04 março 2021

VOU-TE CONTAR: 75. Deus abençoe os ausentes

Queirã?! Sim, Queirã, nunca ouviu falar? É natural, eu próprio nunca teria ouvido falar se não se tivesse dado o acaso de o meu pai ter por lá nascido.

Queirã é uma aldeia do concelho de Vouzela, distrito de Viseu, e dizer Vouzela é dizer já o bastante. Estive em Vouzela recentemente e comprovei a vila parada, pasmada. Imagine-se agora uma aldeia recôndita, satélite de Vouzela, sem outro horizonte do que o ficar deslumbrada com essa vila que é o centro do seu sistema solar. Potencie agora tudo isso colocando-se em 1947, quando se passou a história que lhe quero contar.

Junho de 1947, a 2.ª Guerra Mundial terminou há menos de dois anos e a Europa, o Mundo, está em ruínas, em crise profunda: fome, miséria por todo o lado, cidades e vilas são amontoados de destroços, e isto acontece desde a Espanha ao Japão, não esquecendo a Alemanha, que ficou em farrapos. Mas, mesmo num panorama destes, a vida continua para os vivos, é preciso tentar ser feliz, seguir a nossa vida. Posicionemo-nos, então, como se tudo estivesse a começar de novo e o mundo fosse uma tenra esperança.

O cenário mudou para a cidade do Porto, uma rua residencial, tranquila, de moradias abastadas. Um jardim muito cuidado - a exigir jardineiro residente -, cheio de canteiros e esquadrias, trepadeiras, verdes e flores e, pelas roupas leves de quem se passeia, pode inferir-se que estará um dia encantador, talvez de fim de Primavera, e que será já da parte de tarde, pois os corpos projectam sombras nas paredes e nos muros.

Várias pessoas movem-se pelo jardim, vão parando e tirando fotografias, é para elas que olho a tentar entender o que se me apresenta, pois sei que a minha existência, ao menos os seus fundamentos, começou algures ali. O que será aquilo? O que estará aquela gente a fazer e porque é que uma das mulheres parece estar tão tensa, as mãos persistentemente atadas uma na outra? Apesar de não aparentar ter ainda idade para isso (deverá rondar os quarenta), está vestida como uma viúva, e embora sorria e o sorriso seja bondoso, é um sorriso algo crispado, fabricado, de quem preferiria, talvez, estar noutro local. Mas não é viúva, aquela senhora discreta, a quem o saia-casaco só não assenta discretamente por contraste com os outros, pois o tempo é estival e os companheiros estão trajados levemente. Aliás, embora não apareça nas fotografias, o seu marido também anda por aqueles jardins, na companhia de um padre, ainda novo, alto e forte, de feição irónica e despachada. Esse padre é irmão da senhora embaraçada e, ambos, são irmãos de um outro homem, muito moreno, de fato escuro, em quem sobrenada a atitude de ser o elo entre aqueles dois mundos e parecendo preparar-se para continuar a frequentar aqueles jardins.

O que explica tudo aquilo? O que andarão aquelas almas, os que foram fotografados e os outros, fora do enquadramento, a divagar por ali, naquela tarde de 4 de Junho, uma quarta-feira?

A cena retrata o pedido de casamento da minha mãe, que acabou de fazer 21 nesse mesmo dia e é a rapariga de cabelo ondulado e ar um pouco aéreo, envergando um casaco ligeiro e claro, às riscas, praticamente igual ao da sorridente irmã mais nova, essa, sim, nas suas sete-quintas e aparentemente divertida com o acontecimento: um pedido de casamento deve ser coisa positiva e divertida, certo? O homem de fato escuro tem 31 anos feitos e é o meu pai, e uma outra dama, que também sorri contidamente à ponta de um banco, é a minha avó, mãe da noiva, a qual se deixa ver em apenas uma das fotografias, após o que desaparece, o que terá sido fácil pois está nos jardins bem tratados da sua casa, o que não sucede com metade da comitiva, vinda de Viseu, a mais de cem quilómetros e três horas de viagem. 

