O triplamente ministro Heitor em Rebordões. |
Só lhe faltando o tradicional megafone dos feirantes, vi um destes dias na SIC um dos vários comentadores instantâneos que emergiram com o Covid 19, apresentar e louvar as maravilhas de uma nova máscara de protecção facial. O novo milagre (designado MOxAD-TECH) não só nos protege, como outras que andam para aí, mas protege a praticamente 100 % e durante 12 meses ou perto disso, pois esta máscara é lavável e longamente reutilizável. E como poderá uma coisa destas - que não acontece sequer nas tradicionais máscaras profissionais FFP2 (protecção 95 %) e FFP3 (99%) - suceder? Ora, a nova máscara tem três-camadas-três de tecido, uma delas impregnada por um antiviralque não se desvanece mesmo ao fim de 50 lavagens e mata qualquer vírus que se aproxime do feliz portador. Mas não é só: este portento é produzido 100 % em Portugal, numa oportuna parceria entre ciência, indústria têxtil e comércio retalhista, uma tripla parceira que foi até acarinhada pelo triplo ministro da Ciência-Tecnologia-Ensino Superior, Professor Dr. Manuel Heitor, que teve a gentileza de ir ver o milagre ao vivo em Rebordões, berço territorial do fenómeno.
Tudo isto, que é tanto e me obrigou a tão longo parágrafo, foi anunciado em primeira mão na TV pelo virologista Simas, personalidade que acumula o cargo de comentador com o de funcionário do Instituto de Medicina Molecular Professor João Lobo Antunes (IMM), um satélite da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Tal como suponho terá sucedido a outros telespectadores, fiquei com os olhos ofuscados pela poeira dourada de uma Solução Final em termos de máscaras, mas simultaneamente algo intrigado por essa maravilha da técnica e da ciência estar apenas classificada como 'máscara comunitária', isto é naquela mesma categoria dos outros pedaços de pano com atilhos que andam por aí. Mas então aquilo não é suposto proteger a 100 %, na fasquia acima mesmo do mais profissional e tecnicamente sofisticado material no mercado? E se, como se diz, contém um antimicrobiano (antiviral) não deveria ser licenciado como um medicamento ou produto medicamentoso, acompanhado das respectivas precauções de uso?
Quando o encandeamento se dissipou, remeti-me àquela atitude chata da dúvida sistemática que me ensinaram a praticar na Universidade e, posteriormente, no meio profissional técnico e científico em que me movi como médico. Aqui ficam, a quem possa interessar, as minhas dúvidas e perplexidades, que gostaria de ver esclarecidas, de preferência em artigo publicado em revista científica (incluindo métodos usados, resultados obtidos, conclusões e translações inferidas) e julgado pelos pares, uma vez que se trata de produto para uso e protecção de seres humanos que foi chancelado, publica e notoriamente, por um Instituo que se pretende do âmbito da excelência em termos científicos.
1. A máscara MO conterá, segundo afirmações do Dr. Simas na TV, um antiviral altamente eficaz contra o Corona (embora a propaganda fale em antimicrobiano e junte também a protecção perante bactérias, fungos e outros germes). Ora, que se saiba, não há nenhum antiviral (medicamento) assim tão eficaz na exterminação do Corona e, desses, o mais apto que se conhece é o remdesivir, usado no vírus do Ébola, e cujo tratamento orça os cerca de 2.000 euros por pessoa. Esta máscara portuguesa, se é esse produto que usa (ninguém nos diz qual é), deveria ficar um balúrdio em termos de preço e seria mais plausível esperar vê-la à venda numa boutique da Avenida da Liberdade do que num hipermercado de Matosinhos ou de Odivelas.
