21 julho 2015

KRYFO LIMANI (Porto Secreto)

Estou sentado na mesa ao fundo do corredor de entrada, sob uma parreira de uvas dedos-de-dama que ainda não pintaram. Daqui vejo perfeitamente quem se aventura pelo passadiço aberto e espreita a zona de refeições, toda ela esplanada descoberta, metade sob um limoeiro, o resto sob latadas de videiras. E tenho pena de quem recua, de quem, por qualquer motivo, pensa que o melhor é ir procurar outro sítio para jantar; apetece-me dizer-lhes: “Ei, não façam isso, estão no melhor local para se comer em Hydra.”
Suponho que parte dos que desistem o fazem por andarem à procura de pizzas ou hambúrgueres, talvez comida gourmet ou sushi com queijo Philadelphia... E isso, definitivamente, não encontram aqui, Deus Seja Louvado. Talvez que o outro resto dos que fogem se assustem com o kitsch do local, com as carapaças de lagosta que parecem trepar os muros, com as metades de cavalo que saem pelas paredes, as cabaças pintadas de cores berrantes enforcadas na estrutura de ferro que suporta as videiras...

Mas a placa que se encontra pendurada à porta não engana ninguém, o restaurante classifica-se a si próprio de TAVERNA, a palavra grega é, aliás, literalmente clara para um português ou para um espanhol. O Kryfo Limani não pretende ser outra coisa, em Portugal seria descrito como “aquela tasquinha onde se come tão bem”. Tudo quanto se possa pedir da ementa – e nas minhas várias idas a Hydra comi lá vezes suficientes para a ter experimentado – vem excelente, por exótico que possa parecer ao chegar à mesa. Tudo! Sabem, aquele tipo de pratos muito simples, mas em que o produto base é excelente e a confecção é minimalista? Nada de riscos de chocolate fundido ou de groselha a enfeitar o fundo do prato ou de crostas de broa a ensanduichar um bacalhau reduzido a 62.º graus centígrados em azeite tão virgem como a mãe do chef.
Ao correr da água na boca deixo por aqui algumas sugestões: peça-se, como entrada, tzatziki, um iogurte natural, branco e grosso, batido com raspas de pepino e alho, que vem fresco e é o que aquele pão posto na mesa está a pedir para ser barrado com..., enquanto aguarda que chegue a fava, um puré de lentilhas coroado com gomos de cebola crua – cebola nas antípodas do raivoso, quase doce – e acompanhado por limão, o qual espera apenas ser espremido sobre todo aquele conjunto. Oh! delícia das delícias, que, no seu amarelo quente, empurra o nosso anémico puré de batata para o esquecimento. O nome Gigantes deu-lhe no goto pela similitude com a palavra portuguesa e mandou vir, mesmo sem saber o que é? Pois fez bem: será presenteado com um estufado de tenros feijões de tamanho gigantesco, aquilo que por cá chamamos feijocas. Eu, olhe, resolvi antes pedir salada de polvo como entrada, aquele molho calha bem com o pão da minha cesta, onde também chegam acomodados os talheres e o guardanapo de papel. Ontem, como prato principal, comi as almôndegas de borrego em molho de tomate,
acompanhadas de batatas fritas caseiras, a estourar de douradas; hoje resolvi experimentar o ragout do mesmo bicho, acompanhado com courgettes e cenouras estufadas, tudo afogado em molho de limão e ovo. A travessa tem um ar duvidoso, mas que sabor e como aquele borrego se deixa desfiar sob o garfo... Já não consigo meter um dedo na boca e peço a conta, mas sou um cliente tão fiel que insistem em me brindar com um creme queimado cuja base é um doce de limão com raspas da casca incorporadas. Como posso negar quando é on the house?
Jiboio, serpenteio o olhar pelos comensais das outras mesas e toda a gente me parece possuída por um sentimento em torno da comida que lhe coube e que muitos deles – estrangeiros como eu – não sabiam muito bem em que consistiria. Vejo, então, surgir ao fundo do corredor um casal jovem. Ela fica-se à entrada, ele penetra por ali dentro, detém-se nas águas territoriais da minha mesa, o sítio ideal para uma perspectiva global do território. Percebo que não apreciou o aspecto geral e eis que, antes de recuar, se vira para trás e diz num português bem claro e num volume só usado por quem tem a certeza que ninguém irá compreender o idioma:
“Vamos procurar outro sítio...”   
“Não faça isso!”, dou por mim a dizer no mesmo volume, “está prestes a poder comer no melhor restaurante de Hydra...”
E eis que, refeita a surpresa, celebrada a satisfação do encontro, resolvem seguir o meu conselho e não só ficam a jantar como registam algumas das minhas dicas gastronómicas.
“Hum, puré de lentilhas...”, diz ela, olhos brilhantes, num sotaque lisboeta, “adoro lentilhas...”
E lá se vão ao repasto para uma ilha sob o limoeiro.
Paguei a minha despesa, despedi-me dos empregados, e antes de me ir à vida passei pela mesa dos meus compatriotas a ver que tal. No momento, atacavam com furor o pão e uma colorida salada mista de tomate, pepino e cebola; num vai e vem imparável passeiam um já viciado garfo pelo puré de lentilhas.
“Então, que tal?”, pergunto.
Tem a boca cheia, coitados, pouco mais podem fazer do que abanar com as cabeças, deixar escapar uns “humms”.
“Agora estamos à espera das almôndegas, da salada de polvo e da moussaka...” 
Despeço-me com simpatia, votos de boa continuação e um feliz regresso à pátria. Acho que pediram comida a mais, mas isso caberá a eles descobrir quando tiverem de trepar os degraus de volta ao hostel onde estão alojados. 
  
© Fotografias de Pedro Serrano, Hydra, Grécia, Julho 2015.

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