30 julho 2020

O MISTÉRIO DA VIDA

Agora que o tempo está bom, costumo tomar um pequeno-almoço tardio na parte de trás do meu quintal, onde existe uma mesa de madeira clara sob uma latada de folhas e gavinhas verdes.
Nikita, a gata siamesa, nunca consegue estar longe de onde estão as pessoas e passarinha por ali, até que resolve deitar-se sobre o quadrado de terra morna que interrompe a tijoleira e de onde nasce o tronco da videira. Entre o ofendido e o entediado olha para cima, para a copa do abacateiro onde, a salvo de ofensas, um pássaro que não se vê emite um pio descarado. 
Que grande está o abacateiro... O tronco tem mais de um palmo de grossura e dividiu-se até em dois ramos poderosos, que sustentam a parte superior da árvore. E pensar que começou com um caroço de abacate atirado para a terra pela avô da João (minha ex-mulher) há uns trinta e cinco anos atrás. Ela tinha essa mania, arremessava caroços ou pevides de frutos que estivesse a comer para a terra, sem o cuidado de os enterrar ou cobrir de terra. Era a sorte que lhes decidia o destino e o destino deste ditou que ali estaria muitos anos depois dela, a lembrar-lhe a memória e a sustentar o canto do pássaro.
Levanto o olhar do meu sumo de laranja e dou-me conta que, perto das folhas rendilhadas da avenca, mas numa poça de sol, está Megabyte, o cágado tunisino. Esse está sempre onde houver sol, é assim que o procuro, uma vez que facilmente passa despercebido na sua camuflagem e imobilidade naturais. Veio, da Tunísia, no bolso de uma amiga que o ofereceu mais ou menos à mesma época em que o caroço do abacateiro foi lançado na parte de trás do quintal, e por ali anda restolhando nas folhas tombadas do abacateiro e da laranjeira, também ela nascida de pevide extraviada. 
De súbito, o cágado deu-se conta da presença de Nikita e avança para ela a uma velocidade estonteante! Adora a gata e, se a vê, procura cordialmente chegar-se a ela. Mas a gata tem-lhe medo e - está ele a chegar e a espreitar da concha com a cabeça antiquada - dá um salto e trepa pelo abacateiro até um ramo onde nem o mais sonhador dos cágados poderá chegar.
Em frente ao meu banco, no outro topo da mesa, há um muro que divide o quintal do terreno da vizinha. O muro é perfurado e posso distintamente observar o que se passa do lado de lá: duas galinhas andam livremente a bicar por ali, pois a D. Luísa deixa-as sair para um desenjoo às redes do galinheiro. E como são curiosas e sentiram actividade na proximidade aproximam-se do muro, onde ficam a espreitar o que se passa do meu lado, provavelmente esperançosas que, sem saber como e o quê, algo lhes possa aproveitar. Faço voar um pedacito de pão por sobre o murete e a galinha que primeiro se dá conta do sucedido e o encontra desfere golpes de picareta sobre ele. Mas logo a outra se apercebe do pitéu e se atarefa a tentar chegar à côdea. Engalfinham-se um pouco e eis que surge uma terceira, atravessando o terreno desembestada, como se viesse acorrer a uma tragédia, e lhes surripia o pão, que fica a escarafunchar só para si num canto afastado do relvado. Enfado-me de tanta estupidez e concupiscência e quando, de novo, volto a olhar, estão as três a espreitar-nos pelos interstícios do muro, na mais completa harmonia e como se não houvesse pretérito entre elas.
No fundo do copo do meu sumo de laranja sobrou alguma polpa. Recolho-a com uma colher de chá e disponho-a na tijoleira. É claro que não passou despercebida ao curioso do Megabyte que veio espiolhar o que seria e espera até que eu recolha a colher para aproximar o pescoço. Depois fica ali a ruminar a polpa luminosa com prazer: é um cágado guloso, louco por morangos e pedacinhos de maçã.
Nestes dias de pandemia passam poucos carros na rua e os aviões, já em rota descendente para Lisboa, não cruzam o céu de riscos. Por isso ouvem-se nitidamente os pássaros (que se tornaram atrevidos) e o restolho do Megabyte sobre a folhagem, e, aguçando a atenção, escuta-se até o adejar das extremidades flexíveis e tenras das trepadeiras a tentar chegar a um poiso onde se possam enroscar. 


Nota: Em memória de Lúcia Brito.
© Fotografias de pedro serrano, julho 2020.

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