Vou-te Contar (saga sobre casas e quem lá vive)



                           
    VOU-TE CONTAR

                  


1. Uma casa não é um lar

A chair is still a chair
Even when there's no one sitting there
But a chair is not a house
And a house is not a home
When there's no one there to hold you tight,
And no one there you can kiss good night.

Burt Bacharach-Hal David ("A House Is Not a Home")

muito que tenho o desejo, vago mas recorrente, de escrever sobre casas. Imagino um livro formado de várias partes, cada uma dedicada às casas que foram presença na minha vida, ou por terem sido lar ou por as ter visitado e revisitado e esses dias se me terem entranhado na existência. A parte de leão que me levaria a escolher uma sobre as outras encontraria justificação, mais do que em circunstâncias arquitectónicas ou de paisagem envolvente, nas pessoas que lá moravam ou por lá passavam. 
Incluiria nesse projecto virtual a casa dos meus avós paternos, perto de Viseu, um casarão com paredes de granito de um metro de espessura onde passei os meses de Setembro da minha infância e adolescência; e a casa, de traça árabe e lógica vertical, com terraços sobrepostos e jardim interior, empoleirada à sombra do castelo de Mértola, onde durante sucessivos Verões dos anos 80 e 90 me acoitei nos estios alentejanos.
Nesta lista faria presença obrigatória uma vivenda andaluz, erigida no meio da Serra Morena, a menos de uma centena de km de Sevilha, construída por um nazi mitómano de ascendência belga, casa apimentada pelo detalhe de um quarto secreto, sem janela para o exterior e de acesso feito por uma portinhola camuflada num dos quartos. Na descrição desta casa, como em outras, conviveriam as cercanias, os passeios dados pelas matas das redondezas em Outonos brumosos, as setas apanhadas nessas sortidas, as conversas e conservas que delas se faziam dada a impossibilidade de comermos tanto cogumelo fresco em tão poucos dias....
Fossem prosaicas, como o terceiro andar do Fundo de Fomento da Habitação onde morei quatro anos em Trás-os-Montes ou misteriosas, como a vivenda espanhola que citei ou a casa centenária dos meus avós que, pelos ruídos que a habitam durante a noite ou pela emparedada escadaria para o sótão por trás de um guarda-vestidos tem estatuto para albergar fantasma, todas essas casas contariam uma rede de histórias de que eu seria o pretexto mas que, como uma trepadeira, entreteceriam outras pessoas e invadiriam outras dimensões. Finalmente, dessa lista fariam obrigatoriamente parte uma casa em Viana do Castelo e a vivenda em Cascais a cujas paredes acrescentei a longa convalescença de uma doença grave e a descoberta dos rolos de libras de ouro que o sol nascente projecta através dos interstícios dos estores.
Quando novo, o meu sonho era morar num chalé antiquado, com venezianas que, se escancaradas, permitissem ver o mar... Na minha imaginação, essa casa teria, em letras serifadas de ferro forjado, um nome poético como Sol Nascente ou Sol Poente e seria perfeito se o nome da própria localidade ecoasse o bucolismo do local: praia da areia branca ou da areia dourada seria algo muito adequado a essa ideia. Por caminhos que desconheço como se traçaram foi a um sonho desses que fui parar, mas, como diz o ditado, não desejes demasiado uma coisa, pois pode ser que te aconteça. Ou, por outras palavras: os sonhos realizados nunca têm o sabor que lhe imaginámos, algo se perdeu quando lá chegámos ou um travo amargo foi acrescentado.
O mesmo aconteceu ao meu projecto de livro sobre casas da minha vida. De súbito, quase eclipsando todas as outras, vi surgir ante mim, com a insistência muda de um pedinte, a necessidade de contar tudo o que associo ao deambular pela casa que o meu pai construiu no Porto e que vi ser sonhada, erigida, habitada e fechada num período de tempo que se escoou entre os meus dedos como um chamamento que soa, ecoa e se perde no ar. 


2. O aniversário da Migaça

Em que dia morreu o pai?” 
“Nove de Novembro!”, apercebi um toque de escândalo no tom, na velocidade do arremesso com que a minha irmã mais velha respondeu do outro lado do fio.
Nunca fui bom a reter datas de aniversário, quero dizer, para além daquelas que me estão automaticamente associadas como as do nascimento dos meus pais, irmãos, alguns entes queridos ou ex-queridos... Sei lá bem em que dias fazem anos os meus tios, cunhados, primos, sobrinhos ou quem veio depois disso. Agora, com as agendas electrónicas e os avisos pré-configurados gerados por telemóvel e computador tornou-se mais fácil evitar certos esquecimentos, antes disso quem me valia era a memória das mulheres, que são mais aptas que os homens neste e noutro género de detalhes que fazem o mundo rodar harmonioso no seu eixo.
“Não te esqueças que hoje o Docas faz seis anos”, relembra-me em sms a minha irmã mais nova, mãe do aniversariante, “diz-lhe qualquer coisa...” 
Ou se me surgiu uma lembrança duvidosa e telefono a perguntar: 
“Não está a fazer anos a Migaça...? Não é já para a semana, a 14?” 
“Não! É 14, mas só no mês que vem, estás a confundir Junho com Julho! É exactamente entre a Titona – que faz a 10 – e o primo Raul que, se fosse vivo, fazia a 18...” 
E eu pasmado com aquela capacidade, talvez ainda mais com as mnemónicas complexas que revelam quando explicam o modo como retêm e encontram na memória tudo aquilo: 
“É fácil: O primo Raul nasceu no mesmo mês em que me casei – só que eu casei a 3. Assim só tens de somar 15, que é o dia em que faz anos a tia Lelé, só que em Agosto...” 
Deste modo, a Clarinha, minha irmã mais velha e um autêntico elefante, válido até à quarta geração, de parentesco e vizinhança, no assinalar de efemérides, ficou naturalmente chocada com a minha ignorância quanto ao dia da morte do nosso próprio pai. 
Posto isto, achei melhor não esfrangalhar totalmente a credibilidade junto dela e telefonei à Susana, minha irmã mais nova, a precisar um outro pormenor: 
“Vai fazer dois anos que o pai morreu, não é...?” 
No Algarve apenas desde a véspera, sentada na borda da piscina a vigiar o Docas que se transformava progressivamente numa beterraba após tantas horas a mergulhar-sair-cá-para-fora-e-tornar-a-mergulhar, ela ficou atarantada com tal categoria de pergunta a meio de Agosto: 
“Agora até me puseste parva... Deixa ver: A mãe morreu a 3 de Março de 1999 e o pai no dia 9 de Novembro..., eu achava que de 2007... Sim, há mais de um ano já foi, já houve uma missa de aniversário, estiveste lá! 
Ainda a conseguia ouvir, no meio do vozear e do chapinhar, chamar o Zé Maria, o filho do meio, para ir confirmar junto do marido, o meu cunhado Gil – de quem nunca recordo o dia, ou sequer o mês, de aniversário – o ano da morte do sogro, meu pai. 
Do lado de cá do fio, melhor seria dizer do satélite, senti a consciência a caminho do excesso de peso. Desconhecia o dia da morte do meu próprio pai, não tinha a certeza quanto ao ano em que isso tinha acontecido e, ainda mais inconfessável, não voltara a pôr os pés no cemitério desde o dia do funeral. É que nem sequer nos dias tradicionalmente votados a isso, fosse em dia personalizado como o do seu aniversário natalício ou o da sua morte, ou em feição mais institucionalizada como no dia de Todos os Santos. 
Mas este pormenor de ausência espacial sempre era mais fácil deixar no vago.... 

3. Novembro

O meu pai sempre detestou o mês de Novembro, que me lembre nunca explicitou os motivos, mas recordo o preguear de nariz ao referir-se à sua chegada.
Agora, que nada posso confirmar junto dele, resta-me especular sobre os motivos da aversão. Talvez pudesse ser até uma razão pessoal, relacionada com uma qualquer experiência de má memória, mas relembrando a sua personalidade rural, alicerçada em ciclos telúricos, a razão era mais provavelmente a situação encalhada de Novembro na roda do ano.
Setembro traz consigo uma acalmia em relação aos excessos do Verão, é o mês das vindimas, do armazenar de tesouros para o Inverno, contém uma certa alegria activa após o ensurdecimento e a inacção impiedosa de Agosto. E Outubro tem dias suaves, as cores na Natureza são de beleza admirável, as temperaturas consolam porque são muitas vezes melhores do que o esperado. Depois, Dezembro tem esse tom de esperança, esse milagre inexplicável que é o Natal, por muitas voltas que se dê, por muitas críticas que se lhe faça; um momento todo especial, que assinala o mês como uma marca registada. Mas Novembro... Não há esperança que se associe a Novembro, Novembro é uma espécie de Domingo à tarde dos meses do ano. As noites tomaram nitidamente conta do dia, o frio instalou-se com crueldade, a terra despiu-se e encolhe-se, até o que não tem remédio se celebra nesse mês como o dia dos Fiéis Defuntos! Novembro traz todas as gamas de cinzento e negro à tona. 
Em Novembro, o meu pai deixou-se ir à deriva; não havia costa suficientemente à vista.

4. Até sempre


Não lembro, não lembrarei mais, qual das últimas foi a última vez que vi o meu pai vivo. Não me é difícil reconstituir o que poderá ter sido esse momento: desde o Verão desse ano passei a ir ao Porto com maior regularidade, habituei-me a fazer aqueles trezentos km que me separavam de casa quase sem pestanejar. O coração apertava-se ao virar a frente do carro para as grades do portão da casa do meu pai, enquanto saía do automóvel e o abria, enquanto deslizava rampa abaixo, fechava o carro, subia as escadas que dão para a porta da cozinha e me preparava para entrar em casa e enfrentar a visão dos detalhes que me tinham sido relatados ao telefone pelas minhas irmãs, mais aquilo que eu próprio somava por experiência directa. Nesses últimos meses não havia nada a pôr no monte das coisas que estavam a correr bem. E eu ao leme de quem tinha sido o meu leme, não há maior sensação de naufrágio.
Quando, nesses Domingos à tarde, regressava ao Sul, à minha própria vida, era com desalento que olhava a fachada da casa antes de arrancar; era com alívio que, umas tantas dezenas de km de auto-estrada volvidos, reparava enfim na beleza da tarde que se esbatia, que via surgir no céu um contorno de lua, o tom dourado que se espraiava a poente.
Antes de sair, passava pelo quarto a despedir-me:
“Pai, tenho de ir andando...”
“Vai, vai à tua vida”, dizia ele e rematava, quando me inclinava para o beijar na face ou na testa:
“Até sempre...”
Terá, pois, sido esse o modo como nos despedimos a última vez que o vi, com um “até sempre”, uma despedida que adoptou nos últimos anos de vida. Desde quando, quando se processou essa viragem na fórmula de despedida? Não sei, não sei; ele sabia mais do que eu sobre certas coisas e, com raras excepções, não falava do processo de chegar a elas.

5. A tia embuçada

Sob certo ponto de vista, o meu pai faz-me lembrar um daquele sucessos americanos que descobrimos nos filmes feitos por lá e que eles tanto gostam de celebrar. O emigrante, frágil e sozinho, mas com a determinação do encurralado que procura a luz, que chega a um país desconhecido. Passados uns anos sobre a manhã em que chegou a Ellis Island, vemo-lo instalado, como se sempre por ali tivesse andado: constituiu família, tem casa própria, adaptou-se ao local onde vive mas mantém e vai propagando em surdina os valores que trouxe da terra natal.
No caso dele, a sua América foi a cidade do Porto e o seu ponto de partida uma aldeia que ainda hoje surpreende pela pequenez e isolamento, perdida entre Vouzela e Viseu, um daqueles locais anónimos que vemos passar com um estremecimento ao olhar pela janela do carro durante uma viagem interminável por estradas secundárias. Não há rede de telemóvel para nenhum dos operadores no casarão de granito que foi dos meus avós, que o meu pai reconstruiu e tornou habitável para os seres que conheceu e a quem deu origem no Porto, habitável o suficiente para todos adorarmos ir lá passar um mês de férias seguido em cada fim de Verão da infância, para que a memória de todos nós ficasse para sempre ligada ao local. Os meus avós daquele lado eram agricultores abastados, o que estava longe de significar dinheiro no banco, apenas terras, muitas parcelas de lavoura e pinhal espalhadas por uma grande extensão geográfica; animais; pessoal contratado para as lides de casa e do campo. Posses, num contexto daqueles, significava vida árdua, não se distinguindo com excessiva nitidez da vida dos outros todos que por ali andavam a arrancar algo à terra, demasiado dobrados sobre si próprios para sonhar que outra paisagem pudesse existir para além do recorte do Caramulo.
“A nossa família vem lá de cima, de Ventosa”, apontava ele o azulado da serra com um brilho de satisfação nos olhos, “gente esperta...”.
Mas dez filhos vivos, encavalitados uns nos outros sem intervalo, tornavam ainda mais remota qualquer hipótese de os meus avós paternos virem a alcançar liquidez. A minha avó morreu cedo, o meu pai andava na escola primária e o meu avô não tornou a casar; teve de despachar os filhos, pois que faz um viúvo com sete filhas sem idade sequer para casar? Dois dos rapazes foram despachados para o seminário, o terceiro emigrou logo que pôde para as américas, onde andou perdido longas décadas antes da família o conseguir voltar a encontrar. Já grande, descobri divertido que tinha uma tia mulata e que o meu tio do Brasil era dado aos orixás! Depois, as raparigas casaram entre a aldeia natal e Viseu, uma delas, para honrar a tradição, ficou solteira e áspera. O encontro com ela causava-me alguma ansiedade quando era pequeno, o olhar zombeteiro e implacável e o seu beijo, que incluía a esfregadela de um buço rijo, tolhia-me em cada Setembro de férias na aldeia, em cada passagem de ano em que visitávamos aquelas costelas da família.
Dos dois seminaristas, apenas um chegou a professar, o meu tio Vasco, meu padrinho, que chegou a cónego e me prometeu deixar a Casa da Mó e todos os seus outros bens se lhe seguisse as pegadas. “Nem morto”, imaginava já eu nessa altura, horrorizado que lhe passasse sequer pela cabeça tal ideia sobre mim. Quem, também, a dado ponto começou a suar frio com a perspectiva de usar marcas de distinção como um colarinho duro e semelhante a uma coleira, uma tosquiadela infligida no cocuruto, foi o meu pai. Mas mais do que essas praxes, contou-me ao pé da lareira da nossa sala de estar no Porto, foi um dia, aliás poucos dias antes de poder optar por qualquer outra coisa na vida, foi, dizia, a perspectiva de os seus pensamentos passarem a ser controlados, isto é, de a sua opinião nunca poder ser livre e ter de seguir determinada cartilha. E aos 19 anos, in extremis e já com a formação do seminário de Viseu completa, mandou tudo às urtigas.
Deve ter sido momento duro, carregado de angústia, essa decisão solitária e o que ela significava em termos de ter de procurar outro rumo na vida. Sem mãe, com um pai distante e a gerir uma manada de dez filhos, um irmão já estabelecido na profissão, toda a despesa ficou a cargo dele.
No seu modo de ser silencioso, o meu pai nunca explicitou demasiado as emoções associadas a esses instantes, mas é interessante que tenha guardado a memória dos momentos em que tomou a decisão e, instante não menos terrível, imagino, a comunicação da decisão ao meu avô. Não teve, sequer, uma mãe que pudesse interceder por ele, atrás da qual se pudesse resguardar um pouco da inclemência ou desabafar na noite desse dia.

