01 abril 2020

O CERCO DO PORTO - O Regresso

Adorei, adorei, o modo como a Direcção-Geral da Saúde (DGS) catapultou a sua atrapalhada aritmética de considerar que, em 24 horas, os casos de Covid19 no Porto tinham passado de 417 para 941, para a sugestão de um cerco sanitário à cidade do Porto. Ainda por cima ao Porto, uma cidade experimentada e traumatizada em cercos (sanitários ou outros), e tão ciente disso que até tem uma rua a comemorar um deles.
Não foi pois de espantar que o Porto, através do seu presidente Rui Moreira, tivesse reagido à 'cavalada'* com um tremendo coice. Ficou-lhe bem, ficou-lhe como seria de esperar, digo eu, que, confesso, embora emigrado há longas décadas, sou natural da cidade ou, que como é costume agora, quando se quer exibir o penacho da transparência, declaro desde já os meus conflitos de interesses. Ainda na declaração de conflitos íntimos, devo acrescentar a suave desilusão que me acometeu quando, no dia seguinte — a velocidade com que o corona obriga a rotações de 360 graus  o secretário de estado da Saúde veio desmentir, lacónica e veementemente, a sugestão de cerco da véspera, pois eu já imaginava um emissário nacional para tratar da envolvência da minha cidade: Francisco Jorge, um profundo conhecedor dos nano-micras virais e homem que se sonha a si mesmo como uma encarnação actual de Ricardo George. Ainda não foi desta! 
E como pelo sonho é que vamos, já estava por aqui a imaginar as fronteiras ao tal cerco, como seria que iam delimitar a coisa? Onde, a Norte e a Sul, seriam fixadas as fronteiras? É que não é fácil... A sul, o Porto confunde-se com Gaia e, a Norte, alastra como uma seta até Matosinhos, até à Maia. Onde iria ser então a linha transgressora, a partir da qual se dispararia sobre o meliante que se dirigisse ao IKEA, à EXPONOR? Imagino-a em Antuã, a Sul, aproveitando o passadiço sobre a A1 da estação de serviço como poiso confortável para os vigilantes e a Norte, a Norte... Bem, estou certo de que a DGS teria uma qualquer ideia, depois de ouvida a Europa a 27 que, como dizia a Ministra da Saúde nos saudosos dias dos primeiros casos de Covid19, nesta cena de progressão a epidemia portuguesa está alinhada pelos outros países europeus. 
Perdi-me, perdi-me no sonho e já sonhava com os rastreios mágicos e antecipatórios da Cruz Vermelha Portuguesa estendidos acima do Douro, uma tenda de campanha em cada um dos municípios cercados. Adeus ovos moles, adeus tripas à moda do Porto (mesmo se servidas frias), adeus bacalhau à Narcisa, adeus aos bolinhos de amor de Felgueiras, às empadas do Natário em Viana.
Termino, mas não de imediato, como sucede nas longas conferências diárias do Ministério da Saúde. Tinha prometido a mim mesmo que não mais da minha pena sairia uma linha que pudesse perturbar a vital unanimidade necessária ao enfrentar destes tempos difíceis, e que os nossos benfeitores não se cansam de propalar. Mas um homem não é de ferro e as pérolas diárias que os tais pontos da situação nos despejam são de engasgar uma ostra. Um dia mandam-nos ver os nossos velhinhos e enchê-los de afectos, e no dia seguinte os lares estão como era bom de ver que ficariam, embora os números de casos e mortos não sejam nada de por aí além (como diz a DGS) e, basicamente, a responsabilidade seja dos próprios lares (como metralha a Ministra da Saúde) que não activaram planos de contingência; uma manhã quem decide o que se vai fechar, cercar ou fazer são as autoridades de saúde locais e, na tarde seguinte, essa responsabilidade é puxada, à rédea curta, para Lisboa... Pelo meio da conferência, ainda sobra tempo para nos inteirarmos das últimas sobre a etapa de isolamento social das netinhas da Directora-Geral ou ouvir as analogias misteriosas de Marta Temido que relacionam o Covid19 com os adolescentes tailandeses aprisionados numa gruta subaquática... Será que era suposto ficarmos comovidos? Bem faz António Sales, o secretário de estado que recorda vagamente o primeiro ministro japonês, e que, lacónico, sóbrio, cingido à objectividade do que tem a transmitir, recorre, sempre que pode, a discurso escrito! Que nunca lhe falte uma máscara, das boas e não dos ilusórios trapos molhados a que se refere Graça Freitas, é o que lhe desejo  (com respeito) nestes tempos de perdigotos potencialmente mortais.   
Termino, agora sim, com um apelo à autarquia do Porto para que não deixe de, usando uma das vielas ainda sem nome da cidade, a cognominar de Rua do Cerco do Porto II ou, mais cinematograficamente, Rua do Cerco do Porto - o Regresso.

*Nota razoavelmente técnica: No dia 30 de Março de 2020 as estatísticas oficiais do Ministério da Saúde/DGS divulgaram publicamente que, em 24 horas, os casos de Covid19 tinham crescido no Porto 126 %, um aumento nunca alcançado em território específico de nenhum país do mundo nesse espaço de tempo, nem compatível com o comportamento epidemiológico conhecido de qualquer fenómeno epidémico dos últimos 100 anos, designadamente o do Covid19. Assim sendo, teria sido tecnicamente obrigatório ter desconfiado de tais valores (uma atitude de clássica sensatez aconselhada em todos os manuais perante valores inesperados); reintroduzir os dados na base de dados desde o início da colheita desse dia; proceder à sua validação (dupla contagem, verificada por mais do que uma pessoa) e só então proceder à sua divulgação pública, sobretudo quando essa divulgação poderia desencadear o pânico de uma população e implicar uma decisão como a de um cerco sanitário.
   


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