01 julho 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 6. O pastor de frangos

Chegou entusiasmado, seguro de que fizera boa escolha, que podia estar, mesmo, no limiar de uma viragem na vida. Sentiu pressa, passou a visitar com maior empenho o gabinete escuro e malcheiroso do Dr. Coutinho da Costa.
“Apercebi-me de muita coisa enquanto estive na Noruega, Dr. - acho que aprendi mais nestes dois meses do que nos seis anos do curso da Faculdade. Gostava de ser um participante mais activo no processo, quero estar mais envolvido, mudar-me lá para cima quanto antes.”
Eram os primeiros dias de Outubro e a inauguração do Centro estava agendada para o final do mês, só faltava fixar o dia; havia dois ministros que ainda não tinham confirmado a disponibilidade das respectivas agendas. Coutinho da Costa olhou-o atentamente.
“Acho excelente o princípio, mas temos de assegurar uma série de etapas prévias: que o Joaquim Urbano já autorizou a sua saída; que possamos começar a pagar-lhe com verbas do Projecto; verificar se já tem uma casa pronta a recebê-lo... Você já foi lá cima espreitar?”
Raul Barbosa encolheu-se dentro do casaco de couro como se pretendesse tornar-se mais pequeno, um empreendimento difícil. 
“Confesso que não... Mas ir à Noruega deu-me uma visão diferente de tudo isto: está toda a gente tão envolvida, tudo tão bem pensado. Aqueles tipos sabem mais sobre Penaformosa do que eu! Parece que só eu é que estou de fora...”.
“Tem tempo, não se aflija, tem muito tempo. Se me permite o conselho, comece por ir lá, ver que tal... Uma coisa são estágios e boas intenções, a outra a realidade: vá tomar contacto com ela.”
Na manhã da primeira incursão fez um desvio por Cabeceiras de Basto. Lembrara-se, a horas, que um antigo colega de Faculdade era daquelas bandas e numa conversa de café em que se começa a infiltrar a nostalgia e se pergunta que é feito de fulano e sicrano, alguém reavivara:
“O Matos? Voltou para as berças, calcula! É delegado de saúde na terrinha e parece que cria frangos nas horas vagas.”
Raul Barbosa saiu de Cabeceiras enriquecido, uma das fortunas foi a surpresa: aquele tipo baixote, brincalhão, com quem se entediara pelos anfiteatros, tornara-se um homem grave, cauteloso na expressão, parecendo esconder a capacidade de penetração por trás da pose provinciana e, por muito que Raul o tentasse sacudir com os “velhos tempos”, não conseguira provocar fissura no novo enfarpelamento.
“E agora crias frangos, cabrão? Dantes sonhavas em esfolar frangas...”.
“Ó pá, sabes como é... Tinha aí um terrenito do meu pai, demasiado pedregoso fosse para o que fosse. Fiz como os outros e mandei construir lá um barracão, enchi-o de pintos.... Olha que aquilo dá-me tanto como o que nos pagam no Estado.” E, pelo tom prudente do outro, cheio de meandros minhotos e acautelando já eventuais pedidos de empréstimo de um potencial vizinho, Raul ficou a supor que aquilo lhe dava mais do que o salário de funcionário público.
Mas a parte mais suculenta de ensinamentos da visita surgira ao almoço, num restaurante em que o Manel Matos que empurrava tabuleiros na bicha da cantina da Faculdade era tratado com cerimoniosa reverência.
“Carago, Matos, és um senhor por aqui...”
“Podes ver com os teus olhos! Terras pequenas, vais ver como é, não são só desvantagens. E, além do mais, não estão a dormir em pé: sabem que tenho uma palavra a dizer na passagem do Boletim Sanitário; que, em última análise, sou o tipo que lhes pode fechar a tasca...”
Mas não foi caso disso, pelo menos nesse dia: a vitela assada estava excelente e as batatas assadas, com o toque avermelhado do colorau, desfaziam-se na boca. Matos, sob a influência do Pasmados, tornara-se um pouco menos prudente e a sua manha acabara por transbordar do espartilho do cargo, transformando-se numa torrente de informações, carregadas de pestilência local.
“Eu dependo de Braga, graças a Deus, mas tu vais ficar sob a pata de Vila Real, camarada. Põe-te a pau, que, pelo que me chega aos ouvidos, aquilo é malta da corda!”