Pelas sobras da tarde, o jardim fica por conta dos visitantes, e o meu avô, o pai da noiva, não deu sequer abertura para descer e posar para a posteridade, como se esperaria de uma solenidade daquelas. Onde estará? Supõe-se que tenha estado nalgum momento anterior, uma vez que a mão de uma filha requer-se na presença de ambos os pais e a ele lhe competiria a palavra final. Mas esse momento já terá sido e o restante entretenimento fica por conta do mulherio, o mulherio que entretenha os visitantes, ele terá mais do que fazer e, bem vistas as coisas, tudo aquilo não lhe agrada sequer muito, não seria o que esperava como futuro para uma filha mais velha. Mas, enfim, os jovens são teimosos e a filha, embora obediente à superfície, tem uma ponta de personalidade; fôra dificultoso impedi-la de querer continuar os estudos e ir para a Universidade, convencê-la do que se esperava dela: que cumprisse o destino e ficasse em casa, entretida a ser uma senhora como as outras!  

O meu avô era, à data destes acontecimentos, um homem poderoso, gerente de um banco, como ocupação principal, e uma figura conhecida na cidade, capital do Norte, pelas costelas artísticas, as herdadas e as desenvolvidas: o homem escrevia, editava revistas, livros e almanaques; era sócio de uma livraria, de uma editora e de uma tipografia; escrevia e produzia peças de teatro e uma delas, A Costureirinha da Sé, estreada há um par de anos, fora um sucesso, não só regional mas também nacional, acabaria por dar um filme, as canções do enredo eram trauteadas pelo povo da cidade. Era esse o mundo em que se movia e agora a sua casa apalaçada, onde onze arcos de pedra embelezavam a arquitectura das fachadas, a sua vida via chegar, precipitadamente, um potencial genro de Queirã (uma aldeola atrás do sol-posto), dez anos mais velho do que a filha, mas licenciado em Medicina há pouco mais do que meses, pois desperdiçara grande parte da juventude num seminário!; um tipo sem nome, sem carreira, sem cheta.

Se deslocarmos a lupa para a perspectiva do meu pai, duplamente órfão há muitos anos, topamos rapidamente na razão que explicava ser a irmã mais velha a fazer as vezes de patrono no pedido de casamento. A Maria do Céu, oito anos mais velha, não restara outra saída senão a de fazer de mãe dos irmãos (dez, contando com ela); tivera de crescer depressa e o meu pai reconhecia-lhe o estatuto com naturalidade: era junto dela que se aconselhava, a quem pedia dinheiro emprestado se estava atrapalhado, era em casa dela, em Viseu, onde residia quando não estava na Universidade, era por lá que tinha quarto e uma cómoda onde guardava os esquálidos pertences. Nada mais natural e apropriado, então, do que pedir à irmã para assumir aquele papel, e o meu tio Vasco (o padre) garantiria um complemento lógico com o seu estatuto, a sua voz forte e o modo de ser assertivo.

Mas como raio, divago eu imiscuindo-me nos eventuais pensamentos do meu avô Heitor Campos Monteiro, fôra aquilo chegar a acontecer? Onde é que um tipo daqueles, escuro como um mouro e peludo como um macaco, teria conhecido a filha e como se pudera aproximar dela? O meu avô, de pele clara e louro nos tempos em que tinha cabelo, conhecia bem o círculo de amigos da minha mãe - a maior parte deles frequentava-lhe a casa -, teria uma ideia razoável dos pretendentes que, necessariamente, surgiriam na costa, dado que a minha mãe era viva, bonita e carismática, dotada de uma apreciável capacidade de manipular o ambiente e concentrar atenções. Com todas esses prendas, distinguia-se no Porto, em Espinho, pelas termas de Melgaço, em Santa Cruz da Trapa, em Oliveira de Frades e até, de passagem, em Vouzela, onde havia uns primos distantes e, imagine-se, se organizavam bailaricos! E surge o acaso a fazer das suas, a divertir-se com o improvável, e o meu pai terá visto a minha mãe, pela primeira vez, dentro das fronteiras do território natal, teria ela catorze anos e ele vinte e quatro. O mundo teria ainda de cumprir várias rotações em torno do eixo, passar por uma guerra generalizada, até que uma aproximação se desse, desta feita em Espinho, onde a família da minha mãe veraneava e, por lhes estar mais à mão quando se traçava a linha recta, as gentes da Beira-Alta procuravam o litoral. 

Nas décadas seguintes o futuro escreveria a história de ambos e, afinal, o meu pai não desiludiu. Mas quem consegue prever o futuro a partir do horizonte estreito de uma bela tarde de Junho?

 


 

 

Nota: O título deste texto está em dívida para com a canção "God Bless the Absentee", de Paul Simon, álbum One-Trick Poney, 1980.

 

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