Seria a terceira ou quarta vez em que iam passar uns dias a casa do pai, mas as advertências e acrescentos de última hora eram tantos como se pisassem aquele chão pela primeira. Micéu tinha cinco anos feitos e Rosarinho onze, mas a mãe – pelo menos era isso que pensava – lidava com elas como se fossem crianças de colo ou mentalmente incapazes.
A repartição das férias era negociada ao minuto e embora estivessem praticamente três quartos desse, e do outro, tempo com a mãe, cada dia que ficavam com ele era cedido como um favor, como se não fosse idóneo para as receber e olhar por elas. O que valia era as próprias miúdas adorarem ir a Penaformosa e, a cada visita, esse gosto acentuava-se, tornava-se mais insistente e saudoso. Rosarinho, então, quando ouvira referir que podia nevar em Penaformosa ficara numa excitação tremenda, contara a possibilidade na escola como se o progenitor fosse um milionário, proprietário de uma estância de ski nos Alpes. No ano anterior, loucas de expectativa, tinham vindo experimentar três dias das férias do Natal a casa do pai e quando as fora pegar a casa da ex-mulher a filha mais velha esperava no passeio enfiada num casaco debruado a pelinho, um gorro com tapa-orelhas enterrado na cabeça e as mãos artilhadas em luvas sem dedos. Ao lado, em bicos dos pés, Micéu brandia um desenho: a pintura representava uma paisagem de pinheiros e ovelhas coberta de neve, uma casa com um telhado de duas águas bicudas a deitar fumo de comboio por uma chaminé esguia, e um personagem sorridente a espreitar por uma das janelas e que, a crer pelos totós no cabelo, era ela mesma. Mas a meteorologia fora ingrata e o máximo que as meninas tinham experimentado nesses dias fora frio seco e sol. Micéu regressara ao Porto com os lábios gretados pelo cieiro, bochechas vermelhas e pele áspera, alterações que deixaram a mãe o suficientemente perturbada para justificar uma visita ao (desgraçado) pediatra.
Agora estavam outra vez a trepar pela estrada de Fafe, já além do Arco de Baúlhe, e Micéu, depois de pararem uma vez para que vomitasse e outra para uma salva de arrotos, dormia no banco corrido do assento de trás. O tempo estava de cão e o pai guiava num silêncio apreensivo, pois temia aquela nata espessa de névoa e morrinha que ocultava os barrancos e ravinas e fazia crer que o mundo era plano além da berma da estrada.
“Está frio; este aquecimento não dá mais, pai? Tenho os pés gelados...”, queixou-se Rosarinho.
“Tem que ir virado para o para-brisas, filha, de outro modo não se vê nada, o vidro embacia-se todo.”
“Achas que vamos poder ver neve este ano?”
“Não sei, às vezes é mais para Janeiro que ela cai: quando está quase a vir chuva mas o tempo está muito frio.”
“Gostávamos de ter vindo antes na segunda semana das férias, mas é o Natal e a mãe disse que temos de estar no Porto...”
Fez-se silêncio. Depois Rosarinho começou a trilar Doralice, acompanhando a música que tocava em surdina no leitor de cassetes e imitando, na perfeição, as voltinhas do saxofone de Stan Getz.
“Adoro esta música”, disse, “é a minha preferida...” E logo quis saber: “E tu, onde vais passar o Natal? Ficas em tua casa, como no ano passado?”
“Não sei”, respondeu o pai aumentando o volume ao leitor de cassetes.
“A mãe disse que eras louco..., passar o Natal aqui enterrado, sozinho.”
“Não passei sozinho”, mentiu, “fui convidado por umas pessoas de lá”, acrescentou subindo outra vez para a linha da meia-verdade.
“É pena que não possas passar connosco... A mãe diz que nem pensar.”
“Sim, há coisas que é melhor assim. Logo se vê, não te aflijas, se calhar posso voltar a passá-lo, como no ano passado, em casa do Agostinho e da Deolinda, eles já convidaram.”