6. Trindades

Foi sem qualquer acento de queixa ou tom de mágoa que, oitenta anos depois do sucedido, no ambiente acolhedor e confessional que ganha a sala de estar ao fim da tarde, o meu pai revelou:
“Sabes que não me lembro da minha mãe? É que não guardo mesmo memória nenhuma…”
Sentado na laje da lareira, reajeitando as achas, mantive o olhar nas chamas, deixei que fosse o seu crepitar o único reflexo ao comentário.
“Não tenho aquilo a que se pode chamar uma recordação de uma relação entre mãe e filho…”, continuou, expondo uma ideia que nascera da conversa sobre o modo como certos fragmentos de memórias resistem ao tempo e emergem na consciência isolados de outras recordações, aparentemente rebeldes a uma cadeia de associações que os expliquem.
“Devia ter uns oito ou nove anos quando ela morreu, era pequenote, um miúdo…”, prosseguiu, como procurando na tenra idade uma justificação para tal vácuo. Mas isso também não pareceu remediá-lo:
“Mas é curioso, pois lembro-me de coisas ainda mais antigas, sabes? Lembro-me, por exemplo, de um dia estar ao colo de alguém – era tão pequeno que estava ao colo – e ouvir anunciar: ‘Chegou o Gaspar da guerra!’”.
Era a primeira grande guerra, a de 1914-1918, o conflito do qual esse vizinho regressava e o meu pai usava o último ano da guerra como bitola para calcular a própria idade à época:
“Sim, devia ter os meus três, quatro anitos, estava ao colo de alguém… Não me lembro de mais nada, nem de ver o Gaspar aparecer, nem de quem dizia aquilo a quem, nem sequer de quem me tinha ao colo… Só me lembro dessa frase solta!”
Eu também tinha experiências daquele tipo na minha vida, pedaços desgarrados de memória que vêm à tona e resumi um deles, relacionado com a primeira vez que me lembrara de ouvir uma música específica – o Domenico Modugno a cantar o “Volare”. Mas o meu pai estava mais inclinado em olhar e seguir os contornos dessa cratera onde faltava uma ponte que desse corpo à memória de uma relação entre mãe e filho.
A minha avó paterna, que sempre conheci olhando-me a preto e branco por trás de uma moldura, tivera dez filhos e morrera nova, com um mal arrastado que a afastou da vista dos filhos os últimos meses da vida. O meu pai não recordava nada de directo, de íntimo, relacionado com ela; com a progressão da doença, com os seus últimos momentos, uma eventual despedida…
“Só me lembro de me mandarem ir brincar para o quintal de cima – ela devia estar mesmo a tombar, percebes? – e de ouvir dizer que o funeral foi tão concorrido que o caminho para o cemitério ficara ensilvado de gente…”
Pousei a tenaz com cuidado, levantei-me da pedra e fui correr os estores das janelas que deitam para o terraço, pois lá fora o rosado do poente de Inverno volvera-se numa sombra que reflectia já as nossas silhuetas nos vidros.
“Fecha-me essas persianas”, recordei, como sempre acontece quando executo o acto de encerrar uma janela ao anoitecer, a voz da minha mãe que não gostava de “ver os olhos da noite…”
E num gesto disfarçado olhei a imagem dela que, junto a uma flor de camélia votiva, reina no primeiro plano de uma fila de livros na estante ao lado da lareira. 
“Só há uma cena, uma única cena em que me recordo dela, sabes?”, continuou o meu pai logo que me sentei na poltrona perto da dele.
Mantive-me em silêncio, esperando, pois o que ele precisava não era de alguém que o questionasse, mas de alguém que o ouvisse evocar.
“Sabes o que são as trindades?”, perguntou.
Quase me senti chocado. Claro que sabia o que eram as trindades, sabia-o até duplamente, isto é literariamente e de eu próprio ter assistido, em Verões longínquos, a esse tocar fino de sinos que anuncia as ave-marias e a tardinha, o fim do dia de trabalho no campo... O meu pai julga sempre que eu sou mais novo do que o sou!
“Pois um dia vinha com a minha mãe, uns passos atrás dela, tínhamos acabado de passar a porteira e tocaram as trindades. A minha mãe parou e eu fiquei ali quieto a olhar para ela enquanto esteve parada, sei lá a fazer ou a pensar o quê...”
Ficou uns momentos a fixar a lareira e rematou:
“Não sei o que ela pensava nem o que eu próprio pensei. Fiquei ali parado, a olhar para ela... Mas olha que te podia mostrar, com um erro de centímetros, o lugar exacto onde isso se passou... É a única recordação que tenho dela...”
Com mais atenção do que o costume olhei a minha avó que continuava a fitar-me com muda insistência da moldura no rebordo de granito da lareira. Um pouco mais acima, espreitando na borda da estante, a minha mãe acompanhava atentamente a cena, enquadrada na tardinha rubra e dourada de um friso de livros de lombada vermelha com títulos gravados a ouro.

7. Fogo, caminha comigo

Há lareiras espalhadas na minha existência desde que me lembro. Essa presença veio pelo meu pai, foi ele que trouxe consigo essa essência do fogo e de quando toda a vida familiar girava em torno da pedra do lar, isto é, da lareira.
Na remodelação da casa dos meus avós paternos, edificada há mais de 150 anos nos arredores da serra do Caramulo, o meu pai fez construir uma nova lareira no topo Norte da sala de jantar, no recanto que funciona como sala de estar, mas na construção primitiva havia um dispositivo de fogo que ainda hoje nos deixa boquiabertos. A cozinha morava então num edifício separado do corpo da habitação principal, ao qual se tinha acesso apenas pelo exterior da casa e cujas paredes pareciam ter como única função a de suportar uma chaminé! A área dessa cozinha é um espaço onde hoje caberia um apartamento... E todo esse espaço, de chão de lajes de granito, é dominado por essa imensa chaminé cuja boca, negra da fuligem de um século, tem o tamanho do chão de lajes. Aí, nesse chão, se desenrolava tudo: fervia-se a água, cozinhava-se, comia-se; passavam-se serões e  mantinham-se conversas que tinham por pano de fundo o rubro e o negro de um fogo sempre aceso, por meditação a coluna de fumo que subia até à noite e por banda sonora o crepitar da madeira.  
Na minha primeira casa no Porto, onde passei a infância e os primeiros anos da adolescência, não havia lareira nem seria fácil improvisar uma. Mas a noção de envolvência térmica era confortavelmente emulada por uma salamandra prateada com uma portinhola de vidro de mica através da qual se via a reverberação laranja de um fogo quase sem chama, originado na combustão de umas pedras de carvão muito atraentes à vista, ao odor e, até, à proibição absoluta de toque. Essas pedras pareciam conchas de amêijoa, um formato entre o rissol de camarão e o bolinho de bacalhau. Suponho que fosse carvão moldado para parecer assim, chamava-se coque e se o seu aspecto era marítimo, o seu odor lembrava comboios e túneis de caminho de ferro. Acho, também, que ainda reconheceria, se o ouvisse, o ruído que produzia quando era despejado, de um balde de lata de pescoço alongado, na boca insaciável da salamandra. Que gabarito térmico aquilo encerrava! Ao fim de umas horas de carburação todo o ferro forjado do corpo cilíndrico da salamandra ficava em brasa, uma brasa que contagiava em cor laranja o primeiro metro do tubo da chaminé, canudo que trepava pelo interior da casa, aproveitando as voltas do corrimão, para se escapulir até à clarabóia e ao chapelito cónico que, já fora do telhado, precavia o retornar do fumo sob a ventania de inverno. Tanto quanto recordo, aquele tambor de ferro forjado e a sua chaminé de lata, pintados da cor do mercúrio nos termómetros, aqueciam a casa toda, inclusive a flanela dos nossos pijamas que pairavam lá em cima, dispostos sobre o corrimão e envolvendo o cano como um cachecol, a tempo de estarem tépidos quando nos fossemos deitar e de fazerem parelha com a botija de água quente que esperava escondida em vale de lençóis.  

8. Sexo indeterminado

O meu pai mantinha um registo minimalista e pragmático da sua existência. Fazia-o sob a forma de agendas, daquelas do tamanho de um lenço de bolso, e recordo, desde criança, o ritual dos primeiros dias de cada ano em que, aplicadamente sentado à secretária do escritório, respondia a todos os postais de Natal que lhe tinham enviado e passava dados da agenda do ano findo para a agenda do ano que se iniciava. Tudo começava com uma página de identificação, preenchida ao pormenor: nome completo, morada, número da apólice do seguro, a quem avisar em caso de acidente; contactos telefónicos de familiares, colegas médicos, daqueles doentes que se transformam em amigos e quase família; o electricista, o homem que vai contar os vasos de resina dos pinheiros sangrados nas matas de Viseu, todo esse mundo que convém manter à mão.
Mas depois dessa primeira página sobrelotada e minuciosa, os registos de cada dia volviam-se minimalistas e não continham nada de pessoal, consistiam apenas em informações factuais sobre doentes vistos, intervenções cirúrgicas realizadas, dinheiros recebidos, compromissos a realizar. Nada de íntimo.
Na agenda de 1953, para dar um exemplo, no dia em que nasci, o meu aparecimento no mundo consta em rodapé da quadrícula destinada ao dia 22 de Junho, e a menção é esquálida:

                      Peso com vestuário 3.550
                                                     340
                                                  3.210
                     Às 5,10 Nasceu

E é tudo. Por ali nem o meu sexo se ficava a saber ou alguma luz é derramada sobre a circunstância de o meu nome estar já ou não decidido. Sabendo que, nessa época, a minha existência não seria viável abaixo do, digamos, quilo e meio, concluo por exclusão de partes que a minha primeira roupa pesou 340 gramas...
Nos dias e nos meses que se seguiram à sua morte tivemos que remexer as gavetas da secretária dele, em busca da infindável lista de demonstrativos que a solicitadora nos ia exigindo para regularizar a situação perante as finanças e o registo civil. Num desses dias, enfiei as dezenas de agendas que encontrei na primeira gaveta da escrivaninha em duas caixitas de cartão e colhei-lhes uma etiqueta na tampa: “agendas do pai”. Arrumei as caixas numa das divisões com porta da estante onde dantes estavam amontoados as amostras de medicamentos e não pensei mais nisso. Elas não eram úteis de imediato, isto é, não iam servir como demonstração formal de nenhum facto. 

9. Não disse palavra

O escritório é uma das divisões a que me dirijo automaticamente sempre que entro nesta casa. Já nada há lá a fazer, de facto, e como é virado a Norte e tem uma única janela é sala algo sombria, facilmente dada a ficar impregnada pelos cheiros que por lá se demoram. Nos seus tempos mais movimentados, um dos odores presentes era o cheiro a medicamentos que se evaporava das divisões com portinhola do armário-estante que enchia uma das paredes, estante em que o meu pai arrumava livros de medicina, pintura e filosofia e amontoava amostras da propaganda médica. Mais abaixo, numa posição já perto de cócoras, ao abrir as gavetas onde se guardavam as fotografias de família (eram todas guardadas ali, não sei porquê), o nariz era picado pelo acidulado odor a película fotográfica característico das fotos pré era digital, no tempo em que eram reveladas e fixadas com cantoneiras e legenda em álbuns ou arrumadas em envelopes, em vez de ficarem para sempre perdidas na memória de um disco duro de computador.
Não é que o meu pai passasse muitas horas fechado no escritório e ‘fechado’ é mesmo palavra desadequada, pois quando lá estava mantinha a porta aberta, mas é a divisão da casa que indubitavelmente era o seu sítio, todo o resto eram locais mais partilhados. 
“Deve estar no escritório do pai.” 
E assim, não sei até que ponto o facto de ir lá parar amiúde sempre que aqui entro não se relaciona com a procura da sua presença, a procura da sua companhia. Meu Deus, os mortos regressam e tornam-se tão vivos e tão pertença dos lugares onde viveram... Não é no cemitério de  Agramonte, ali ao lado da Casa da Música, que seja o que for que reste dele habita – é nesta casa.
Após a casa ser fechada, na primeira noite que lá dormi sozinho, acordei de um sonho forte com o coração a palpitar. Fiquei a reconstitui-lo no escuro (com o cuidado que se deve ter na reconstituição de sonhos, pois se os tentamos reter com força esfiapam-se), os cotovelos fincados no colchão da cama onde ele morrera menos de dois meses antes.
No sonho, eu estava no escritório, de joelhos, a procurar papeis para os ordenar e arrumar nas gavetas da estante, uma tarefa que se tornou obsessão obrigatória para todos nós após a sua morte. De repente, a porta abriu-se e o meu pai espreitou para dentro, mostrando um semblante algo surpreendido por me ver ali a mexer nas coisas dele. Não disse palavra, retirou a cabeça e foi-se embora. Quanto a mim, consciente dentro do próprio sonho, não ignorava que ele já tinha morrido e que, por todas as leis da lógica, não era suposto aparecer ali, os mortos não aparecem aos vivos em presença física – é um pacto antigo! De qualquer modo, ao vê-lo espreitar não deixei de me sentir um intruso, a espiolhar, a interferir no seu espaço. Deitado na sua cama, reconstituindo o sonho, após a apreensão supersticiosa do primeiro embate, quase sorri com a clareza do recado antes de adormecer de novo para a manhã de Natal. 