O milagre de Rebordões. |
2. E se o que a máscara MOx contém é um medicamento antiviral, então quais as implicações previsíveis de estarmos a ser expostos agora a um medicamento que, mais tarde, poderá vir a ser necessário se adoecermos e formos parar ao hospital com Covid19? O remdesivir é actualmente é usado nos hospitais de todo o mundo que o podem comprar. É que (característica frequente em medicamentos) o ser humano pode adquirir tolerância a um produto com o qual contacta com frequência, ou seja as doses poderão ter de ser aumentadas para continuar a produzir um efeito eficaz. Por outro lado, e isso sucede com antimicrobianos repetidamente usados, o vírus ou a bactéria contra o qual é usado o medicamento podem ganhar resistência à substância e esta deixa de ser eficaz. Isto é: se um dia viermos a precisar mesmo desse medicamento, ele não irá actuar. Todos estes aspectos em torno da exposição, tolerância e resistência, deveriam ser cuidadosamente ponderados e explicados, se o que o fabricante de Rebordões está a usar na máscara é, como informou o Dr. Simas, um antiviral farmacologicamente e terapeuticamente classificável como tal.
3. Se o tal produto que impregna a máscara e a torna milagrosa não é inerte e tem propriedades medicamentosas, então onde estão as advertências que devem acompanhar o uso de qualquer medicamento? As substâncias com acção medicamentosa podem, por exemplo, ter efeitos adversos numa mulher grávida e no seu bebé, sobretudo durante os três primeiros meses de gravidez. E quanto ao uso em crianças? Se a quantidade da substância usada é calculada para um adulto, o que sucede se se sujeitar uma criança (com um peso três ou quatro vezes inferior a um adulto) ao uso da máscara? Ficará exposto a uma quantidade de produto três ou quatro vezes superior ao que seria adequado para a sua idade, tamanho e peso. Nada disto nos é esclarecido por ninguém. Os milagres não se explicam.
4. Mas pode acontecer que a tal droga impregnante não seja, afinal, um antiviral (como dito), mas antes um virucida(um produto que mata vírus, tal a lixívia, o álcool, ou outro desinfectante) e então será legítimo levantar a questão da toxicidade desse produto para o ser humano que o vai aspirar diariamente e por longos períodos. Todos recordámos os disparates que produziu em torno deste potencial milagre lixiviante o presidente Trump que, numa lógica Neandertal de raciocínio causal, concluía que se um desinfectante mata o vírus "então 'bora injectar lixívia no pessoal". É outro dos aspectos que deveria ter sido cuidadosamente explicado pelos tais cientistas que asseguram e testaram tudo isto: qual o produto que está a ser usado, em que concentração, e qual a potencial toxicidade sobre as pessoas, pois não basta dizer que é inofensivo ou seguro e "vão por mim".
5. Finalmente, outra faceta do milagre e uma das mais intrigantes: a máscara pode ser lavada dezenas (50? 10?, a coisa varia) de vezes, pois o tal produto exterminador do vírus mantém-se ali, firme, a matar tudo ao fim de quase um ano de uso e desde que se deixe passar uma hora após o vírus pousar. É de arromba e é de Rebordões! Confesso que nunca tal vi ou ouvi. Os medicamentos e os químicos em geral, como qualquer médico ou farmacêutico sabe, são produtos frágeis, sensíveis à luz, à temperatura, à humidade e a outros aspectos, seja durante a sua conservação, manipulação ou uso. O mais semelhante que consigo invocar a este milagre da impregnação duradoura e sempre eficaz é o das redes impregnadas de insecticida repelente que se usam (em África sobretudo) para evitar que o mosquito da malária pique as pessoas que dormem sob elas. Nessa situação concreta o que se pretende é que o mosquito voe para longe dali (o objectivo nem sequer é matá-lo); as ditas redes não devem estar em contacto com o corpo de quem as usa e, se lavadas, vão perdendo capacidade de repelir o mosquito, pois nada é eterno. No vertente caso da máscara MOxAD-TECH, conforme é entusiasticamente garantido pelo IMM, a máscara pode ser lavada, relavada, trilavada, que o produto lá continua, como dantes, a criar a sua barreira invisível contra qualquer vírus que ouse aproximar-se. Confesso que teria gostado muito de ver isto escrito e publicado em revista científica antes de começar a ser usado em seres humanos e posto à venda. Pode-se, para além do atropelo ético, estar a criar uma falsa ideia de segurança e isso é grave, sobretudo partindo a garantia de quem partiu (o professor Lobo Antunes costumava ensinar que um investigador/cientista se avalia tanto pela qualidade do que descobre como pela sua postura ética e deontológica perante a descoberta e a sua divulgação).
