Hoje, ao cair da tarde, estava eu
tranquilamente a responder aos mails encalhados no computador, quando ouvi um
restolho seguido de um grito, único e que me pareceu proveniente do aparelho
sonoro de uma ave; não um pio, como seria de esperar em condições normais, mas
um grito de uma aflição raiando o estertor.
Como
sei o que a casa gasta olhei automaticamente para a janela em frente à mesa em
que trabalho e onde, por trás de uma vidraça virada a sul, a Mia costuma
estirar-se a gozar o calor da tarde e o morno remanescente do poente. O parapeito
da janela quedava-se vazio.
Levantei-me
de um pulo, abri a porta da rua e, por entre as minhas pernas, correu a Mia com
uma pincelada amarela de penugem entre os dentes, na qual consegui reconhecer, de raspão, o nariz breve e ridiculamente aquilino de um periquito.
Como a
situação era de aguda urgência, pensei rápido e num comportamento contrário ao
que advogam as reportagens sobre o mundo animal do National Geographic Magazine,
violando a regra do observador não dever interferir nas vicissitudes da
selecção natural e da cadeia alimentar, fui buscar uma vassoura atrás da porta.
Entretanto,
a Mia escondera-se debaixo da mesa da sala de jantar, pois a minha agitação deve ter-lhe cheirado mal. De vassoura em riste comecei de a tentar
enxotar dali para fora, sendo o meu fito perturbá-la de modo a que abrisse os
maxilares e o encalhado periquito pudesse levantar voo ou, pelo menos, se
arrastasse para longe dos caninos da gata.
Sob a
mesa, numa pose muito profissional, a Mia fazia slalom entre as pernas da mesa
e das cadeiras, tentando evitar que o pau da vassoura lhe fosse assestado no
lombo, desiderato que só atingi quando ela, disparada como uma seta, deixou o
abrigo e fugiu em direcção à porta aberta. Mas, apesar das pauladas que lhe
consegui acertar até à liberdade, ela manteve a boca bem cerrada e na qual o
periquito se assemelhava cada vez mais a uma ave empalhada!
No
quintal, por entre os laivos amortalhados e sanguinolentos do poente, ainda
consegui amortizar-lhe uma derradeira batucada no lombo antes que saltasse por
sobre o muro para casa da minha vizinha D. Luísa, com grande probabilidade a
dona da defunta ave. Vencido, regressei a casa, arrumei a vassoura atrás
da porta, pensei em ir tratar do jantar.
Agora é
noite escura e a Mia borralha aqui ao lado, enrolada sobre o seu cobertor
preferido, na poltrona mais próxima da lareira. Há instantes, inclinei-me sobre
ela, cocei-lhe a cabeça. Abriu apenas um olho, ronronou um pouco, fremiu uma
orelha e continuou no seu abençoado olvido, alheada de qualquer vestígio de
vassoura ou periquito.
Como não
come o que esventra e decapita, caçando apenas para me demonstrar que está em
forma, suponho que o que resta do periquito deve estar a arrefecer nalgum canto
sombrio do jardim, servindo de ceia a qualquer outro subnível da cadeia
alimentar.
© Fotografias de Pedro Serrano, (1) 2010; (2) 2011.
Conheço o cobertor!!!!!
ResponderEliminarbjs
Tadinha da Mia... es mesmo mau! Sabes que punindo esses instintos so pioras o teu problema. Eles assumem que o seu desempenho nao e' suficiente para agradar ao dono e cacam cada vez presas maiores. A Viana chegou a trazer uma cobra de presente 'a minha mae!
ResponderEliminar@ AEnima, Não pioro nada! Quando ela me aparecer com um frango ou um leitão fico todo contente, pois deixarei de ir ao talho... E, digo-te, cobre é uma carne muito delicada e muito saborosa. Bj
ResponderEliminarDeves achar que a Mia e' arracada de Rambo, nao? Essas expectativas parentais irrealistas tao tipicas... eu sofro em compaixao pela Mia.
ResponderEliminar@ AEnima: A Mia é uma serialkiller, escusas de ter pena dela que é uma das gatas mais bem tratadas do mundo, com cobertor e lugar reservado à lareira.
ResponderEliminarSeu texto é um deleite.
ResponderEliminar@ Anónimo, obrigado por seu comentário!
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