19 novembro 2012

VOU-TE CONTAR: 53. DAYS OF FUTURE PASSED


Nunca, mas nunca na vida eu imaginei que pudesse ser obrigado a ver uma professora de matemática em fato de banho e, ainda menos, vê-la a conversar com a minha mãe, tricotando crochet como se nada fosse!
Estava-se em 1968, eu fizera quinze anos, os Moody Blues tinham editado no Natal anterior o fabuloso álbum Days of Future Passed e matemática era pesadelo de que julgara ter-me livrado, pelo menos durante os três meses das férias grandes, e agora ali estava ela, lustrosa como uma foca, no seu fato de banho preto, assombrando-me a paz de espírito, obrigando-me a permanecer na areia, arredado das riscas paralelas da minha própria barraca, a tentar evitar tangentes e secantes...
Ao menos não era minha professora, nem sequer professora no meu liceu, mas, de qualquer modo, era professora de matemática e dava aulas no Carolina Michaelis, o liceu de raparigas a escassa centenas de metros do meu, isto é: deveria ter conhecimentos e influência suficiente para me poder prejudicar, bastava-lhe mexer o mindinho! É claro que sendo eu assíduo frequentador da hora de saída do Carolina já a conhecia de vista, sabia até a alcunha de mãe-preta pela qual era conhecida entre as raparigas, rótulo que lhe vinha do fácies um tanto negroide e de nariz esborrachado, à boleia de uma canção de protesto que estava na moda naqueles anos de estrebucho colonial. Mas uma coisa era mirá-la, vestida, do lado de lá do passeio, outra vê-la, de um ano para o outro, aterrar no verão da Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira, nesse agosto em que tinha, à justa, acabado de surgir In Search of the Lost Chord, o esperado novo álbum dos Moody Blues, obra que confirmava a esmagadora surpresa do disco anterior e afirmava no firmamento o rock sinfónico, uma variação musical inaugurada (como era costume) pelos Beatles na primavera de 1966 com “Eleanor Rigby”, uma canção de nos pôr de joelhos, com um  arranjo de violinos e violoncelos que parecia música de câmara!
De tudo isto se ia falando, pernas cruzadas, lambuzados de Ambre Solaire, a uns metros das barracas, as nossas mãos, feitas ampulhetas, peneirando punhados de areia fina para o chão, os olhares demasiado tímidos para se fitarem de frente. A Lena e o Eduardo, dois tipos novos no nosso círculo da praia, eram, precisamente, grandes fãs dos Moody, possuíam em casa o Days of Future Passed e tinham já encomendado o Lost Chord e isso emprestava-lhes um valor inestimável, pois colecionávamos pessoas como quem coleciona discos.
Subitamente, no meio do meu entusiasmo, eis que descubro, arrepiado, que a Lena e o Eduardo eram filhos da mãe-preta, moravam perto de mim no Porto e, horror dos horrores, a Dr.ª Albertina (que era esse o seu inusitado nome) oferecera-se até para passar a dar-me boleia para o liceu no ano lectivo seguinte. Não, era mau de mais para estar a acontecer, a minha mãe a suspirar e a confessar à outra que a “matemática é o espinho dele, Dr.ª Albertina, isso e a Física, não há maneira... Este ano teve-me um 7 no segundo período!”
E a outra, entre duas remadelas nas agulhas do tricot, a interessar-se, a querer saber quem era o meu professor no liceu, pois que, com toda a certeza, o conheceria...
“Pedro”, aproveitou a minha mãe quando eu, a escorrer da gélida água dos mares do norte, acabava de chegar em busca de uma toalha perdida, “como se chama o teu professor de Matemática...?”
E eu, diminuído mentalmente por um couro cabeludo enregelado, a tentar lembrar-me como caralho se chamava mesmo o professor, a catar por entre a alcunha de sobe e desce como alguns o conheciam (o homem tinha uma perna mais curta do que outra) e a de se-te-apanho-fodo-te, como outros, os menos piedosos – entre os quais me incluía, se lhe referiam na intimidade, uma menção bicéfala ao seu defeito e ao facto de ser titular de uma disciplina temível...
Mas a adolescência é um tempo de perplexidade e contradição e era com espanto e um tributo mental de admiração ao pai que constatávamos diariamente ter a filha do sobe e desce, igualmente aluna do Carolina, um perfeito e ambicionado par de pernas... E acabou por ser por uma mistura de pernas e discos dos Moody Blues que aceitei a tal boleia para o liceu: agora, todas as manhãs, ao rondar das oito horas, batia à porta de casa da Dr.ª Albertina na esperança de ver surgir a filha ao cimo das escadas, a saber quem chegara. Nessa época estavam na moda uns collants de cor branca, opacos, e que transmitiam às pernas um picante ar cadavérico.
“Ah, és tu...”, dizia ela, pairando lá cima ou desfilando escadas abaixo a gritar pela mãe e pelo irmão.
E eu, paralisado na soleira como num embaraço de entrar em casa alheia, ficava-me ali como se já estivéssemos em 1969, ano em que os Moody Blues nos visitariam com o seu novo álbum On the Treshold of a Dream.    

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