10. Da jardinagem como ramo da poesia

Mal saí da curva, fiz pisca à direita e apontei a frente do carro ao portão. Depois saí para o abrir. Uma cama de folhas opôs resistência suave ao empurrão com que costumo abrir as duas portas gradeadas de ferro do portão.
É um perfeito fim de tarde do princípio do mês de Agosto e a luz espelha-se em dourados, o jardim está lindo, desmente que aquela casa está desabitada há mais de um ano! Abençoada a ideia, a decisão de mantermos o Sr. Alfredo, jardineiro da casa desde a sua construção, a ir lá duas vezes por semana, cuidar do quintal.
Não foi um contrato muito alegre, aquele que se estabeleceu para manter funções numa casa onde não habita ninguém, onde deixou de haver com quem troque uma laracha a meio da manhã, onde deixou de lhe ser levada uma sandes e cerveja a meio da tarde. Mas o Sr. Alfredo gostou da ideia, ficou contente por manter a ligação à casa e a nós, perguntou se podia cultivar uma pequena horta pessoal na parte de trás do quintal, reocupar o galinheiro, há muito abandonado e castanho de ferrugem, com uma ou duas aves poedeiras.
“Achas que sim?”, perguntou a minha irmã Susana quando me ligou a expor a ideia, "não achas a ideia demasiado louca?"
“Sim, que dizer: não! Claro, claro que sim.”
O meu pai havia de gostar, pensar aquele quintal abandonado seria para ele tremendo desgosto. Todos os dias da sua vida, mais religiosamente ainda na parte final, ele dava uma volta completa ao quintal, sabia de cor quantos gomos tinham nascido nessa semana em cada uma das árvores de fruto, quantos pêssegos tinha cada um dos três pessegueiros-anões.
“Só este tem 73, este ano estão carregadinhos”, dizia com prazer.
Das árvores de fruto, o enorme limoeiro era o seu maior sucesso. Já por ali estava quando a casa foi construída, fazia parte da pequena quinta que era o quintal da casa dos meus avós, calhou-nos em herança junto com uma nespereira e um marmeleiro que entretanto secaram, mas, de repente, deixou de dar limões. Crescia e reverdecia em pujança, mas estéril. Desgostoso, o meu pai, num excesso terapêutico que nem quadrava com a sua habitual sensatez clínica, aplicou-lhe em simultâneo os dois remédios usados na sua aldeia natal em circunstâncias análogas: espetou-lhe um grande prego ferrugento no tronco e encheu a base da árvore de pancada, como quem dá uma coça num filho desobediente, a ver se aprende.
Com um grau de miraculosidade gémeo da oração a Santo António para encontrar objectos perdidos, o limoeiro desfez-se em limões e nunca mais cessou de o fazer: há limões todo o ano, uma curta excepção para o tempo em que em vez de frutos ele anuncia a chegada das suas lanternas amarelas produzindo flores de perfume meridional.
Extasiado com a visão do jardim, estacionei o carro no fim da rampa, tirei as malas para fora e fui dar uma volta antes que anoitecesse de vez. 
Venho, sozinho, passar duas semanas de férias nesta casa, antes que ela se estrague em demasia por estar fechada, por se sentir só. 
O Sr. Alfredo deve ter estado por aqui hoje ou ontem, nota-se na terra regada e no ruborizado consolado dos tomateiros.

11. Temporário, como Aquiles

Tirando os seis meses na Boavista, morámos sempre nesta rua.
A 18 de Janeiro, o meu pai registava laconicamente na sua agenda de capa bege do ano de 1966: “Comprei andar na Boavista”. Por Boavista queria ele significar a Avenida da Boavista, na sua metade medida entre a Rotunda e a Foz, uns prédios acabados de fazer, conhecidos por Graham (nome do empreendedor imobiliário) ou, como passei a dizer, “moro no Foco”, que era o outro modo como os três prédios ficaram conhecidos por causa do moderno cinema homónimo que integrava a iniciativa residencial.
Não me perguntem os porquês, tinha trezes anos – pelo amor de Deus! – e andava mais embrenhado no meu acne e nos pormenores melódicos do “Michelle” e do “Day Tripper” (acabados de sair da dupla Lennon-McCartney) do que no contexto sociológico da classe média-alta tripeira. Só sei que, de repente, se tornou moda, uma coqueluche, ir morar no Foco. Metade das famílias conhecidas, muitos dos meus vizinhos, bastantes dos meus colegas de liceu foram morar para o Foco nesse ano e nos seguintes. Em minha casa, o meu pai foi torrencialmente contagiado pela epidemia para grande angústia da minha mãe, aflição da minha irmã mais velha e ralação da Belmira, a nossa empregada interna da época. A esta e à minha mãe aterravam-nas perder o quintal e a vizinhança; à minha irmã mais velha, então com dezasseis anos, eram as amizades da rua e das redondezas que lhe iam provocar trauma. Como deixar, sem um coração desfeito, a proximidade visual das maiores amigas do mundo, dos amigos “és como um irmão para mim” e emigrar para as lonjuras de meia-dúzia de km a poente? 
Neste acontecimento fracturante, a minha irmã mais nova e eu mantivemo-nos em silêncio, embora por motivos distintos. Ela, por imperativo dos seus dois anos de idade, eu, por motivos inconfessáveis. Interiormente, rejubilava com a perspectiva da mudança de casa, mas não podia confessar que grande parte desse júbilo me vinha da vergonha por habitar uma moradia com quintal quando todos os meus amigos, conhecidos e colegas de turma moravam em andares! Cada vez que ia a uma festa de anos num terceiro andar, a um baile de sábado à tarde numa garagem dum prédio e alguém me perguntava onde morava, como morava, enrubescia de humilhação no silêncio que precedia a confissão: 
“Moro numa casa de dois andares, com um enorme quintal, numa rua residencial lá para os lados do Amial...”
Residimos no Foco seis meses, mudámo-nos outra vez para a Rua Nova do Tronco, para a nossa velha moradia com quintal, em finais de Junho, no dia em que fiz catorze anos. Suponho que a data da mudança foi uma coincidência, mas senti tudo aquilo, para além do profundo desgosto, como um amargo castigo...
Com a excepção única da minha perspectiva, aqueles seis meses num sexto andar do Foco resumem-se num rosário de pequenos dramas e desenharam os contornos de uma maldição doméstica: A sumptuosa lareira da enorme sala comum com vista para o-mar-da-Foz-lá-ao-fundo não se conseguia acender sem fumo, o que deixou o meu pai muito irritado por a ter esgrimido como argumento versus a humilde salamandra do Amial. Ainda por cima o problema afigurava-se irresolúvel, pois o defeito provinha de a chaminé ser um cano comum àqueles andares todos e bastava o vizinho do quarto-andar acender a lareira para que nós tivéssemos em casa a sensação de uma sardinhada. Depois, uma tarde, a minha irmã de três anos de idade resolveu fechar-se à chave no quarto vazio dos meus pais, divisão de enorme e acessível varanda com vista para o asfalto da avenida da Boavista, uma trintena de metros lá em baixo. Finalmente, a minha mãe detestava os vizinhos, dizia não ter com quem falar, não tinha quintal onde espairecer, fazia-lhe falta a proximidade de rua que tinha no Amial com os irmãos, meus tios, e a mãe, a minha avó Zaida.
Por via das más influências, acho que acabei por ser eu a gota de água no regresso à província... A tendência negativa das minhas notas no liceu ressentiu-se, ainda mais do que o costume, do novo habitat e, um dia, o meu pai deu conta que desaparecera uma nota de mil escudos (a mais potente de todas as que o Banco de Portugal fabricava na altura) da colecção que mantinha escondida, para emergências, no grosso volume Sintomatologia de las Enfermedades Internas. Confesso que já tinha alguma prática de desviar dinheiro para pequenas necessidades, sobretudo ao porta-moedas da minha mãe que, sendo Gémeos e poetisa, não dava conta de nada. Mas os meus desvios tinham sido, até à data, humilíssimas quantias, somas adequadas à aquisição de chicletes, seriados de banda desenhada ou bolas de Berlim. O upgrade que decidi encetar na Boavista tinha como finalidade comprar alguns dos discos que, a ritmo estonteante, iam aparecendo na cena musical e contribuir para que não fosse o único de todos aqueles tipos com quem agora me dava a aparecer com nada para mostrar. Por este comportamento desviante fui duramente castigado e temporariamente afastado do convívio familiar. Recordo o ostracismo que me impediu de assistir na TV, em companhia do resto da família nuclear, à procissão das velas, em Fátima, na noite de 12 de Maio de 1967. Recordo também a satisfação escondida com que recebi a notícia de que no Verão desse ano iria trabalhar como marçano, para pagar a dívida que contraíra com o meu roubo, na firma do meu tio Mário.
Mas nem tudo foram tristezas nesse Junho, mês em que deixava a Boavista e guardava comigo para sempre a memória do meu primeiro beijo na boca e da audição integral de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o novo álbum conceptual dos Beatles.
Ainda hoje, quatro décadas passadas, no top ten das emoções profundas, o meu coração balança na ordenação dos dois acontecimentos. Talvez seja melhor descrevê-los e deixar os leitores decidir....
Chamava-se Raquel e era uma beldade local de doze anos de idade por quem toda a matilha de rapazes dos prédios andava apaixonada. Não me alongo nos pormenores da minha paixão não correspondida, direi que passava longas noites revirando-me na cama do sexto-andar, pensando ouvir a voz dela lá em baixo, nas ruas arborizadas entre os prédios, misturada à da recolha nocturna do lixo, alucinação que me levava a levantar e ir espreitar a janela com periodicidade assustadora. Um fim de tarde, quando me refugiara numa estratégia de fingir não mais estar fascinado pelos seus olhos castanhos, ela abdicou temporariamente da companhia da matilha para acompanhar a minha indiferença até ao sexto andar dos meus pais. Algures por volta do terceiro andar premiu o botão de stop do elevador e, encostado ao espelho do fundo, sem defesa, vi-a avançar sobre mim. A boca dela sabia a laranja, a língua um maravilhoso espremedor vivo. 
Encontrei reminiscência desta experiência no entardecer do dia 1 de Junho, ao ouvir, em primeira audição em Portugal, a canção “Lucy in the Sky With Diamonds”, logo na primeira estrofe:

                    Picture yourself in a boat on a river
                    With tangerine trees and marmalade skies
                    Somebody calls you, you answer quite slowly
                    A girl with kaleidoscope eyes.

pois aqueles céus de compota de laranja pareceram-me idílio muito próximo desse por onde, escasso mês antes, tinha deambulado com Raquel nos respectivos céus da boca. Divago.
No dia 1 de Junho de 1967 tive de errar por dois transportes públicos até chegar à rua Nova do Tronco, a casa da minha avó, onde tinha combinado encontrar-me com os meus primos Manel e Heitor antes das sete da tarde. Quando, um mês antes, nos rumores do liceu, ouvimos anunciar que o Em Órbita, um programa de música da Rádio Comercial, iria passar, em audição integral, o novo álbum dos Beatles, o esperado, anunciado e ainda não à venda Sgt. Pepper’s, em gravação nos estúdios de Abbey Road há mais de seis meses, o nosso primeiro sentimento foi de desânimo. É que em nenhuma das nossas casas havia rádio com FM (frequência modulada) e o Em Órbita emitia somente nessa franja de onda...
“A casa da avó Zaida...”
Apesar de ser a casa da avó, apesar da sala de estar parecer, com o seu piano de parede com castiçais, os seus espelhos e dourados, um salão saído do século XVIII, tinha a um canto um Graetz, um rádio-armário-gira-discos de madeira lacada e painel dourado, apetrechado com todas as ondas radiofónicas possíveis na época: onda curta, onda média, onda longa e frequência modulada.
Não obstante o apelo do sofá e das poltronas, forradas em tom verde-água, apesar do tapete espesso que cobria o chão do centro da sala, sentámo-nos no soalho encerado em frente ao rádio, a uma distância inferior a um metro do seus altifalantes hi-fi. E ali aguardámos, com a expectativa e a reverência de quem espera as revelações universais de um mestre, que se vertesse sobre nós aquele som por revelar, aquela música que nunca desiludia e que fazia o nosso mundo interior avançar eternidades em contáveis minutos.

12. Das propriedades da luz

Hoje acordei com barulho lá fora. 
O tempo tem estado tão quente que durmo de janela aberta, apenas corro o estore para que não entre mosquitada mas mantenho os furinhos da persiana abertos. Aprendi a gostar da luz que se côa por cada um desses interstícios e deposita rolos de libras de ouro no envernizado dos móveis pelas primeiras horas da manhã, das sombras tracejadas que, pela horas quentes, projectam no tecto e no chão dos quartos e das salas, do tom fulvo de corpo de violino com que é contagiada, sob a luz do poente, a madeira de um vulgar louceiro de sala de jantar. 
Coava-se já uma claridade frouxa pelos intervalos das ripas de plástico dos estores, mas era muito suave, seria cedo... Procurei o relógio na mesinha de cabeceira: passava um pouco da seis da manhã. Não se houve ainda ruído de trânsito nem trinado de melros, o som que me chega é surdo e apaziguador.
Levanto-me, espreito pelos buracos no plástico, deixo-me estar um pouco a tentar perceber de onde vem o som, o que se passa lá em baixo, no jardim. Não vejo ninguém, mas depressa percebo que o barulho é o de água a cair na terra, o timbre do som mudando quando cai sobre a folhagem – é o Sr. Alfredo que anda a regar! Não sabia que vinha tão cedo! Claro que esta é a melhor hora para que a terra tire rendimento de ser molhada, mas mesmo assim – 6 da manhã! 
É engraçado estar aqui há já tantos dias, encontrar sempre a terra com uma negrura húmida, as flores com um ar tão vitaminado, e nunca o ter visto. Agora percebo o porquê, ele vem logo que há luz no céu. 
Corro ao quarto ao lado, o meu antigo quarto, a ver se o vejo, pois tem vista frontal sobre a parte traseira do quintal, sobre o passadiço de cimento que atravessa o quintal como uma risca ao meio e conduz às escadas e ao portão de serviço que dá para a Rua dos Padres Capuchinhos. Nada, a coisa mais palpável que consegui descortinar foi um pedaço da longa mangueira, de cor verde-cobra, agitando-se como se estivesse a ser sacudida para chegar a outro local mais à frente.
Tranquilizado, satisfeito por alguém estar a cuidar tão ciosamente da minha propriedade, da harmonia do meu jardim, do meu bem-estar, voltei para a cama e resvalei para mais umas confortadas horas de sono.