Voltara a mentir, era mais prático. Era verdade que, no ano anterior, recebera um convite, sincero e caloroso, do agente sanitário para ir passar a véspera da consoada com a família dele. Agostinho farejara a falta de poiso, a conversa enredada de Raul sobre o Natal; então atirara o convite e insistira de tal modo que se vira forçado a esconder a 4L no vão por trás dos prédios, em vez de a deixar, como era costume, na parte fronteira, à vista da estrada e de Clara. Mas Clara fora para Setúbal, onde tinha a irmã, um cunhado e um sobrinhito. Se a tivesse convidado – era isso o que achava – talvez ela ficasse o Natal com ele... Mas, pedir-lho, seria inaugurar outro país. E para irem esconder-se onde, afinal? Nalgum hotel dormente? Puta que parisse o Natal! Correra as persianas das janelas da frente, mantivera a música baixa. Não queria estar com ninguém, festejar, só a ideia deprimia. Mas no prédio não restava ninguém além dele e da gata da Odete, escusava de se preocupar. Comera em frente à televisão, partilhara os rissóis de bacalhau com Kali, preparava-se para ver o filme que ia passar na TV quando a luz falhou. Estava uma noite gelada e os dois aquecedores zuniam no máximo, à conta do óleo esquentado havia um cheiro a navio no ar. Um deles fervia mesmo encostado ao maple onde estava sentado com a bandeja no colo e Kali espalmara-se entre a parte inferior das serpentinas e os rodízios, corria o risco de sair dali zebrada como uma fêvera na grelha. Lembrou-se – tarde demais – que não havia velas em casa, as últimas tinham sido gastas em situação idêntica que, graças a Deus e à EDP, a electricidade ali era uma merda e quando falhava... Bem, esperava que aquilo não durasse a noite toda: pouco passava das nove e não lhe apetecia ir deitar-se já, ficar à espera do sono como da lotaria ou engolir um hipnótico para abreviar a espera! Estava a pensar telefonar às catraias lá para as dez e preferia ter música a tocar em fundo, para que não fosse tão evidente que estava sozinho, que elas o pudessem perceber pelo eco da sua voz a reverberar nas paredes. Iria esperar mais um bocado.
Mas, passada uma hora, a luz não voltara e duvidava que fosse voltar: quem é que, numa noite daquelas, sairia de casa e da consoada para trepar a um poste ou se pôr a mexer nos fusíveis dum posto transformador? Sem electricidade, os aquecedores gelaram rapidamente e com eles o ar da sala, que parecia chegar directamente do exterior como se os vidros das janelas, a espessura das portas, não adiantassem... A única fonte de luz – a lanterna a pilhas – estava dentro da maleta de trabalho e essa enfiada no armário do contador da luz. Lá fora, a noite era escura como breu – a falta de luz fora geral –, mesmo assim levantou-se para ir ao quarto pequenino buscar uma manta, estava a ficar entorpecido pelo frio. Na passagem para o corredor deu uma joelhada na esquina do aparador; foda-se, aqueles móveis de contraplacado folheado, que evitavam os contornos boleados por barateza, eram agressivos como armas! A dor lembrou-lhe a outra fonte de energia que restava em casa: o gás, o gás que servia para aquecer a água, que alimentava também o fogão e cuja garrafa quedava, anónima, na varanda de serviço. Levou uma das cadeiras de bambu para a kitchenette e sentou-se em frente ao fogão. Acendeu o forno e manteve a porta aberta: aquecer-se-ia como se a uma braseira. Kali compreendera rapidamente a manobra, mudou-se para a vizinhança dos pés dele. Melhorou qualquer coisa, mas à meia-noite a luz ainda não tinha voltado e encheu-se de estar ali a ouvir o estralejar da chapa esmaltada, a tresler as pequenas línguas de fogo azul que sibilavam na base do forno.
Doralice terminara, ouviram-se as notas de piano que abriam Para Machucar Meu Coração, e Rosarinho quis saber:
“Se eu quisesse, um dia, vir morar contigo, tu recebias-me?”
O choque foi grande e quando, mais tarde, decompôs a frase, o que continuava com arestas aceradas era aquele “recebias-me”, como se a filha se considerasse uma mercadoria que podia ser rejeitada, devolvida ao remetente por o destinatário ser incerto. Mas o que respondera fora similarmente desastroso.
