15 agosto 2013

CINEMA TRANSCENDENTAL


Talvez fosse o norte de África, talvez fosse até a Arábia Feliz, o certo é que, assim à partida, não conseguia identificar com precisão o país. Gente acocorada, paredes de cal faiscantes, sombras espessas onde alguém chegara sempre antes de nós.
Estava com o Zé João num território desses e numa espécie de caverna imensa que funcionava como cinema. Filas de bancos sem gente como numa igreja abandonada, os ecrãs eram dois enormes lençóis pendendo na entrada da caverna e, no momento, servindo de guarda-sol aos espectadores ociosos, o bordo inferior oscilando indolente ao sopro quente que chegava do exterior, como a barbatana a caminho da imobilidade de um peixe na lota.
Ao contrário dos nossos vizinhos, amontoados ao longo da parede irregularmente circular da caverna, eu e o Zeno estávamos impacientes de estar ali acocorados, sem fazer nada, uma infinitude de horas antes da primeira sessão da noite... Então, perante o olhar indiferente dos outros, saltámos sobre os ecrãs tal quem se agarra às velas desfraldadas de um navio. Com o impulso, as telas acordaram do torpor e balançaram-se alto no ar, revelando o verde brusco do mar e o azul fixo do céu aos dois cinéfilos arrebatados.

Nota: Cinema Transcendental é também o nome de um CD de Caetano Veloso, 1979.

© Fotografia de Pedro Serrano, Santiago, Cabo Verde, Julho 2012.

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