13. A única coisa boa

Estou com a minha mãe na casa mais antiga, no quarto de banho ao cimo das escadas, quando toca o telefone.
Ali onde estou, sentado no banquinho ao lado da banheira, vejo o primeiro lanço das escadas e o tubo prateado da salamandra que mergulha pelas voltas do corrimão. A minha mãe diz, antes de desaparecer no patamar:
“Vá, agora põe as meias e calça-te... Olha a hora da consulta!”
Tenho oito anos nesta tarde de fim de Novembro, os Beatles ainda não foram descobertos pelo Brian Epstein, e o meu historial clínico, para além de fugazes doenças infantis, é marcado por amigdalites de repetição, infecções que, às vezes, se transformam em abcessos que têm de ser drenados na consulta de otorrinolaringologia do hospital de S. João. Não há antibiótico que lhes pegue, o meu rabo está intoxicado de penicilina, furado e atrapalhado com tanta agulha entupida. 
Para mim é já uma rotina abrir os queixos quase até à desarticulação, deixar que o meu pai me esfregue as criptas das amígdalas com algodão encharcado em mercurocromo, acho até uma certa graça mórbida à sensação de queimor que aquilo provoca na garganta, prazer só ultrapassado pelo estampado de satisfação da cara do meu pai ao eliminar do mapa mais uns milhões de estreptococos. Mas o último desses abcessos, ocorrido no início desse Outono de 1961, foi tão grave que ninguém conseguiu enfiar-me na boca uma pinça envolta em algodão, pois não conseguia separar os lábios mais do que uma fenda onde caberia, res-vés, um lápis; a custo, conseguia comer coisas moles e até engolir líquidos era doloroso! Assim, apesar da violência do processo, no fim da drenagem do abcesso senti-me tão aliviado e tão merecedor de um mimo pelo modo corajoso como tinha aguentado tudo aquilo que pensei que o copo, com um líquido vermelho-escuro a nadar lá dentro, que me estendia a enfermeira era uma groselha recompensatriz e engoli um generoso trago, à confiança. Não era, era um qualquer desinfectante hospitalar e o intuito era o bochecho, mas ninguém é claro a explicar seja o que for nos hospitais....
A minha mãe está ao telefone, a cara dela está estranha, olha para mim a calçar as meias de lã com um olhar como se estivesse a pensar noutra coisa. Diz, a olhar na minha direcção:
“Agora tenho de ir...”
Desliga, sobe as escadas até chegar ao meu lado. Senta-se no degrau abaixo do meu e ajuda-me a calçar a segunda meia, os sapatos. No fim, faz-me uma festa na cabeça, diz:
“Já não vamos à consulta, sabes? Vais ficar aqui com a Clarinha e a Tomásia, portar-te bem. Vou ter de sair, não devemos vir jantar, nem eu nem o pai...”
Faz-me outra festa na cabeça, beija-me e tem lágrimas nos olhos.

14. Consequências profundas

Durante toda a minha infância e adolescência, antes do aparecimento dessa mão-de-obra descartável que ficou conhecida como mulher-a-dias (termo que depois evoluiu para a mais apaziguadora-de-consciências designação de empregada doméstica), havia sempre em nossa casa uma criada interna. Quando era criança pequena, chegou mesmo a haver duas em simultâneo, uma delas com a função ou a vocação específica de tomar conta das crianças. 
Tive assim a sorte de ter, na prática, duas mães: a verdadeira, a que me ensinou a gostar de livros e de escrever, me deu carinhos e me moeu a paciência na adolescência. A outra, a minha mãe de adopção, chamava-se Tomásia e encarregava-se dos aspectos mais pragmáticos da minha educação: dar e obrigar a comer, vestir-me, vigiar-me, mas também preparar perante os meus olhos o pão aberto em dois onde, num fino revestimento de manteiga, aprisionava um manto de minúsculos diamantes de açúcar refinado, o todo recamado com poalha de canela.
“Mas depois o menino tem de beber o leite todo...”
“Eu bebo...”, prometia com sinceridade, medindo a distância que me separava da pia da banca da cozinha. 
Embora na altura mo parecesse, a casa da minha infância não era assim tão grande e o quarto das criadas era, simultaneamente, o local onde se brunia a roupa e cavalgava uma almofada, encaixada num dos ressaltos da marcenaria da cabeceira da cama delas, enquanto as via passar o ferro na roupa estendida sobre a tábua – sinto no ar o perfume, reconfortante como o de pão quente, de roupa lavada a ser vincada pelo calor.
Tomásia, Cândida, Natália, Maria, Belmira... Aterravam no Porto vindas de aldeias longínquas; novas, trémulas e de olhos fechados como cachorros desmamados precocemente. A Tomásia e a Cândida representam os anos 50 e foram contratadas através da mesma teia de relações que tinham providenciado o pessoal doméstico da minha avó, partilhando entre elas uma relação de parentesco de que só me apercebi já adulto. As três últimas, chegaram a nossa casa ao longo dos anos 60 e eram consequência do aprofundar de relações na aldeia do meu pai, já de algum modo representavam a independência e a maturidade gradual da nossa família nuclear face ao clã dos meus avós maternos que, por falar nisso, moravam, no outro lado da rua, no casarão em frente 
Todas chegaram de olhos a piscar de deslumbramento perante as luzes da cidade, quase descalças, algumas sem saber ler ou contar. Todas saíram da nossa casa para casar, habilitadas para um matrimónio de sucesso após um estágio de alguns anos que as transformara em princesas do lar e rainhas da cozinha. Eram tristes os dias, e o mundo parecia desmoronar-se, em que me chegava a notícia que mais uma se ia embora. As mulheres não pareciam pensar senão em sapatos e em casar! Todos marcávamos presença activa no casamento, os meus pais eram geralmente os padrinhos, nós, os meninos das alianças e, por sua vez, os filhos delas eram baptizados com os nomes de minha casa: como bolinhos quentes, uma nova geração de meninos com o nome dos meus pais, o meu, o das minhas irmãs, engrossava aquela comunidade e, à medida que íamos crescendo, nós próprios fomos sendo padrinhos e madrinhas dos últimos que iam nascendo. Aquilo parecia não parar e nunca se quebravam os laços com elas, com as suas novas famílias. 
E se algumas regressaram à aldeia de origem, fosse em Trás-os-Montes ou para além do Caramulo, outras inauguravam vida independente nas cercanias da nossa casa. Tomásia, a minha segunda-mãe, para dar um exemplo, adquiriu a tabacaria na esquina da rua, onde, ainda agora, todos os anos compramos o fogo de artifício para a noite de S. João. Mora, por trás da loja, com os filhos (o rapaz tem o nome do meu pai, de quem é afilhado, e a rapariga o da minha irmã mais velha), enviuvou e os croquetes e pasteis de massa-tenra que fabrica caseiramente, e que aprendeu por uma receita da minha avó sob a orientação da minha mãe, tem fama no quarteirão. Num processo circular, tão regular como a replicação de ADN, toda a nossa família os encomenda e recomenda para jantares de Domingo ou ocasiões especiais.
A Belmira, que também casou de nossa casa para um regresso à aldeia perto de Viseu onde nasceu o meu pai, foi a última criada interna na casa dos meus pais e acompanhou as vicissitudes da nossa história durante a segunda metade da década de 60 e os primeiros anos da década de 70: três mudanças de casa, o excitante e inesperado nascimento da minha irmã mais nova, o drama silencioso  e nunca resolvido que foi a compatibilização do seu estatuto de residente permanente com a contratação e a permanência intermitente de uma mulher-a-dias de feitio difícil de que ainda por aqui se falará.
Quando saiu de nossa casa, a Belmira parecia ter apostado no cavalo certo e penso que ninguém diria o contrário: o noivo era um homem trabalhador e nada havia a dizer dele, para além do temperamento sorumbático. O tempo, no entanto, foi trazendo surpresas cada vez mais próximas de uma história de terror. Álcool, violência sobre mulher e filhos, o brilho frio de armas e facas de cozinha, fugas no meio da noite e, por fim, um suicídio que, pese embora o trágico e o trauma, soa a quem ouve a história toda como um acto de justiça divina.
Viúva, rija como cepa de castanheiro, a Belmira criou os quatro filhos sozinha. Empregou-se numa fábrica em Vouzela, amanhou as courelas de terra que lhe eram de direito e ainda lhe sobrou tempo para se transformar em feitor dos nossos assuntos em Viseu, uma procuradora fina como um alho, atacada de uma obsessiva honestidade.

15. Não há duas sem três

Se o tempo permite, uma incógnita que se mantém até ao anoitecer, come-se mesmo cá fora. 
Na noite de 23 de Junho de 2006, um pouco como todos os anos na noite de S. João, houve uma sardinhada em casa do meu pai. Nesse ano não compareci, estava em Porto Santo, mas o esquema seguiu o costume dessa noite em casa dos meus pais, em tantas outras casas do Porto, suponho, basta olhar o céu invadido de balões... Grelham-se sardinhas, febras e pimentos. Há saladas, azeitonas, broa, caldo verde a ser vertido em malgas e, antes de seguir viagem, a ser abençoado com uma rodela de chouriço. No resguardo da sala de jantar vazia há multas sob a forma de sobremesas, cobiçadas às escondidas pelos olhos em dieta das mulheres e esfuracadas pelos dedos das crianças. Depois do jantar, lá para as onze da noite, deita-se fogo preso e muitos balões, pois metade arde, entre parafina derretida e risos, antes de adquirir lastro de ar quente suficiente para subir na noite e se perder no intenso tráfego aéreo.
Nesse dia, o tempo, ao contrário da morrinha tradicional das noites de S. João,  esteve quente no Porto e ao fim da tarde regou-se a tijoleira que atapeta o lado sul e poente da casa para refrescar o ar dos convidados que iam chegar.
Pelas onze e meia da noite o meu telemóvel tocou, vi no visor que era a minha irmã mais nova.
“O pai escorregou na tijoleira, partiu o colo do fémur, ficou internado no hospital de S. João...”
Encostado à balaustrada que separa o terraço do Hotel Porto Santo do relvado que, dois metros abaixo, conduz à praia, franzi-me por dentro. Uma fractura do colo do fémur não é brincadeira em idade nenhuma: precisa sempre de ser operada, incapacita uma pessoa durante meses, os dias que se seguem à operação implicam um risco de embolia não desprezível... E isso que eu pensava nesse momento, sabia-o o meu pai perfeitamente nos seus noventa anos de vida, muitos desses de experiência como médico. Foi o que me disse, logo que ficámos a sós, uns dias depois, na primeira visita que lhe fiz ao hospital, operação já feita e risco de complicações imediatas afastado:
“Agora é que estou arrumado... Já viste, por causa de uma merda de uma tijoleira molhada?”
“Não está nada arrumado, pai, não diga isso, é uma coisa muito frequente e as pessoas vão ao sítio. É chato, mas resolve-se...”
Para relativizar e tornar o caso menos solitário, juntei aos meus argumentos alguns casos recentes e conhecidos de fracturas semelhantes. Sim, mas, olhando para trás, ele tinha mais razão do que eu queria admitir. Nunca mais voltou a ser quem era, nem a ter a mesma autonomia como pessoa e se tivéssemos que assinalar o início do seu declíneo físico visível com um marco, essa queda cumpria todos os requisitos. Metástases ósseas de um cancro na próstata para complicar a recuperação do osso, uma leucemia crónica para ajudar a que tudo fosse muito mais frágil na defesa do corpo em relação a infecções, cicatrização de feridas. Nada daquilo, e na idade dele, matava só por si, mas a conjugação de todos aqueles factores... Porra, por que raio aqueles ditos da sabedoria popular, do “não há duas sem três”, do “a má sorte vem em séries de três” se mostram tão verdadeiros, tão universais que têm até correspondência noutras línguas?!
Somando todas as contrariedades, mais o período inicial de recuperação, o meu pai esteve internado um mês por causa de uma tijoleira escorregadia. Mas, duro de roer, safou-se daquilo tudo e voltou para casa a meio do Verão.
Durante a ausência, eu e as minhas irmãs fomos preparando a logística do regresso em combinações de que o íamos pondo a par devagarinho, deixando-o respirar entre uma novidade e outra. É que todas elas tinham o travo da derrota física e psicológica, da perda de estatuto como ser humano pleno.
Toda a sua vida o meu pai foi o elemento agregador da família, o esteio, o seu ponto-forte – não íamos agora, lá porque era preciso passar a tomar conta dele, dispor da sua vontade de qualquer maneira!
E enquanto as obras no quarto de banho dele duraram, fui-o informando em cada visita ao hospital de como as coisas iam:
“Já arrancaram a banheira, estão a revestir a parede com um azulejo praticamente igual ao do resto da parede e o Sr. Sousa arranjou uma bela pedra de mármore rosa para parede exterior do local onde agora vai ficar o seu chuveiro.”
Era verdade: o empreiteiro conhecia o meu pai há uma ou duas dezenas de anos, fez o trabalho num ápice, dando-lhe esses toques de carinho em procurar que a pedra mármore fosse um pormenor que desse gosto olhar. E essas obras, esses pormenores tranquilizavam-no:
“Agradece-lhe por mim, estás a ouvir? Uma banheira é, por natureza, um sítio perigoso, escorregadio; ainda para mais agora...”  
Mas a decisão que nos andava verdadeiramente a consumir era o arranjar e depois comunicar ao meu pai que seria preciso, dali para a frente e em carácter de permanência, uma pessoa nova lá em casa, para ajudar a cuidar dele.