“Oh, querida, se calhar não era muito boa ideia. Estás melhor no Porto, com a mãe e a mana.”
Os olhos de Rosarinho encheram-se de lágrimas, a garganta de soluços, teve de parar o carro numa berma, consolá-la, explicar que tudo seria mais complicado para ela em Penaformosa, com ele sozinho, a mudança para outra escola; ficar separada da irmã...”
“Mas gostavas ou não?” quis a miúda saber, os grandes olhos agora mais zangados do que molhados.
“Gostava, claro que gostava”, mentiu, sentindo, por seu turno, os olhos húmidos e levando a filha a acreditar que aquele seu desejo tinha, acima de tudo, comovido o pai.
“O que é que estamos a fazer aqui parados? Também vomitaste, mana?”, perguntou Micéu espreitando por sobre o banco da 4L.
“Oh, cala-te”, respondeu a irmã.
“Vá, meninas, animem-se”, disse o pai, “estamos quase a chegar. Pode ser que desta vez vejam neve.”
Durante a noite trovejou com violência. A tempestade anunciara-se por relâmpagos silenciosos, mas tão intensos que a claridade atravessava os estores cerrados, iluminava a casa como um farol sinistro. Depois aproximara-se e os trovões bramiram, zangados, fazendo tremer os alicerces da vila e, finalmente, quando a paz parecia estar a querer regressar, o telhado foi sacudido pelos dedos insistentes do granizo.
“Pai, posso vir dormir para aqui?”
Acendeu o candeeiro. Rosarinho estava parada à porta do quarto, os longos cabelos castanhos revolvidos numa trança espontânea sobre um dos ombros, uma almofada apertada nos braços. Condoeu-se de a ver descalça, puxou uma ponta do edredão para trás, num convite.
“E a tua irmã? Não acordou com o barulho?”
“Sabes como ela é: dorme como uma pedra. Uma vez, na casa da mãe, caiu da cama abaixo e nem sequer acordou!”
E Rosarinho, já enfiada na cama, desatou a rir convulsivamente.
“A sério?”, perguntou o pai apagando a luz e tentando engolir o riso na escuridão.
“Sim! A mãe disse: ‘O que vale é que sais ao teu pai, tens a cabeça dura’.”
“Hmm. Sabes no que estava aqui a pensar?”
“Não...”
“Ano passado, na noite de Natal, pouco depois de chegar da casa do Agostinho, ia pôr-me a ver um filme e faltou a luz: num instante a sala ficou gelada e tive de ligar o forno do fogão para me aquecer!”
“A sério!? E depois?”
“Depois, nada. Não vi o filme e tive de ir para a cama mais cedo do que queria.”
“A sério? Qual era o filme?”
“Aconteceu no Natal...”
“Não, o título mesmo do filme...”
“Aconteceu no Natal(1), já disse.”
“Veio mesmo a calhar, o nome”, comentou Rosarinho com um bocejo.
Acordou com o zumbido – alguém premia uma campainha com insistência. Ao abrir os olhos percebeu do que se tratava pelos jactos de luz azul, intermitentemente projectados no tecto do quarto através dos interstícios nas persianas.
Ao seu lado, alarmada pelo choro iniciado no quarto contíguo, Rosarinho gemeu:
“A mana está a chorar... Que foi, quem está a tocar?”
“Deixa, é para mim. Dorme, eu vou à mana...”
Vestiu-se à pressa, nas trevas; depois entreabriu a janela e acenou para baixo, a avisar que estava a caminho. Correu ao quarto pequenino. Sentada na cama, a filha mais nova choramingava no escuro. Sentou-se na borda do leito, abraçou-a. Ela quis saber o que se estava a passar, aquele barulho todo.
“São os senhores da ambulância, é para o pai... Vá, dorme.”
Micéu perguntou ainda se seria um menino que tinha ficado doente por ter comido doces a mais.
“Não, não é um menino: a esta hora os meninos estão todos a dormir nas suas caminhas. Vá, dorme; ficas com a mana.”