“Malta da corda?! O que queres dizer com isso? Achas que fiz mal em assinar contrato? Estou em crer que não, olha que vi tudo muito bem pensado... E, de qualquer modo, estou integrado num projecto-piloto, sempre me deve dar alguma protecção, não? E ter os noruegueses a vigiar o que se passa...”
“Os noruegueses!”, o outro gargalhava, vermelho de prazer, aspirando os fiapos de vitela de entre os dentes em inspiradas sorvedelas, “os noruegueses, ... fia-te! Esses estão a milhares de quilómetros, virão cá, duas vezes ao ano, cortar fitas, gabar o presunto e o vinho. No dia-a-dia, vais é ter de contar com as doninhas do aido...”
“Porra, não me assustes, que não foi para isso que vim ver-te ao fim destes anos todos... Explica-me, mas é, um pouco isso de ser um delegado de saúde, que não faço ideia...”
“Isso vais aprendendo, não tem pressa; vais ver que é muito diferente do que se passa num hospital citadino. Aqui não podes empurrar com a barriga, não te podes esconder atrás dos outros da enfermaria, das requisições de Rx e dos pedidos de análises para empatar: as pessoas batem-te directamente à porta, esperam por ti à saída, abordam-te na mesa do café. Olha, deves ter lá em cima um agente sanitário – há sempre um, mesmo onde não há mais ninguém – vai procurá-lo e, ao menos no começo, aconselha-te com o que ele disser. Tudo aquilo de que não percebes nada – águas, esgotos, vistorias a restaurantes, pareceres sobre projectos de habitações – ele estará mais do que rodado. Não sei quem é o teu, mas deve haver por lá um...”
“Casas, restaurantes, esgotos!”, Raul sentia-se aturdido com aquela caterva de assuntos que nada lhe pareciam ter a ver com medicina.
“Sim, sim”, confirmava o outro, “e mortos; espera pelos mortos...”  
“Mortos?! Mortos, como?”
“Mortos, foda-se, cadáveres; julguei que terias visto algum no hospital... Eles não te morrem por lá, na Infecto? Aqui morrem que se fartam: suicidam-se; são mortos à sacholada pelo vizinho, por causa de partilhas de água; ficam por baixo do tractor, que se virou num lameiro...”
“E eu com isso?”
O Matos vigiava o jacto de brandy que o empregado despejava no café, com um aceno da calva luzidia instava-o a continuar o sacudir da garrafa; esperou que o rapaz se afastasse.
“Tu com isso?! Vais ser o primeiro a olhar para eles, amigo: a GNR e nós somos sempre as primeiras vítimas – confirmar o óbito e as circunstâncias; somos sempre nós - mesmo que estejam tão visivelmente mortos que até um calhau daria conta, ninguém lhes mexe sem nós mandarmos. E se a morte for indeterminada e te calhar um delegado do Procurador marca Roskof, vais ter de lhes fazer a autopsiazita da praxe...”
“Autópsia?! Mas eu sei lá fazer uma dessas! Baldei-me às aulas de Medicina Legal o que pude, como toda a gente. Julgava que era a gente do Instituto, no Porto, que tratava disso tudo.”
“Pois não é, pelo menos aqui, atrás do sol-posto...”
“Matos”, implorou Raul, “tu dás-me uma ajuda quando eu precisar, não? Ao menos no início? Posso fazer umas telefonadas, vir visitar-te?”
“Claro, sempre que quiseres..., mas, entretanto, vai-te ambientando com o agente sanitário, vai soprando o pó à sebenta das perícias médico-legais. Ainda a tens por lá, não?”
“Sei lá, às tantas deitei fora”, gemeu Raul pensando na saída apressada da casa comum. 
“Fizeste mal”, terminou o outro, puxando a conta para si com um gesto peremptório. “Como é, ainda vais hoje lá cima?”, perguntou ao despedir-se junto da 4L.
“Estava a pensar, já não é longe.”
“Tu é que sabes...”, disse o Matos olhando o relógio de través: “Mas olha que passa das três e meia, mais três quarto de hora de caminho... A esta hora não encontras ninguém em lado nenhum, está bem, está!”
“Se calhar volto para o Porto, vou lá noutra ocasião...”, raciocinou Raul, parecendo aliviado por ter um pretexto para não se expor a mais novidades contundentes nesse dia; “também não é morte de homem...”.
“Não, podes crer que não”, assegurou o antigo colega despedindo-o com uma pancadinha no friso da janela do automóvel.  

(continua)

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