16. O lírio do vale

Na casa mais antiga, o meu quarto era o à direita, ao cimo das escadas. Era um quarto enorme, pelo menos parecia-me na altura, de qualquer modo era maior do que o da minha irmã Clarinha, três anos mais velha, pegado ao meu.
Nunca contei a ninguém, mas teria preferido que o meu quarto naquela casa fosse o da minha irmã, mas quando se é criança as coisas têm a presença definitiva e imutável das grandes pedras e nunca me passou pela cabeça que pudesse ser de outra maneira ou que conseguisse resolver a situação pelo uso de  lamúrias ou lágrimas.
No meu quarto havia uma fonte de medo inesgotável, pesadelo que se conservava recuado durante o dia, mas que, à noite, assumia proporções aterradoras. Não estou a falar da possibilidade de monstros debaixo da cama, que isso verificava imediatamente antes de me deitar e apagar a luz, ou das poses ameaçadoras que assumia a roupa despida abandonada em cima da cadeira, que isso resolvia-se com um certo ângulo da frincha da porta e a luz do hall acesa. 
É que o meu quarto era o quarto do roupeiro, quero dizer: mesmo ao nível da cabeceira da minha cama, à esquerda, a uma distância de escassos metros, havia uma porta e por trás dela ficava o armário-roupeiro, um descomunal móvel de madeira escura que ocupava toda a parede do fundo dessa divisão onde não cabia mais nada. Um armário do chão ao tecto, imenso, cuja borda das prateleiras, cheias de roupa branca, usava como degraus para chegar ao alçapão, de tampa encastrada no tecto, que dava para o sótão.
Durante as horas de luz era um tesouro ter no meu quarto uma passagem para outro mundo. Às vezes, quando o silêncio na casa era total, eu e os meus primos escalávamos aquele glaciar de lençóis, empurrávamos para cima a tampa de madeira da portinhola de acesso e, crispados de suspense sob as teias de aranha e o pó espesso que se nos agarrava às mãos e às roupas, espreitávamos, com a garganta a latejar descompassadamente, aquele espaço onde, por entre sombra e luz, nos aparecia o lado secreto das telhas do telhado, as vigas de madeira que o sustentava e, diamante entre diamantes, o poço da clarabóia.
O sótão era vazio, não era usado para guardar nada e essa ausência de objectos reconhecíveis contribuía para potenciar o seu mistério silencioso, a sua faceta não-humana.
Uma ou outra ocasião, mas longe de fazermos disso rotina, atrevíamo-nos a passar para dentro e a viver a ubiquidade de flutuarmos pelos diversos espaços da casa sem sermos travados pelas fronteiras que, do lado de baixo do chão do tecto, eram levantadas pelas paredes das várias divisões. 
Ah, mas a clarabóia... A clarabóia era, antes de mais, um sítio muito perigoso. Se acontecesse pisarmos o vidro do seu soalho acabaríamos estatelados lá em baixo no hall da entrada, cadáveres ao lado da mesinha baixa do telefone e por entre estilhaços de vidro martelado! Por cima da clarabóia, para que se produzisse o milagre da luz natural no hall do primeiro andar e no vão das escadas, as telhas de barro vermelho do telhado transmutavam-se em telhas de vidro com a espessura de lentes de óculos de cientista louco; opacas, elas próprias um enigma pois deixavam passar a luz em abundância mas não permitiam ver o azul do céu, ali mais próximo do que no cimo de qualquer uma das árvores do quintal. E, depois, como era possível alguém conseguir serrar uma tão exacta circunferência no meio do pano de vidro martelado? A nós, com idades oscilando entre os seis e os dez anos, não nos passava pela mente que aquele círculo pudesse ter sido feito antes de o vidro ter sido colocado. Não, víamos um herói de fato de macaco-azul-ultramarino e braços peludos, empunhando um vulgar serrote de cortar madeira, a desafiar a vida e a morte, pairando sobre o vidro como Jesus sobre as águas, para conseguir produzir um círculo perfeito sob todo aquele stress situacional. Na prática, o círculo em questão servia para que o tubo prateado da salamandra alcançasse as telhas e deitasse o seu fumo lá para fora.
À noite, todo o fascínio da zona se mantinha, mas a tonalidade era totalmente diferente e o nome, aspecto e intenções dos seres que poderiam ocupar aqueles espaços era impronunciável. Como tal, nunca os confessei a ninguém e mantinha-me em absoluto silêncio perante o gozo alheio que constituía a minha obsessão em confirmar que, todas as noites, se mantinha fechada à chave a porta que dava para o armário-roupeiro. Mas, mesmo fechada à chave, eu sabia que não era suficiente. O que é uma porta fechada à chave para entidades que se sentem nas trevas como em casa? E, assim, tanto dormia aterrado, de frente, enfrentando a porta do quartinho do armário-roupeiro, pois veria aparecer os seres mal eles resolvessem descer do sotão, como morria de medo ao virar as costas à porta, pois quando sentisse o hediondo hálito sobre mim seria demasiado tarde...
Uma manhã, nesse quarto, andava pelos onze anos, a persiana da janela foi inusitadamente aberta pelo meu pai, que não costumava ser a pessoa que nos acordava. Sentou-se na borda da cama e, com ar prazenteiro, disse:
“Nasceu a tua irmã...”
Depois, não sem antes me incitar a levantar e começar o dia, foi-se à sua vida e deixou-me sentado na cama, a desabotoar o pijama num torvelinho de sensações onde ecoava “a tua irmã”, sem que essa fosse a minha irmã do costume. O existir uma nova presença na minha vida enchia-me o peito de uma brisa feliz e essa sensação, eu sabia, era da categoria das que me iam fazer baixar os olhos de timidez quando alguém dissesse, como ia acontecer de certeza:
“Então tens uma irmãzinha nova? Estás contente? Ai, agora é que se vão acabar os miminhos!”          
Nunca se soube muito bem se aquela minha irmã nova tinha sido planeada ou se foi mais um acidente de percurso, inclino-me mais para a última hipótese. A minha mãe aproximava-se vertiginosamente dos quarenta anos, o meu pai dos cinquenta. Seja como for, a notícia de que a minha mãe estava grávida foi para mim um choque, pois catapultava os meus pais para aquela, vulgar e algo nojenta, categoria de seres que praticavam sexo, assunto com que me vinha deparando e revolvendo de forma cada vez mais intensa nos últimos dois anos.
Mas se a existência da minha irmã mais nova não terá sido, provavelmente, planeada, o radicalmente oposto sucedeu com a escolha do seu nome. Logo que se soube que seria uma menina, iniciaram-se conversas à mesa de jantar sobre o assunto. A minha mãe, com uma lamentável queda para a história romanceada de Portugal, apresentava sugestões tipo Eurico, o Presbítero que nos deixavam tolhidos de incrédula aversão: Hermengarda, Cunegundes, Urraca...
Felizmente, todos os outros nós torcíamos por nomes menos contundentes e, dentro de um naipe onde constava Inês, Margarida e Sara, acabou por ser escolhido, Susana que, como dizia o meu pai num arroubo poético, era de origem hebraica e quereria dizer “pura como o lírio do vale”. 
Pai tardio e feliz do seu terceiro filho, a loquacidade com que o meu pai registou o acontecimento na sua agenda de capa azul do ano de 1964, sobretudo se comparada aos registos sobre o meu nascimento, traduz esse maravilhamento:
"Às 23,15 nasceu com 3.670 no Hospital da Lapa a Maria Susana."
Voltar-se-á a falar dela por aqui.

17. Rolo de Barcelos

A minha avó materna morreu em 1971, a 4 de Junho, dia do natalício da minha mãe, o que foi considerado mau augúrio por ela, que passou a achar que morreria também num 4 de Junho. Não morreu, foi-se em Março, nasciam os primeiros gomos verdes nas hidranjas (hortênsias para os nascidos a sul do Douro) do quintal da nossa casa do Porto.
Tinha 17 anos e a morte da minha avó foi o primeiro grande desgosto familiar a que assisti sem entraves. Antes desse tinha ocorrido a morte do meu avô materno, seu marido, mas nesse Novembro fui considerado demasiado pequeno, não me deixaram participar em nada, houve até quem pensasse que me tinha conseguido ocultar a morte dele. Desse modo, eu e os meus dois primos, tivemos que fazer um luto secreto e discreto por ele, o qual consistia em esgueirarmo-nos para o seu escritório-biblioteca e ali, no recolhimento da luz apagada e das portadas cerradas, com a dignidade com que éramos treinados para os momentos mais sagrados da missa, concentrávamo-nos até chorarmos que se visse. Os três, cada um usando o combustível que podia para convocar as lágrimas; do meu fazia parte o milagre de nunca mais ter tido nenhuma amigdalite, ter evitado a operação e as injecções nas veias. 
Quando a minha avó morreu, a minha irmã mais velha já namorava o meu futuro cunhado Manuel e eu passei o dia do funeral a pedir-lhe os Ray Ban emprestados, que para alguma coisa um tal tipo de intruso deve servir.
Essa minha avó chamava-se Zaida, era de ascendência espanhola e como já passaram 40 anos desde a sua morte penso que já lhe terão feito o upgrade do Purgatório para o Céu, mas como a bitola da eternidade é algo dúbia vou dar aqui o meu contributo para que o seu pecado mortal mais evidente seja perdoado e apagado dos seus registos de uma vez por todas.
A minha avó Zaida sofria gravemente de Avareza, o 5.º em ordem de gravidade segundo o Papa Gregório I, mas logo o 2.º na lista de pecados mortais elencada por Evágrio do Ponto. Como em qualquer pecado mortal, o Demónio escolhe as mais insuspeitas vias para se mostrar e, no caso dela, o seu crime manifestava-se na forma impiedosa e absoluta como impedia o acesso dos demais mortais, incluindo as mulheres da família mais chegada (filhas!), aos seus segredos culinários.
Os meus avós moravam numa grande vivenda, uma mansão, mesmo em frente à casa onde nós morávamos, do outro lado da rua. Essa mansão tinha três entradas principais, cada um dos acessos feito por uma escadaria de granito. A entrada de trás, virada a Norte, era a entrada formal, a mais cerimoniosa, e a ela se chegava depois de atravessar um jardim à francesa, simétrico, geométrico, que incluía um mirante romântico com pérgola e tudo. A entrada Norte era mais luminosa e o visitante que subia as escadas era abençoado por um painel de azulejos representando um Santo António algo gay, de olhos em alvo e mãozinha suspensa com ar de pulso quebrado.
Finalmente, havia a entrada que toda a gente usava, a que ia dar à copa e onde, à direita de quem entrava, numa parede a coberto dos olhos da cozinha, ficava um aparador multi-usos. Na parte de baixo do armário ficavam as gavetas onde eram guardados, em liberdade, livres de sacos, o feijão, o arroz e a massa de uso mais imediato e era para mim irresistível tentação mergulhar as mãos naquela matéria e encher a boca de punhados de arroz cru, temperado pela saborosa poalha que cobre o arroz antes de ser demolhado. Mas isso não era fácil de conseguir, pois, para além de ser terminantemente proibido, as gavetas estavam logo por baixo do tabernáculo onde eram aferrolhados os cadernos de receitas da minha avó Zaida e, por isso, sob apertada vigilância.
Embora nunca ninguém lhes tenha lido o conteúdo antes da morte dela, a todos nos tinha sido concedida a sorte ou a graça de ver o corpo físico onde se alojavam as receitas para os tesouros que se consubstanciavam em deslumbramento nas mesas da minha infância: os verdadeiros pastéis de massa tenra de vitela, o arroz de costela-mendinha, o souflé de pescada com amêijoas e, particularmente, as divinas sobremesas onde, para o meu gosto e mais ainda do que a Pinha de Chocolate ou o Picado das Abelhas, reinavam o Rolo de Barcelos e o Doce Tirsense. Esse invólucro consistia em cadernos de capa negra e aspecto aparentemente banal onde ela escrevia as receitas e colava com goma arábica (guardada em frasco de vidro com uma teta de borracha verde na ponta) os recortes seleccionados que ia buscar a jornais e revistas.
Mas os momentos em que esses cadernos permaneciam à vista de quem passava eram fugazes e nenhuma manobra de diversão ou acto de espionagem, por mais tentado e sofisticado, conseguiu jamais obter a combinação de ingredientes ou processos antes do fatal gesto em que fechava a capa, os metia no armário, fechava a porta à chave e a guardava no seu regaço sagrado e inacessível.      
Em desagravo, aqui fica a receita do Rolo de Barcelos, que agora constitui o clássico e muito esperado contributo da Titi (a minha tia Teresa, irmã mais nova da minha mãe) aos Natais e encontros da família. 

ROLO DE BARCELOS

Ingredientes:
250 gramas de açúcar
5 ovos inteiros
1 colher de sopa de farinha
1 colher de chá de canela
1 pouco de raspa de limão.
Confecção:
Batem-se os ovos com o açúcar, junta-se a farinha misturada com a canela e o limão.
Unta-se um tabuleiro rectangular com manteiga e farinha.
Coze rápido em forno quente e o palito de teste deve sair sempre húmido.
Vira-se num guardanapo e enrola-se.