Regressou ao quarto para algumas recomendações a Rosarinho, mas esta adormecera. Rabiscou umas instruções rápidas em torno do pequeno-almoço e deixou aconselhado que a filha batesse à porta do andar em frente se surgisse algum imprevisto, pois era Sábado e a enfermeira Odete estaria em casa.
No armário da entrada pescou a maleta onde guardava os impressos dos certificados de óbito, a lanterna, o espelho para detectar o embaciado produzido por uma respiração ainda existente. Desceu as escadas duas a duas e, antes de se aventurar no exterior, entalou o cachecol no pescoço. Eram 6:35 e estava noite cerrada. Dezembro, o mês mais cruel.
No terreiro de acesso às entradas dos prédios, o jipe da GNR gorgolejava, paciente, e o farolim do tejadilho lambia de azul as paredes e os plátanos que hibernavam na madrugada, fazendo brilhar, na passagem, o granizo encaroçado no chão. Uma porta abriu-se para ele entrar.
O comandante da GNR arrancou e, abençoadamente para o seu estado estremunhado, guiou sem tugir até ao lado de lá da ponte sobre o Tâmega. Depois, como se tivessem entrado noutro país, disparou:
“Pois é, senhor doutor, lá tivemos de o acordar a meio da noite...”
O delegado de saúde encolheu-se contra o assento. A leste começava a clarear e esquadrões de névoa despejavam-se das montanhas. Perguntou:
“O que é, desta vez?”
O Comandante não respondeu, apresentou o passageiro que seguia no banco de trás.
“Acho que conhecerá o Valadares, o presidente da junta de Canedo. Veio por aí abaixo no jipe da guarda-florestal – saiu de lá antes das quatro da manhã e volta connosco, coitado..."
“O caminho está mau, caiu um nevão lá em cima, ontem, ao anoitecer...”, explicou o Sr. Valadares como se pedisse desculpa pelos incómodos causados pela sua freguesia. Nevão, se Rosarinho ouvisse...
O comandante da GNR voltou ao assunto principal, a voz repassada de incredulidade.
“Desta vez foi uma tragédia – ainda nem há certeza sobre o número de mortos –, terá sido uma família inteira! Veja só ao que um pobre pode estar destinado nesta vida: marido e mulher, a trabalhar como mouros em França. Estavam a construir casa em Canedo, aos poucos. Este ano vieram para o Natal e já ficaram a dormir lá, embora – segundo aqui o Valadares – aquilo ainda seja um estaleiro, nem a baixada da luz está ligada. Ontem, como ninguém os avistasse, foram bater-lhes à porta: nem um ai! Quando arrombaram, tresandava a gás e deram com os corpos do casal na cama, mais os dois filhitos no quarto ao lado. Tudo morto, ao que parece!”
“E o pior”, completou Valadares do assento traseiro, “é que havia ainda um terceiro filho, um bebezito de meses; a esse ninguém encontrou... Também, confesso, aquilo foi entrar e sair, quase às escuras: quem é que quisera estar ali dentro!?”
E caíram no silêncio. Tinham subido além de Santo Aleixo, o asfalto findara abruptamente e o comandante da GNR guiava em total concentração, adaptando-se ao terreno de solavancos e barrancos da estrada florestal, nada mais do que uma estreita língua de saibro pedregoso, cheia de covas e lama; todos os anos refeita na Primavera e desfeita pelo Inverno.
“Já ali arrombei o cárter uma vez”, recordou o comandante apontando o queixo para a curva que, subindo e descendo, se aproximava do lado de lá do vidro do jipe.
Canedo era a freguesia mais a norte. Uns escassos vinte quilómetros a separavam da sede do concelho, mas percorrê-los demorava duas horas e só carros de bois ou jipes se aventuravam naquela vereda, um trilho de cabras serpeando entre pinheirais intocados e flancos de serrania.
O delegado de saúde já por ali estivera uns pares de vezes, a acompanhar a equipa de vacinação ou em visita à extensão do Centro de Saúde que andava a ser construída com dinheiro norueguês. Um buraco, era como ir a lugar nenhum! Cada vez que passava por ali sentia-se tentado a dar razão ao Agostinho, que sempre costumava desabafar quando se deslocavam a lugarejos semelhantes:
“Mas como é que, com tanto terreno livre, lhes passa pela cabeça construir e viver em tal sítio?! Gente atrasada!”