O milagreiro lixiviante. |
6. A máscara do IMM (que se apressou a validar as qualidades excepcionais) não é única no mercado internacional em termos de solução milagrosa. Há uma outra, por exemplo, que anuncia incluir uma geringonça geradora de raios ultravioleta, os quais matariam qualquer coisa que se aproxime. Lá está: em Rebordões é o elixir impregnante, aqui o raio mágico. Acontece que a radiação ultravioleta tem que se lhe diga e, entre outros efeitos, pode provocar queimaduras graves e cancro da pele. Não seria eu a andar nunca com um aparelho amarrado à face (olhos, lábios, nariz) que, no silêncio, estivesse a bombardear-me com radiações, violeta, ultravioleta ou de outra ultracor qualquer!
7. Cara/o leitor, por favor tenha cuidado com as soluções anunciadas como milagrosas, desde os juros de 20 % ao mês às máscaras 100 % eficazes! Temos no mercado, testadas há décadas pelo uso, muito boas máscaras, que proporcionam protecção adequada apenas pelo modo como são concebidas e produzidas mecanicamente, e sem corantes e conservantes.
Nota: Dedico este texto à memória do Professor Lobo Antunes, que nada tem a ver com este assunto.
É assim mesmo, Pedro! Um abraço
ResponderEliminarComo sempre uma analise cuidadosa baseada no conhecimento público e no Bom senso. Abr
ResponderEliminarBela mistura de rigor cientīfico, bom senso e sentido de humor. ;-) Abraço
ResponderEliminarBela mistura de rigor cientīfico, bom senso e sentido de humor. ;-) Abraço
ResponderEliminarObrigado Jorge, Zé e Jorge Costa. Abraço para todos
ResponderEliminarPois... Aguardemos os artigos científicos que nos vão explicar o truque. Entretanto vou seguir o teu conselho. Abraço
ResponderEliminarFinalmente alguém faz as perguntas incomodas. Já agora aconselho a questionar quanto custa o trabalho do IMM sobre o efeito das máscaras no coronavirus que causa a Covid-19.
ResponderEliminarPara máscaras comunitárias (certificação nível 2, de uso profissional) têm uma textura suave ao toque mas além da embalagem dizer que o principio ativo é o dimetiloctadecil (cloreto de amónio), sobre o qual a Europa não dá a melhor das informações para uso humano - https://echa.europa.eu/.../-/substanceinfo/100.044.163 -, princípio que ainda segundo a embalagem resiste a 50 lavagens, tenho uma outra dúvida: como é que estas máscaras foram aprovadas antes de testes com suficiente tempo de uso em voluntários, de forma a eliminar contraindicações? Mas não são as únicas que usam este composto, a Impetus também o faz (https://www.impetus.pt/en/reusable-mask_551.html). Se com esta informação sobre o composto que a embalagem refere puder ir mais longe na sua reflexão, agradeço imenso. PS - Obrigada pela sua reflexão, identifiquei-me com as suas questões.
ResponderEliminarNota importante: as primeiras embalagens não referiam o nome do produto. Apenas as mais recentes o fazem.
ResponderEliminarObrigado pelos seus comentários e informações, Maria Manuel. Tudo isto é bastante lamentável e perigoso para o consumidor e o que mais me aflige é a chancela "científica" (e até política) que se apressam a dar a estas inovações milagrosas.
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