18. A costureirinha da Sé

A minha mãe, dona de casa e poetisa, dirigia o mundo da sala de estar. 
Era ali que a encontrávamos com maior probabilidade se, a meio da tarde, chegávamos a casa e a procurávamos para dizer “olá, mãe, cheguei”.
A sua poltrona, forrada a veludo azul-giz-taco-de-bilhar, de costas altas e com orelhas laterais, escondia-lhe a figura se espreitávamos da porta. Virada para a lareira e para as largas portas de vidro que deitavam para o lado poente do jardim, estava separada do maple do meu pai por uma das duas mesinhas de apoio que havia naquele canto da sala: numa delas pousava um candeeiro de abat-jour de linho-cru e, na outra, um velho Telefunken com a parte posterior sem tampa, válvulas e condensador à vista. Sempre que o rádio dessintonizava, o som se embrumava ou surgia qualquer outro percalço radiofónico, ela interrompia o crochet e introduzia uma das agulhas de metal nas entranhas eléctricas do aparelho, esgravatando por ali até que a situação normalizasse.
Geralmente a situação resolvia-se e todos ficávamos boquiabertos com o duplo milagre do compor da avaria por meios mágicos e por ela nunca ter sido electrocutada no processo. Era esta a sua filosofia de abordagem das coisas em geral, pois vivia distraída a imaginar rimas, enredos ou a construir teorias de explicação e estratégias para controlo dos acontecimentos do seu mundo restrito. 
Ser dona de casa naquela época era um destino natural para as mulheres, tal não significando que não fosse condição dura, uma insularidade, como ainda o é hoje em dia para as poucas mulheres que optam por essa condição. O que resta a uma pessoa cuja única ocupação é lidar com a casa, cujas fronteiras mais constantes são as quatro paredes do lar, senão dedicar-se intensamente a esse aquário de marido e filhos? Ou, dizendo melhor, ao pedaço de marido e filhos que lhe sobra, que lhe chega a casa, no caso dos filhos cada vez menos à medida que o tempo se escoa...
A minha mãe tinha uma imaginação considerada demasiado fértil, característica que nos dava muito jeito quando éramos pequenos e, esgotado um assunto de brincadeira, corríamos do quintal, atravessando a soleira da porta de uma outra sala de estar, essa sem lareira e virada a sul, pedindo:
“Mãe, a que havemos de brincar agora?”
Isto foi antes de ter aprendido a ler, pois logo que o fiz ela ensinou-me que um livro era a melhor companhia de todas, ainda mais fiel na nossa vida do que a companhia das pessoas, o que incluía nós próprios. Mas nesses dias pré escola primária, antes da invenção dos infantários, ela mirava-nos com intensidade, sugeria:
“Porque é que não desenham uma história de aventuras, com personagens?”
Passados uns minutos, no meio de um silêncio em que o ruído mais saliente era o entrechocar das agulhas da malha, lá estávamos nós sentados em diversos recantos da sala, de língua a rondar entre os lábios ou roendo pontas de lápis, aplicadamente a desenhar durante horas, numa página dividida em quadrados, heróis de elmo e armadura de malha metálica vagamente semelhantes a D. Afonso Henriques.
“Mãe, acha que está bem?”
“Tia, de que cor hei-de pintar o castelo?”
E ela, numa tranquilidade calculada, amarrando-nos ao seu projecto de nos fazer amar os livros, respondia:
“Muito bonito! Agora deviam juntar essas histórias e coser tudo num caderno, fazer uma revista...”
Mas não dava ponto sem nó e, por vezes, aproveitava a calmaria do rebanho para nos fazer sentar pelo chão em volta da sua cadeira e nos ler um contozinho que acabara de escrever. A história-tipo era a da pobre costureirinha que, num sotão acanhado e mal iluminado, de olhos pisados pela concentração e pelo cansaço, cosia até de madrugada, os dedos picados de agulhas, enquanto lá fora, numa qualquer esquina granítica da Sé, a sua pobre filha ceguinha tentava vender caixas de fósforos a quem passava, para que não morressem à fome e pudessem dispensar umas migalhas do escasso pão à andorinha de asa quebrada que vivia no beiral...
Não me lembro do detalhe, mas diz a minha prima Nunu que nós, as crianças, ouvíamos aquilo muito suspensos e quietos, lágrimas silentes rolando-nos pelas faces. Calculo que seríamos excelentes barómetros do efeito que ela pretendia provocar num futuro leitor.
Só bastantes anos depois percebi que ser dona de casa não era o projecto de vida da minha mãe. Sonhava seguir o caminho dedicado às letras e à literatura que seguira o pai, o avô, gente com obra que se podia encontrar nas montras das livrarias: romances, poesia, peças de teatro, edição de revistas e almanaques... E parecia-lhe que a Universidade, um curso superior em Letras seria um bom começo nessa senda onde amadores tinham vingado: o meu avô materno era banqueiro de profissão e o pai dele, médico e avô preferido de minha mãe, tinha, ainda em pleno século XIX, chocado os lentes com uma tese de licenciatura sobre Neurastenia, coisa só ultrapassada em termos de escândalo por um tio que ousara apresentar uma tese médica sobre O Beijo. Mas, infelizmente, todo este arrojo era exclusividade varonil e que podia fazer uma pobre rapariga com pais a quem a ideia de uma menina seguir a Universidade significava um potencial risco de perda nesse mundo perigosamente mundano que seria o Porto dos anos 40 do século passado? Poderia até prejudicar-lhe o futuro e o casamento com esse príncipe que, entretanto, catava volfrâmio em tronco nu para pagar os estudos médicos e havia de aparecer um dia nos areais de Espinho. 
Fez o que pôde, a minha mãe sonhadora. Casou-se, teve três filhos, educou-os, deixou-os voar para fora de casa com uma linha (invisível, como as de pesca) inocentemente atada a uma ponta de dedo, e manteve-se poetisa nas horas vagas. Discretamente, sem mostrar o que fazia a ninguém, quero dizer, para além das cobaias...

19. Azul pintado de azul

A memória mais antiga que tenho, o que me parece equivalente a dizer: a primeira vez que me dei conta de que o mundo exterior existia, é a de estar sentado no chão do quintal sentindo as pernas nuas em contacto com o saibro quente, o sol forte a ferver-me a cabeça e com isso a coagular-me o fluxo de pensamento, a fazer-me concentrar num único feixe de consciência: bolos de terra. 
Para lá das minhas costas é o terreiro da parte de trás da casa mais antiga, em cujo centro há uma olaia que dá uma espécie de vagens e onde, passados uns anos e logo que domine a técnica de trepar, faremos a casa-da-árvore. As portas da casa por onde as minhas costas estão a ser vigiadas são as da cozinha e as da sala-escritório, a janela observatório é a do quarto das criadas, onde também se passa a ferro; o gradeamento dessa janela é pintado a esmalte preto e tem pendurado a secar o filtro de pano de coar o café.
Estou a fazer bolos de terra. A carga simbólica que se pode atribuir seja ao que for na infância é desmesurada, tudo pode ser transformado em quase tudo pelo pensamento, basta o esquisso de um facto e juntar água. Os bolos de terra são simplesmente terra amassada com água, assim como a futura casa em cima da olaia não passará de um estrado tosco, sem paredes ou telhado; uma casa só com soalho e mais nada, mas não deixará de ser uma autêntica casa. A afirmação disso será uma verdade total para outro da nossa idade a quem o revelemos. 
Esta terra que estou a usar é terra negra que fui buscar a um dos canteiros, pois o saibro onde estou sentado não é bom para fazer bolos, não ganha coalescência quando é molhado, dissolve-se. É seco e não passa de pó pousado, escorre entre os dedos como areia de uma ampulheta, ao contrário da terra dos canteiros, sobretudo aquela parte que está à sombra e encostada aos muros, que é húmida e espessa e se deixa moldar. O inconveniente é que, sendo apropriada para fazer bolos, ao meterem-se as mãos pelo chão dentro para a recolher encontram-se muitas roscas, cascas vazias de caracóis, às vezes a tromba cega de minhoca viva; vemos também muitos bichos de conta a fugirem alarmados para trás dos caules das plantas ou, no limite do desespero, a fecharem-se sobre si. Não se pode ter o melhor de dois mundos, pelo menos ao mesmo tempo.
Sei que dali a bocado, quando descobrirem o que estou a fazer na parte da frente das minhas costas, me vão puxar assimetricamente por uma mão, me vão descompor em timbre agudo enquanto me lavam no bidé e me tem de pôr roupa nova. Mas, por agora, estou sentado, concentrado no que tenho nas mãos, um pensamento solto foi intersectado pela luz forte do sol que aquece os ossos da minha cabeça e condensa-o na atenção que dedico ao que faço e, simultaneamente, amolece esse pensamento dentro de uma forminha qualquer e, quando solidificar, permanecerá e transformar-se-á na memória mais antiga de que me lembro.
Retrospectivamente, consigo ajuizar, pela comparação deste com outro momento, e à custa de um rádio, que devia ser mínimo na época desta minha primeira memória de estar a amassar bolos de terra. O momento com que o comparo consiste na minha segunda memória. O rádio a que me refiro existia em casa dos meus primos Pinto Figueirinhas que moravam em Antero de Quental numa casa a uma meia-hora a pé da casa dos meus pais, mas que, na época, era distante como outro planeta, de tal modo que se me deixavam aí para o tempo de um lanche eu fazia disso uma tragédia lacrimejada, atingido por lancinantes saudades da minha “casinha branquinha”.
Porto, Naná (sax-alto) e eu.
Nessa casa, hoje transformada numa residencial, havia uma sala interior, decorada com cortinados de veludo, sofás de palhinha e begónias, onde pousava, tal peça de mobiliário, um móvel-rádio, daqueles muito em uso nos anos 50, grandes, envernizados e lacados, tipo aparador de sala de jantar, os mais sofisticados deles com gira-discos incorporado e  escaninhos para guardar discos. Lembro-me de três rádios desses na minha infância: um em casa dos meus avós, um na casa dos meus pais e este terceiro em casa da Gita, esta minha prima de Antero de Quental, a dona da casa.
Depois de ligados, esses aparelhos demoravam a aquecer, não produziam logo música, à semelhança dos computadores de hoje em dia que demoram algum tempo até que a gente se possa servir deles e aceder ao que está lá dentro. Não se carregava no botão e ouvia-se logo música, era preciso esperar que as válvulas aquecessem. Havia, geralmente na linha média do móvel e por baixo do visor onde se escalonavam as estações de rádio, perto das teclas branco-marfim onde se programava o comprimento de onda desejado, uma espécie de nível-de-água que se acendia e ganhava o máximo de intensidade e estabilidade quando o aparelho estava apropriadamente quente e a estação bem sintonizada. Esses dispositivos indicadores da sintonia eram conhecidos por olho mágico e tinham cores maravilhosas. O da casa da prima Gita, quando estava no seu pleno, mostrava uma cor impossível, um azul fosforescente de licor de hortelã-pimenta importado de Marte.
Uma noite, estávamos todos na sala de jantar da casa de Antero de Quental, uma sala grande que dava para uma marquise sobranceira ao quintal traseiro e chegava-nos música pela porta aberta. De repente, reparei que os adultos se precipitavam porta fora, como se acometidos de súbita loucura. Contagiado, rolei atrás deles e fui parar à saleta das begónias, onde se acotovelavam em volta do rádio-móvel. Furei entre eles, encostei-me ao aparelho para melhor ouvir a música que saía pelo pano-cru que cobria o altifalante, os meus olhos ao nível da bolha cor de licor de hortelã-pimenta. 
Ouvia-se o grande sucesso desse Verão, Domenico Modugno cantava “Volare (nel blu di pinto di blu )”, eu tão extasiado como os meus pais, tios e primos mais velhos, a ouvir aquilo pela primeira vez, o olho mágico a incendiar-me a retina e coagulando uma memória definitiva.
Vejo hoje, no Google, que “Volare” é uma composição de Modugno e estourou nos charts no Verão de 1958, isto é, tinha eu cinco anos à justa, o que condiz com a minha altura de um par de olhos sequiosos ao nível de uma ampola mágica de licor azul-marciano.

20. Um calhau com dois olhos

Oh minha alma: não aspires à vida imortal,
 mas esgota o campo do possível.
                                                                                                             
Píndaro (A.C. 518-438)

Eu próprio tive um pequeno Mito de Sísifo, privado... Pergunto-me até que ponto isso terá ajudado a moldar o meu temperamento existencialista. Mas, deixem, antes de avançar, que gaste um punhado de palavras a explicar, em gentileza aos meus ouvintes mais distraídos, quem era este Sísifo.
Sísifo foi, talvez, o maior malandro da mitologia grega, um mestre a meter os pés pelas mãos, tão habilidoso que conseguiu enganar, para além da mulher, a Morte, duas vezes, e os Deuses ainda mais do que isso. O homem era mortal e gostava de andar cá por baixo, pela Terra, era tudo quanto conhecia, de modo que tentava esgotar o campo do possível. Acontece que os Deuses não acharam grande graça a serem desconsiderados por um mortal e Zeus condenou-o a passar a eternidade no transporte de um grande bloco de mármore até ao cimo de uma montanha. Quando estava mesmo a chegar com a pedra ao topo, esta fugia-lhe das mãos e resvalava por ali abaixo até ao sopé e lá tinha Sísifo de recomeçar tudo de novo. E todos sabemos como a eternidade costuma ser longa.
Na casa mais antiga havia dois quintais, o da frente, conhecido pelo jardim, e o de trás, conhecido como o quintal. O da frente, virado a Norte e algo sombrio, era exíguo, pois a casa estava praticamente construída em cima da rua e da janela do meu quarto eu via o passeio do lado de lá quase na vertical; o passeio do lado de cá só o entrevia pelos interstícios da grade do portão.
É certo que os metros minguam à medida que crescemos, mas, mesmo assim, o quintal de trás era enorme. Começava no terreiro, atapetado de saibro, do lado Sul da casa, onde havia a olaia e eu me sentava a fazer bolos de terra. Contígua, havia uma área ajardinada, com canteiros de dálias e amores-perfeitos e caminhos entre os canteiros, e depois uma zona relvada de transição onde ficava o coradouro, o poço, o tanque da roupa e duas árvores, uma minha outra da minha irmã mais velha, pois o meu pai plantava uma árvore quando cada um de nós nascia. A dela era uma oliveira, a minha um eucalipto que por ter sido posto ao lado do poço cresceu tanto que se via à distancia de quilómetros e competia em pujança com a torre da Igreja dos Capuchinhos, da qual era vizinho.
Além das duas árvores ficavam as cordas e as molas da roupa e o quintal selvagem, estendendo-se em horta e árvores de fruto até ao muro que o separava do terreno da Fábrica dos Curtumes. Encostados a este muro, tinham sido edificados os restantes redutos da casa mais antiga: a garagem e o canil do Foguetão, o nosso Serra da Estrela cinzento.
Que extensão, em metros, teria o quintal? Não sei, tenho receio de exorbitar, vou tentar escapar com uma resposta de tipo qualitativo, mas sempre vos digo que, se chovia, devíamos usar guarda-chuva para percorrer a avenida e alcançar a garagem onde era guardado o Renault Dauphine, tão longe da casa que, logo que passaram ao meu pai os excessos de cuidado por o carro ser novo, ficava simplesmente estacionado perto da rampa do portão.   
Em largura, esta era a suficiente para que a avenida principal (onde ainda agora passaram os guarda-chuvas a caminho da garagem) tivesse uma transversal, conhecida por todos como a Rua do Castelo e meu domínio, pois a minha irmã mais velha praticamente só se interessava por ir espreitar casamentos à igreja, por pernas e por sapatos.
A Rua do Castelo era uma álea sem saída, conduzindo ao muro de divisão do quintal, onde, do lado de lá, havia outra Rua do Castelo, pertença dos meus primos Manel e Heitor que moravam na casa ao lado, cópia siamesa da minha casa. Por junto, eles e eu possuíamos extensa propriedade, cuidadosamente repartida em termos de instalações e actividades: do lado de lá do muro ficava o baloiço, suspenso na estrutura de fero da ramada, e do meu lado o Subterrâneo, que, no ferro da ramada, tinha suspensa a corda do balde com que tirávamos a terra cavada cá para fora.
Com o Subterrâneo dávamos corpo, tal como com o Laboratório, às ideias de aventura e descoberta que nos ocupavam a mente o dia todo, mesmo se sentados nas carteiras da escola primária. Por requerer grande esforço de planeamento e execução, o Subterrâneo era uma actividade predominante das férias de Verão. Demorou temporadas até que descobríssemos os princípios, fundamentos e técnicas do escoramento de terras, pois logo que atingíamos com as nossas escavações uma profundidade que nos ocultava os joelhos aquilo desatava a aluir... Mas éramos persistentes e gastávamos a grande fatia diurna dos nossos dias a escavar; para não perder tempo, eu, sempre que o conseguia, dormia vestido, de botas e tudo. Na casa pegada, os meus primos tentavam um trajar semelhante.
Quando o Subterrâneo estava pronto, e muito poucas ocasiões o esteve, cabíamos os três lá dentro, de pé. Raramente deixávamos entrar a minha prima Nunu, irmã dos meus primos mineiros; a função dela era ficar por ali a tomar conta das coisas ou a cozinhar. Quando pronto, o Subterrâneo era um quadrado no chão, tapado com uma placa de folha de flandres, de interior algo assustador pela escuridão e intenso cheiro a terra que reinava. Sistematicamente, num dia em que ainda estando bom tempo chegávamos da escola e corríamos à Rua do Castelo, encontrávamos a ausência no lugar do Subterrâneo. Com toda a simplicidade, com toda a facilidade, alguém atulhara meses de trabalho, fazendo parecer que nunca tinha existido; a folha de flandres encostada a um canto parecendo muito mais uma placa de folha de flandres do que o telhado-cobertura onde, sob uma caveira e duas tíbias, alertávamos os estranhos para os perigos de uma intrusão.
Para além do “filho da puta” definitivo que dedicávamos ao Mendes, o jardineiro Neandertal que morava na Ilha do Bravo ao fundo da rua, não nos passava pela cabeça outra forma de reclamar ou, sequer, invocar um qualquer poder oculto que invertesse a situação. No Verão que se seguia, e em muitos verões seguintes, recomeçávamos do zero o Subterrâneo. Nunca conseguimos que nos deixassem lá dormir, mas passámos várias meias-horas sentados no seu chão de terra alisada a comer sardinhas de conserva à luz da lanterna.    