Olhou o relógio. Oito e dez e ele em jejum absoluto. Oxalá as miúdas ainda dormissem. Se a viagem fosse demorar tanto como a do regedor só lá chegariam depois das nove. Limpou o vidro embaciado com o cotovelo, olhou o céu. A manhã estava instalada, mas o céu tinha a cor do mar em dias de cerração, o mesmo cinzento espesso. Dali só podia sair mais neve, pois já tinham subido acima da altitude em que o granizo é provável. Podia ser que acabasse também por nevar na vila.
“O senhor Dr. quer parar em Ceirós, a rilhar qualquer coisa?”, interrompeu-lhe o Comandante as divagações meteorológicas.
“Querer, queria, mas onde?”, exclamou, pois era homem que acreditava em cafés e restaurantes e Ceirós era um buraco ainda mais pequeno, mais perdido, do que Canedo. Uma ruela, estradada a tojo e caruma, futuro estrume para os campos pedregosos, pontuada por uma mão de casas velhas, rudes como grutas.
O Comandante deu uma gargalhadinha e, pelo retrovisor, olhou o banco de trás, numa silenciosa prece de indulgência ao regedor pela falta de conhecimento e diplomacia daquele estrangeiro. E foi dizendo, em voz lenta e melíflua:
“Sempre há-de haver quem nos ofereça uma fatia de presunto e um naco de broa...”
“Nem me fale em presunto, que já estou aqui a augar só de pensar em poder deitar-lhe as unhas...”, emendou o delegado de saúde usando o humor como contrição.
E todos riram muito.
"Que maravilha”, pensava o médico meia-hora mais tarde, agora confortavelmente instalado no banco do jipe e sentindo um torpor agradável tomar conta de si. A broa ainda estava morna do forno e a gordura do presunto, tão alva como a neve mas de brilho mais amistoso, combinava com ela como ouro sobre azul. A rematar, engolira um cálice de aguardente, incolor, mas tão potente que lhe enchera os olhos de lágrimas.
“Oh, cum grandessíssimo sarrafo!”
O delegado de saúde, que escorregava para uma sonolência, abriu os olhos de repente, sobressaltado pela travagem brusca e pela imprecação do comandante da GNR, de habitual homem de linguagem comedida.
Emoldurado no negro encharcado dos troncos dos pinheiros, pisando com leveza o imaculado que cobria o chão, a uma dezena de metros um lobo encarava o jipe tranquilamente. Apesar de estar entre chapas de metal, o médico sentiu os pelos do corpo arrepiados por um estremecimento. Aquele animal no meio da estrada, mau grado o tamanho e o formato serem similares, não tinha parecença com um cão. Mais do que o hirsuto da pelagem, era a pose altiva, a aura de solidão autossuficiente e o fogo selvagem dos olhos que faziam dele uma outra espécie. Ali se quedaram uns eternos instantes, mirando-se em silêncio, até que o lobo deu de costas vagarosamente e, trotando na neve, desapareceu na floresta.
A tal casa era desviada da aldeia, centrada num terreno lamacento circunscrito por um murete de pedra vã que parecia mais definitivo do que a habitação. A construção consistia somente em paredes de blocos de cimento, uma chaminé de tijolo, e um telhado. Os buracos das janelas nem vidros tinham e estavam defendidos por taipais de madeira, pelo que era impossível espreitar, e a única janela com vidraças estava tapada do interior por um cobertor pendurado. O único luxo parecia ser a porta principal, de alumínio com arrebiques de vidro martelado, arrombada pelos populares na véspera e mantida cerrada por um pedaço de fio eléctrico. Lá dentro, mesmo à luz do dia, a escuridão era quase absoluta e, além de arrancar o cobertor da janela, foi preciso despregar um dos taipais para que se visse alguma coisa. Apesar disto, o interior continuava escuro, nenhuma das paredes estava ainda rebocada ou pintada e os blocos de cimento, o tijolo nu de algumas divisórias, absorviam a luz desmaiada da manhã invernosa.
