretária na casa do Porto. Ao chegar cá fora, já longe do bispo e das sotainas negras, o meu pai apaixonou-se e vai registando o seu enlevo em inglês.
Por quem? Ora, por quem! Leiam, Marco Aurélio, porra, está tudo nos clássicos!  

© Fotografias: (1) Foto Beleza, Viseu/Porto, 1929/1930[?]; (2) Pedro Serrano, Porto, 2010.

2 comentários:

  1. Engraçado como também o identifiquei logo na foto pela postura. Não tinha visto traços meus ate ler o teu texto e realmente identifico alguns. Alias meus que é como quem diz dele!
    À custa dos teus textos tenho descoberto muita coisa. Continua!

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  2. @ Gil, Fico muito contente com isso de dizeres que tens descoberto muita coisa daquilo que é a nossa história comum por leres o "Vou-te Contar". Eu próprio dei comigo a descobrir uma série de coisas por me por a escavar na memória e naquelas agendas do avô. Abraço

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