21. Agora a gente já não tinha medo

Aposto que nunca ninguém a tratou pelo nome, talvez com a excepção de umas enjoadas colegas de trabalho e, já se sabe mas isso não conta, as professoras do liceu. Nem a mãe dela, a minha tia Olinda, estando furiosa, lhe conseguia gritar em termos de:
“Maria Leonor, se não paras imediatamente de rir levas com o batedor de tapetes...” 
É que Leonor, embora nome nobre e belo, é de pronúncia insuportável no dia a dia; a língua embaraça-se no “nor”, a mente não espera que a seguir à majestade de um “Leo” nos tenhamos que acomodar a um “nor” que confere ao nome um ressentimento de amoníaco. Das outras variações (Leonilde, Leopoldina,  Leocádia, etc.) nem é bom falar...
De modo que a minha prima Leonor foi reconvertida em Nunu, como aliás aconteceu com todas as Leonor minhas conhecidas, que se transformaram em Nônôs, Norzinhas ou Nunus e (mas mais em ambiente média-luz) em Nus.
Pois esta minha prima, um ano mais nova do que eu, morava numa casa igual á minha, siamesa da minha casa mais antiga, e representou um importante papel na minha infância e adolescência.
Desde pequenitos tivemos muitas coisas em comum, uma das quais foi a primeira inclinação profissional, pois ambos sonhávamos ser peixeiras. Nessa época, embora se praticasse a ida à mercearia e a outras lojas abastecedoras, o mais comum era, durante a manhã, assistirmos ao tocar da sineta do portão e vermos desfilar até á porta da cozinha o padeiro, a leiteira, a biscoiteira, o marçano e, profissão que ultrapassava todas as outras em prestígio, a peixeira. 
Para além de falar alto e sem uma sombra de pestanejamento, a peixeira tinha,  por sobre as várias camadas de saias, um avental preto cheio de bolsos e por baixo deste uma bolsa onde acamava notas em grandes quantidades. E depois, quando tirava o pano molhado aos quadrados que cobria a canastra e revelava o que trazia... Eles eram cavalas, eram fanecas, sardinhas e, mais próximo do topo da hierarquia, o belo badejo, a bela pescada, o fino linguado... E a minha mãe, olhando de cima, atenta, a apontar o dedo:
“E as mílharas, são frescas? São mesmo de pescada, não serão de bacalhau...?”
“Ó, Dona Manuela, pela minha saúdinha, que são uma riqueza! Então eu ia lá impingir à senhora ovas de bacalhau!”
A Nunu e eu, calados e fascinados, seguíamos aquelas negociações complexas com atenção, retínhamos na memória a gíria e nas retinas as atraentes ventosas do polvo, o furta-cor das lulas, as escamas prateadas, os olhos saídos e brilhantes daqueles peixes todos; mirávamos, aterrados, o peixe-espada e o tamboril imaginando o que seria um encontro com um peixe daqueles quando tomássemos banho na Praia dos Beijinhos. Achávamos que poderia ser mesmo pior do que um rendez-vous com o temível e tão publicitado peixe-aranha!
Quer eu quer ela, enquanto preparávamos os nossos tabuleiros cheios de folhas de diferentes dimensões e brilhos, cobertos com um pano da cozinha molhado, entretínhamos conversas em torno de como guardaria a peixeira toda aquela peixaria em casa. Eu tinha a certeza que a casa dela era revestida, em todas as divisões, com armários de gavetas sobrepostas onde ela guardava o peixe, gavetas em tudo semelhantes àquelas onde o senhor Gonçalves Oliveira, da Fergoliv (a retrosaria da esquina), acondicionava as gravatas.
“Achas que ela come do peixe que vende ou compra-o a outra peixeira?”, perguntava a Nunu enquanto aspergia de água umas folhas de hidranja indistinguíveis de besugos. 
Eu não sabia, distraído a dispor as minhas folhas de agapanto como vira serem acondicionados os peixe-espada; a pensar em que tipo de gaveta ela guardaria os polvos e se as manteria, para maior segurança de quem dorme, fechadas com cadeado. Sobre a peixeira, a única coisa que dava como certa era que o marido seria pescador e que nunca comiam peixe às refeições para terem sempre mercadoria para os fregueses.  
“Agora eu já não era peixeira”, comunicava eu, vendo os meus primos, irmãos dela, a aproximarem-se, “agora vamos trabalhar para o Subterrâneo...”
“Vou-vos lá vender peixe daqui a um bocado e depois eu era a cozinheira...”
O tempo passou, a Nunu cresceu, durante uns anos afastamo-nos um pouco. Até ao dia em que, na saída do liceu das raparigas, dei por ela e reparei como tinha tantas amigas interessantes. Por outro lado, o Renato, o meu melhor amigo no liceu dos rapazes, também a achou muito interessante a ela e isso aproximou-nos outra vez, de tal modo que a Dona Aninhas Pinto, a gentil avó materna dela, na sua voz esganiçada, inquiriu a minha tia:
“Ò Olinda, tu não achas que a pequena e o primo andam demasiado juntos...?”
 Nenhum de nós, nem sequer os nossos pais, ligou demasiado a isso e a Nunu, que atravessava uma fase muito estranha, continuou por mais uns bons anos obcecada em lavar as mãos até esfolar a pele de tanta limpeza e a cair das cadeiras abaixo de tanto se rir sem conseguir parar. Uma vez, o meu pai até a ameaçou que lhe dava um par de lamparinas se ela continuasse naquilo, mas o máximo que ela conseguiu foi sair da mesa de jantar aos tropeções... Outra ocasião íamos no eléctrico, do liceu para casa, sentados um em frente ao outro naqueles bancos de palhinha que havia à entrada e à saída, e eu apontei-lhe um tipo com uma cara mesmo ridícula que seguia pendurado na pega entre nós, e ela, quando olhou para cima e o viu, desatou a rir de tal maneira que se mijou e tivemos de sair à socapa na paragem seguinte e fazer, entre gargalhadas incoercíveis, o resto do caminho a pé.
Hoje em dia, ela já tem um par de filhas muito mais velhas do que nós éramos nessa altura e é casada com um engenheiro que trabalha nos transportes públicos do Porto, pois o mundo é maravilhosamente redondo.   

PS: “Agora a gente já não tinha medo” é uma frase universal da infância. Mas houve um senhor, chamado Francisco Buarque de Hollanda, que a fixou para a eternidade numa canção chamada “João e Maria”. 

22. Flagrantes da vida real

Como com muitas outras coisas, só me dei conta disso quando comecei a circular fora de casa e pude comparar a minha realidade com a de outros.
Na minha casa mais antiga, havia-os por todo o lado: estantes, mesinhas de cabeceira, pousados em cima do autoclismo ou esquecidos pelas cadeiras ou bancos dos quartos-de-banho que eram sempre de cor branca. Na casa que o meu pai construiu depois, também os havia em todos os andares, aqui em maior quantidade, talvez por que a passagem do tempo permitiu o seu acumular por compra, por oferta, por herança. O maior quinhão enchia duas estantes na sala da lareira, depois havia-os no escritório e, lá em cima, no primeiro andar, nas duas estantes do hall, na prateleira encastrada na parede do quarto dos meus pais, no meu quarto, no quarto das minhas irmãs, nas mesinhas de cabeceira, esquecidos sobre o autoclismo e os bancos ou cadeiras do quarto de banho que eram sempre de cor branca... Até na cave, amontoados numa estante envidraçada que era um crime estar ali; na despensa, na companhia de torradeiras ou espremedores de citrinos que já não funcionavam; num guarda-vestidos naftalínico ao qual se abria uma porta e escorregava um para fora duma pilha, esbarrondada como um queijo maduro de mais.
E na casa dos meus avós maternos a mesma coisa: livros por todo o lado. Concentrados nas estantes do escritório do meu avô Heitor, arrumados com uma disciplina que não mais tornei a ver senão em bibliotecas. Estantes catalogadas, livros com etiquetas personalizadas onde constava o seu número, a origem e a estante onde deveriam ser arrumados depois de consultados. O homem tinha livros que se fartava e, não satisfeito com o que tinha, escrevia mais alguns.
Havia ainda as revistas. Em casa dos meus avós sobretudo Civilização, Selecções do Reader’s Digest e National Geographic Magazine, esta última muito apreciada pelos netos do sexo masculino dado que era frequente trazerem uma reportagem ilustrada sobre uma tribo exótica cujas mulheres, pesasse embora os discos de madeira que lhe deformavam os lábios ou os ossos de tarambola que lhe atravessavam narizes, se passeavam nuas pelas redondezas, a maior parte das vezes usando minúsculas saias de palha ou, com sorte, completamente nuas! Era a única fonte que eu e os meus primos tínhamos desse tipo de material, para além daquele que se escondia nos livros médicos do meu pai, esse amiúde frustrante pois ver uma mulher nua que só se sustém de pé perante o fotografo porque tem uma pilha de livros onde assentar o pé da perna mais curta é um tanto desanimador.
Em casa dos meus pais, para além das Selecções já citadas, havia Paris Match e o Courier da Unesco, dado que o meu pai não se aguentava mais de um mês sem coscuvilhar as novidades sobre o que se tinha passado em Luxor e no Vale dos Reis nos últimos cinco mil anos.
Mas, como dizia no princípio, só quando comecei a sair do lar me dei conta que não era assim em todo o lado: havia casas onde só se quedava uma única e humilde estante, outras onde os únicos livros que se viam eram os de cozinha e, com boquiaberto espanto, vi um dia uma estante onde às obras completas de Shakespeare só era indispensável a lombada, como se tudo aquilo fosse cenário de teatro!
Até aos sete ou oito anos, apesar dos esforços da minha mãe, não me interessava por livros sem imagens, olhava-os com tédio e todo o meu interesse ia para os álbuns do Tintim, que os meus primos possuíam em grande quantidade. Uma manhã, numa das minhas crises amigdalinas, fui visitado no quarto pelo meu pai que, antes de sair, passou a dar-me uma fogachada com merthiolato nos estreptococos. Deixando-me com os olhos rasos de água e antes de sair, perguntou o que queria que me trouxesse à hora da fogachada vespertina, um novo raid sobre os estreptococos que de manhã se tinham refugiado sob as estalactites das criptas amigdalinas.
“Traga-me um livro do Tintim...”, pedi em voz roufenha.
E, por entre sumos de laranja naturais, supositórios imaculados e termómetros que escorregavam da axila e só revelavam a febre à segunda tentativa, sonhava com os desenhos claros, semelhando aguarelas, da banda-desenhada a vir. Que não veio! À noite, em vez do embrulho grande, fino e de capa dura que era obrigatório a um livro do Tintim, o meu pai pousou sobre a cama um embrulho atarracado, grosso e mole. Abri, desgostoso, e percorri-o com aversão: ali quase só havia letras e, para além da figura da capa, encontrei meia-dúzia de desenhos a preto e branco! O homem que tinha escrito aquilo chamava-se Enid Blyton, o livro chamava-se Os Cinco Na Ilha do Tesouro. Deixei o livro abandonado sobre a coberta e, após o jantar, enquanto esperava que a minha mãe me viesse apagar a luz e entalar as quatro camadas de cobertores, peguei no livro e, reticente, concedi-me ler o primeiro parágrafo. Nessa noite, com uma mal disfarçada satisfação que me fez desconfiar que aquela compra tinha sido uma conspiração contra mim, a minha mãe viu-se aflita para me arrancar o livro das mãos; disse:
“Ah, afinal gostaste...! Eu não te dizia? O melhor está aqui,” continuou batendo um dedo na minha testa quente, não está nas figuras... Vá, agora deita para baixo, amanhã lês mais.”
Escassos anos depois descobri a utilidade prática desse dedo na testa, pois nessa época não havia muito que se pudesse ver ao vivo ou onde a gente se pudesse inspirar para deambulações erotizantes. A televisão, fenómeno recente, era a preto e branco e não se ia longe com os decotes subidos dos vestidos, austeros e pesados como reposteiros, de Lady Marianne, a eterna noiva de Robin dos Bosques. Não havia internet, clubes de vídeo, dvd, downloads piratas, scanner a cores, nem sequer máquinas de fotocopiar em gamas de cinzento... Só nos restavam mesmo as revistas e os livros.
Assim, a nossa atenção pairava como uma águia sobre tudo o que nos passava à frente dos olhos e, ainda mais, sobre o que nos era ocultado. Nas aulas de português, por exemplo, na eternidade e no tédio dos dez Cantos dos Lusíadas não nos passava despercebido o nervosismo e o modo abreviado com que era referido o Canto IX. Mas, sentado na retrete, o calhamaço pousado no banco branco arrastado até à proximidade dos meus joelhos, rapidamente me apercebi ser a linguagem demasiado simbólica e que o perder-me no seu decifrar era quase tão prejudicial à manutenção de um certo limiar de entusiasmo como o súbito bater na porta e o trovejar de um:
“Estás aí quase há uma hora! Sai, preciso usar o quarto-de-banho!”
Tudo melhorou com o novo escritor predilecto da minha mãe, o brasileiro Jorge Amado, a quem ela gabava com entusiasmo a prosa inventiva e, em conversas com as minhas tias, referia em voz baixa ter passagens bem “picantes”. Esses livros não estavam à superfície das estantes, eram cuidadosamente escondidos em sítios insuspeitos e mantidos sob rigoroso controlo. Mas a minha capacidade para encontrar fosse o que fosse que tivesse sido oculto era espantosa, tornou-se, até, tão lendária em minha casa que a minha própria mãe pedia, em desespero de causa, que lhe tentasse reencontrar riquezas que tinha escondido de nós mas não se lembrava onde...
Falei dos livros, resta-me referir essa outra fonte de material estimulante da imaginação que eram as revistas; essas, por definição, mais ilustradas. Todos nós humedecíamos o dedo e batíamos conscienciosamente as páginas de tudo quanto circulava ao nosso alcance, trocávamos informações sobre o assunto nos intervalos das aulas ou, mesmo, durante as próprias aulas. Uma das minhas descobertas mais apreciadas nesse mercado negro foi um anúncio a um produto chamado Señobel, cuja finalidade era conseguir “um busto invejável”. Na diminuta fotografia via-se o perfil, a cores, de uma mulher aplicando no peito uma espécie de ventosa com o formato de um tupperware cónico. A crer pelo resultado, ela devia ser uma fervorosa e incansável praticante do método.
No mês seguinte, logo que chegou à caixa do correio um novo número das Selecções do Rider’s Digest, senti chegado o momento de substituir aquele material por outro, pois sentia que o manuseio do Señobel tinha atingido o seu limite - uma pausa far-me-ia apreciá-lo de novo mais tarde. Meti o exemplar na pasta e levei-o para o liceu.
Como nem toda a gente assinava ou comprava a revista, não faltaram candidatos e, depois de escolher um que me parecia seguro e com um bom produto para troca, confiei-lhe a revista com as recomendações do costume, onde a mais vincada era a de que ma devolvesse sem páginas coladas.