Fazendo do corpo um instrumento, o delegado da saúde inteiriçou-se na borda da cama para melhor se poder dobrar e observar os três cadáveres, pois, ao puxar os cobertores e as mantas com que o casal se tapara para passar a noite, tinha descoberto, acobertado entre eles, o corpo de uma criança que, calculou, teria os seus três ou quatro meses e que, ao invés da tez lívida dos restantes, mostrava uma face inchada e arroxeada, olhos papudos. No outro quarto, agasalhados em cobertores de papa, recobertos com casacos, havia dois cadáveres sobre um estrado que fazia de leito: uma rapariguita com os seus sete anos e um rapazito que rondaria os três. O delegado de saúde tocou a ambos na testa com dois dedos, como se lhes auscultasse a febre: estavam gelados, contaminados por aquele frio empedernido que vem com a morte.
“Eis o presumível assassino, comandante Mário”, comentou apontando o rapazito. E perante o semblante perplexo do outro, acrescentou: “venha comigo, ver se estou a pensar mal.…”
A cozinha era um pobre espaço em tosco, e só se lhe percebia a função pelas tijelas empilhadas e pelos dois ou três tachos pousados sobre uma bancada baixa em tijolo e cimento, onde estava pousado um fogão a gás de três bicos, acoplado a uma botija de gás por um tubo de borracha.
“Veja os manípulos dos bicos do fogão: todos abertos, todos ligados! Já se vê por onde o gás se escapuliu durante a noite... E o gás viaja baixo, é mais pesado do que o ar, nada melhor do que encontrar gente deitada para a asfixiar sem que deem conta! E quem acha que pode ser tão inconsciente que deixe três bicos abertos sem o lume aceso? Se ainda fosse um só, poderíamos admitir esquecimento de adulto; mas assim... Cá para mim, foi o pequenito que, por curiosidade ou brincadeira, rodou os botões quando ninguém reparava. Estão mesmo à altura das mãos de uma criança daquele tamanho.”
O Comandante tinha-se acocorado para melhor examinar o fogão; com um movimento seco desconectou o redutor da botija.
“Tubo de gás, redutor, anilha: tudo novo em folha, sem rachas, sem folgas; não foi por aqui. Percebo o que quer dizer com isso do alegado assassino... E, de facto, olhe que parece o mais condizente... Acidente: quem é que no seu perfeito juízo iria suicidar uma família inteira, um bebé de mama?!”
“Claro que nunca o poderemos vir a saber, não é? Mas parece a melhor explicação, apesar de tudo.”
“Cinco mortos por causa dum desleixo destes”, o comandante da GNR não se conformava. “E a botija chupada, leve como uma pena...”, dizia sacolejando o recipiente.
“É como uma epidemia”, conjecturava o delegado de saúde mais tarde na manhã, quando já regressavam os dois à vila, “diga-me lá quantos mortos por gás doméstico vimos nós os dois nestes últimos dois anos?”
“Ui..., um rol!”, quantificou o Comandante.
“E tem vindo a aumentar com o progresso, com os fogões, os aquecedores de sala e os esquentadores; com esta maltosa a instalar gás em casa sem respeitar as mais elementares regras de segurança. Quantos gajos atravessados nos ladrilhos vimos por terem posto o esquentador dentro do quarto de banho? Assim, de repente, só este ano e o outro, lembro-me de três. Três, mais estes cinco, dá oito: diga-me lá se isto não é uma epidemia, se tem comparação com as mortes pelas velhas braseiras a carvão?”
O Comandante, agarrado ao volante, concentrado nas covas do caminho, achava que talvez, que bem podia ser uma epidemia.
“O senhor acha que vai nevar lá em baixo, hoje?”
O condutor pensava que não, que granizara; que mesmo a neve que iam vendo no regresso estava mais mole, já se lhe notava, nas bordas do caminho, a cor lamacenta da mistura com a terra.
Nesta conversa, e nos silêncios que a pontuaram, tinham chegado à vila, onde, de facto, não se via ponta de neve. O comandante da GNR estacionou o jipe à porta do Posto, desligou a ignição e virou-se para o delegado de saúde.
“O doutor Raul, não quererá vir daí comer qualquer coisita lá a casa? É dia de descanso e são mais que horas de almoço... Tratávamos das formalidades depois...”
“Fico-lhe grato, comandante Mário, mas tenho as minhas miúdas comigo, à espera; chegaram ontem do Porto e tive de as deixar sozinhas.”
O Comandante remexeu-se, incomodado, no banco; não sabia como lidar com aquele modelo de um homem (para mais uma autoridade) ser sozinho e ter filhos a cargo.
“Oh, diacho, e eu que nem perguntei nada, vim para aqui em vez de o largar em casa... Confesso que vinha distraído a pensar no que vai ser encontrar, a um Sábado, o delegado do Procurador. Está bem, está!”
Quando entrou, cheirava a comida e pela porta da kitchenette viu Rosarinho em volta do fogão; no tapete da sala Micéu brincava com Kali.
“Que fazes, fada do lar?”
“Estou a cozer batatas, primeiro descasquei-as. A enfermeira Odete veio trazer um tupperware com bacalhau cozido e grão-de-bico; disse que tratasse de cozer batatas e uns ovos. Mas dos ovos não tratei, não sei quanto tempo é, e se se podem meter na mesma água das batatas. Ela disse que sim, mas a mãe diz que é uma porcaria.”
“Por causa do cocó agarrado à casca”, esclareceu Micéu seguindo a conversa do tapete e deixando Kali escapar ao abraço.
“Quando chegarem ao Porto comunicam à vossa mãe que qualquer bactéria morre em água a ferver ao fim de cinco minutos”, disse o pai abrindo o frigorífico, retirando três ovos da porta e depositando-os com deleite sobre as batatas que rodopiavam na água espumante. “E tu, Rosarinho, tem cuidado com o gás: quando acabares confirma sempre que os bicos ficaram todos desligados. Pode ser muito perigoso deixar o gás aberto, sem lume! Ouviste?, estou a falar contigo!”
Rosarinho, a quem sobrava o avental, estampado com colheres de pau, que aquele mulherio do Centro de Saúde lhe tinha oferecido num aniversário, virou o pescoço para enfrentar o pai com um par de olhos ofendido.
“Ouvi, não sou surda; não sei porque estás a gritar comigo.”
Micéu atrasara-se no almoço, pois insistia em picar cada um dos grãos separadamente; Kali lambia peles de bacalhau num pires aos seus pés e o pai e a irmã lavavam a louça na banca.
“É engraçado, mas a Odete parece que se liga a mim através do bacalhau”, contava o pai em voz alta: “Sabes uma receita que ela me ensinou e que mete bacalhau? Não tem nada a ver com comida, ou antes: tem a ver com bebida!”
“Bebida?! Como queres que saiba! O que é?”
“Sabes qual é a melhor receita para manter o café moído sempre fresco, com o sabor conservado?”
Rosarinho encolheu os ombros: não gostava de café. Foi Micéu, que fazia sulcos com uma colher de chá num prato onde tinha sido esmagada banana com marmelada – a sua sobremesa preferida, quem se interessou pelo segredo.
“Pois enfia-se uma ponta de rabo de bacalhau na lata do café...”
“Mesmo no meio do pó?”, Rosarinho suspendeu o gesto de limpar o prato com o pano.
“Mesmo no meio do pó... Não fica sabor nem cheiro.”
“Que nojo! Agora é que nunca mais vou gostar de café na vida!”
“Aposto que se o Gustavo disser que gosta, vais logo dizer que gostas e que já bebeste...”, provocou Micéu levantando-se e entregando o prato à irmã para que o lavasse.”
“Quem é esse Gustavo?”, quis saber o pai, constatando que a novidade o fazia sentir como uma excrescência à vida que as filhas levavam no Porto.
“Não ligues, pai, é ela que é uma estúpida, uma anormal.”
“Anormal és tu”, respondeu a irmã, “e só por te pores assim vou contar ao pai...”
“Vá meninas, nada de zangas parvas. Rosarinho, pára com isso e atende o telefone... Já sabes: nunca dizes logo que estou, dizes que vais ver.”
“É o comandante Mário...”, esticou-se Rosarinho em direcção à porta da kitchenette, tapando o bocal do telefone com a mão.
Raul Barbosa encolheu-se: seriam já novidades das mortes de Canedo? Atendeu, retraído, detestava ter de falar no assunto com as miúdas ali ao lado, como se o gás ou a morte pudessem conspurcar o ambiente.
“Senhor doutor, desde há atrasado. Se não incomodo, vou passar-lhe aqui a minha esposa, que tem algo a transmitir.”
“Doutor Barbosa... Natividade, desculpe estar a incomodar... O Mário contou que tem as meninas a passar uns dias consigo. É que tínhamos muito gosto se viessem cá jantar, passar um bocadinho do serão...”
Agarrado ao telefone, agradecendo, anuindo nos detalhes, Raul Barbosa foi-se dando conta de que começava a fazer parte de Penaformosa, a estar enredado em pequenos fenómenos que se entrechocavam. Não sabia se gostava disso.
Mas as miúdas gostaram e os donos da casa também, uma combinação de que se foi apercebendo no decorrer das horas e derreteu as apreensões prévias, deixando a descoberto a ponta afiada de inúteis remorsos por ter suposto diverso. O casal não tinha filhos e Natividade, professora e directora da escola primária da vila, demonstrava, nos seus modos um pouco secos, especial tacto para lidar com os onze anos de Rosarinho; fazendo sucessivas apostas sobre o que ela já dominaria em matéria escolar e de pronto a requisitando para ajudar na cozinha, onde havia um verdadeiro fogão a lenha que a encantou com as suas portinhas de abrir e fechar e as suas torneirinhas, peça que lhe fazia lembrar uma casa de bonecas, mas sem ser de fingir. Na cozinha, igualmente a cativou Diana, a cadela perdigueira do Comandante, que obtinha total permissão para cirandar pela casa e estar deitada debaixo da mesa onde D. Natividade chamuscava um creme amarelo com um ferro posto ao rubro no abismo de um disco que destapara ao fogão e sob o qual dançavam labaredas. Nada daquilo seria possível na casa do Porto, onde os discos do fogão eram disciplinadamente eléctricos e nem sequer um cão – ou até um gatinho – sonhariam em entrar, pois a mãe tinha pavor às alergias e aos parasitas que os animais domésticos podiam pegar.
Na sala, sentado numa cadeira virada ao lume, Raul deixava-se surpreender pela transformação que tomara o formal comandante da GNR seu conhecido e que, na nova reencarnação, se dirigia a Micéu num balbuceio que fazia dele um autêntico débil mental; derretido, tão só, pela fixação da miúda em ter à sua posse o quépi da Guarda, que mantinha enterrado na cabeça deixando-lhe só os olhos destapados.
“Micéu, já chega... Olha que podes estragar o chapéu do comandante Mário...”
Mas o proprietário protestava, afirmava que havia outros de onde aquele tinha vindo, encantado da naturalidade com que a menina se movimentava pela sala e tomava posse dos objectos, perguntando coisas; fascinado pela beleza dos seus olhos expressivos, das perguntas directas, e tecendo considerações sobre a simplicidade abençoada da infância.
Ao jantar, D. Natividade desculpou-se muito pela exiguidade da ementa – canja de galinha, fêveras de porco e coelho assado com arroz de miúdos – mas o curto intervalo de tempo não lhe permitira que caprichasse a confecção.
“Mas que bem se portam as suas meninas”, segredava o Comandante a Raul, sentado à sua direita, deliciado com o modo como Micéu, sentada à outra cabeceira da mesa sobre duas listas telefónicas, sorvia a canja soprando antecipadamente na colher e acariciando com a mão livre a sombrinha de chocolate que fazia companhia aos talheres e lhe pertenceria, por inteiro, mal terminasse a refeição.
“Mas tens de comer tudo...”, ia avisando o pai.
“Não haverá mal se sobrarem umas migalhitas de arroz, não é assim, Dr. Barbosa?”, intercedia o Comandante, “ficam para os passaritos...”
(continua)
(1) It Happened one Christmas, realizado em 1977 por Donald Wyre.
Imagens (de cima para baixo): 1. Le Due Bambine, de Felice Casorati; (2) Lobo, de António Alijó.
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