23. Doce violação

Ontem, dia 4 de Setembro de 2010, num prolongado encontro gastronómico no vale do Douro, soube pela minha prima Zi o que queria dizer ‘Zaida’. É que a Zi, coitada, herdou o ‘Zaida’ como nome. E, mal saiu da pia baptismal, toda a gente desatou a experimentar-lhe alcunhas como quem experimenta carapins: ficou Zi para a maioria, Zaidinha e Zizi para meia-dúzia. Com um nome destes, a Zi, que cultiva o português com desvelo, escavou pelo significado com a curiosidade ansiosa de quem procura os pais biológicos. 
Zaida é um nome árabe, isso eu já sabia, e quer dizer ‘felicidade’. Ou dito de outro modo, se não fosse a influência árabe na Península a minha avó materna seria pura e simplesmente conhecida como D. Felicidade.
Pois, como já por aqui disse, D. Felicidade tinha uma relação patologicamente retentiva com as suas receitas de cozinha, que tratava como tesouros de Estado e mantinha aferrolhadas no armário da copa, em frente ao pequeno relógio de pêndulo que por ali havia e que, tenho a certeza, tivesse a minha avó  vivido no século XXI e não no XX, seria substituído por uma câmara de videovigilância com monitores de controlo no quarto dela.
Já vos deixei a receita do Rolo de Barcelos, doce pouco comum e um dos mais consagrados do receituário da minha avó e hoje, mau-grado os anos que passaram sobre o seu passamento, o seu olhar fuzila-me ainda do Assento Etéreo ao adivinhar aquilo que me preparo para fazer dentro de momentos. E, não fosse ela estar no Céu, seria mesmo prudente da minha parte considerar a hipótese de mau-olhado.
No texto em que pus à disposição do cosmos a receita do Rolo de Barcelos falei também no Doce Tirsense, o la crème de la crème dos doces da avó Zaida. Ainda não tinha transcrito a receita, pois faltava-me uma fotografia que ilustrasse, minimamente, com o que se parece. Mas ontem, no almoço-lanche-jantar em Cambres, ele surgiu sobre as mesas como uma bênção de fim de Verão, abrilhantado em três travessas com friso de azuis e dourados como o dia que estava. Trémulo, mais rápido que todos e antes que alguém lhe espetasse a colher, saquei do  telemóvel e colhi três instantâneos, um por travessa.
É certo que se pode comer ao longo de todas as estações e, nesse aspecto, é como as rabanadas, mas o Doce Tirsense é, claramente, um doce de Verão. Antigamente, aliás, como não havia estufas e morangos todo o ano, só se podia sonhar em comê-lo no Verão e, antes da invenção do frigorífico, calculo que fosse guardado em cave bem sombria e fresca nas horas que antecediam a sua subida triunfal para a proximidade do centro de mesa, pois a sua divindade não consente posição de menor destaque.
Agora, antes de passar à exposição dos ingredientes e técnica de confecção, permitam que diga que vislumbro algo de sensual no modo como aquele doce chega à mesa: acabado de sair dos claustros do frigorífico, ao enfrentar a luz do mundo exterior, o rosado dos morangos como que alastra sobre o branco imaculado e tenro das claras em castelo que, resguardando o dourado-moreno do doce de ovos que se oculta sob elas, tremem como um busto arfante ante a  gulosa ameaça de, em escassos minutos, virem a ser inauguradas por uma irreprimível colher.
“Não há melhor do que isto!”, comentava, servindo-se à ganância, o meu primo Pedro, filho da minha prima Zi, neto da minha tia Teresa e bisneto da guardiã implacável das receitas. Este vício já vai na quarta geração...   

DOCE TIRSENSE

Ingredientes:
6 gemas
2 claras
250 gramas de açúcar
1 chávena de chá de leite
1 cálice de vinho do Porto
morangos frescos q.b.
miolo de noz q.b.
Confecção:
Batem-se as gemas com o açúcar, à mão e num tacho não aquecido.
Quando já estiver a fazer "bolhinhas", junta-se o leite e o vinho do Porto.
Leva-se ao lume até ferver.
Ao levantar fervura, põe-se o disco mais brando e deixa-se ferver durante 5 minutos, mexendo sempre.
Põe-se numa travessa e deixa-se arrefecer.
Leva-se ao frigorífico.
Batem-se as 2 claras em castelo e espalham-se cuidadosamente sobre o creme.
Enfeita-se com morangos e miolo de noz.
Nota: Só o creme é que vai ao frigorífico, as claras, os morangos e as nozes juntam-se antes de servir.

24. Os três estados da matéria

É onde a intuição intercepta a consciência e ali, dentro de minutos, vai passar a carruagem que me levará ao apeadeiro da acção concreta. Por vezes, sem saber como acontece, acontece-me passar por lá, é uma encruzilhada poderosa, a crer nos resultados. Por exemplo:
Uma manhã resplandecente de Maio, quinze anos atrás, ao espelho, enquanto faço a barba, apercebo-me de que aquele papito no lado esquerdo do pescoço pode muito bem ser um cancro. O alto já ali anda há uns quinze dias, talvez mais, via-o todos os dias ao espelho mas a sua percepção morava abaixo da linha de água da consciência, foi só nesse dia que cristalizou e se encaixou em mim sob a forma de um pensamento que me empurrou a agir e procurar saber qual a sua natureza. Era um cancro.
Mais recentemente, não faz um mês, algo semelhante... A Mia começou a andar estranha, parecia-me: a dormir pelos cantos, menos vigil; comia pouco, há dois ou três dias deixara quase mesmo de comer – não muito mais indícios do que isto. E um dia, exactamente igual aos precedentes, olhei-a, pensei que talvez  pudesse andar a chocar uma doença grave dentro de si que poderia estar a agravar-se e matá-la. No momento em que essa constatação me flutuou à tona da consciência peguei nela e levei-a ao veterinário.
“A sua gata está mal, tem uma  infecção brutal no útero”, comunicou o veterinário no fim da ecografia, “ela já deixou de comer?”
Confessei que sim, na véspera já só cheirara os biscoitos da ração, nesse dia só bebera água...
“Então foi por um triz... Quando deixam de comer vão-se num instante!”
A Mia foi operada nessa mesma tarde, tinha a barriga num estado miserável, cheia de pus; ficou sem útero e sem ovários, mas está bem outra vez e foi com alegria que a trouxe para casa, pois nestes dias sem ela dei-me conta como faz parte da minha história dos últimos sete anos, do meu bem-estar.  
Nove de Novembro de 2007, sete horas da noite. Estou na cozinha, acabei de passar a varinha mágica numa panela de base para sopa, voltei a pousá-la no disco do fogão para que acabe de apurar. Silêncio total na casa, no chão da cozinha a Mia olha-me e espera, como geralmente sucede quando há uma perspectiva de comida envolvida. Estou a pensar no meu pai e nos telefonemas que fizeram as minhas irmãs durante o dia. Está acamado há cerca de um mês e há cinco dias constipou, apareceu uma tossezeca, tem alguma expectoração, nada de febre. Por causa das coisas, prescrevi um antibiótico leve, um expectorante, para que os pulmões não encharquem. Vou perguntando o básico: tem urinado, tem comido, tem febre, as pernas incharam? Tudo parece mais ou menos tranquilo. Durante a tarde as minhas irmãs telefonam, o pai parece ter hoje mais expectoração, depois, ao fim da tarde, a minha irmã mais nova, ao regressar do trabalho, passou por lá, telefona, acha que ele está com uma respiração esquisita.
“Esquisita, como?”
“Não sei”, responde, “parece mais acelerada”.
Estou na cozinha de minha casa, a Mia olha-me de baixo para cima, tiro um prato do aparador, talheres da gaveta, um copo, guardanapo... E, de repente, desligo o fogão, subo ao quarto, atiro umas roupas para dentro da mala. Bato a porta, a noite está nítida e gelada, arranco para o Porto. Passa um pouco das sete e meia, tenho 280 km para guiar, a sensação de que não vou chegar a tempo.
Teria metido um fato escuro na mala, uma gravata preta, se já não o tivesse feito dois meses antes, no Verão, com um certo remorso pelo gesto. Quando cheguei ao Porto e abri a porta do guarda-vestidos da cave de casa dos meus pais para o esconder por ali, dois livros, de uma pilha esbarrondada, tombaram de dentro, aos meus pés. Não queria que ninguém se apercebesse da minha antecipação, não queria ser olhado como ave de mau-agouro. Mas, para mim, tornara-se tão evidente...
No entanto, para as minhas irmãs, para os meus cunhados, para o meu filho Zé João que também mora lá em casa pois estuda no Porto, para essa gente que o vê todos os dias, o resvalar do seu estado de saúde não é tão brutalmente evidente como para mim, que o encaro de forma intervalada e, por ser médico, consigo encaixar as mudanças que apercebo naquilo que é a descrição de um estado terminal.
Oh, claro que ele sabia, ele também é médico, arguto, e esteve consciente até ao fim, o olhar imensamente triste perdido nas peças de porcelana que enfeitam a borda da prateleira da parede em frente à cama. Mas não falava do assunto, não queria sobrecarregar ninguém, dar parte de fraco e quando o inquiria brandamente sobre resultados de exames, sobre o que tinham dito os médicos na última ida ao IPO, respondia de forma assepticamente genérica, mudava a agulha do discurso para outra direcção a que imprimia a tónica de ‘falemos do que interessa’:
“E tu, fizeste boa viagem? O Zé João lá continua a tocar a sua cornetazinha, olha que ensaia naquilo seis ou sete horas por dia!”
Não valia a pena insistir, nem eu insistia. Permanecíamos calados, a olhar a lareira e, a páginas tantas, se não estava mais ninguém na sala, ele podia dizer:
“Já te disse que tenho direito a um talhão, de borla, em Agramonte? É por ser irmão da Ordem de S. Francisco...”
Ou podia repetir:
“Se eu um dia destes bater a bota, vais à primeira gaveta da minha secretária e encontras lá a relação de tudo o que temos. Já o disse à tua irmã, mas por alto, sabes como ela é nervosa...”
E a noção que ele tinha do seu estado, do que lhe restava acautelar, era tal que eu já há muito abandonara no meu sótão as vestes garridas de um:
“Ora, pai, para que está a falar dessas coisas...”
Não era tempo de negação. Em silêncio, eu tinha trocado as vestes garridas por um fato escuro, por uma gravata preta, que esperavam no guarda-vestidos da cave desde o pino do Verão.  
Nesse Agosto meti férias, mudei-me para o Porto, para os aposentos da cave onde mora há dois anos o meu filho, que estuda trompete no Porto. Há séculos que o meu quarto, lá em cima, foi transformado numa sala de estar para que a minha mãe, convalescente de uma mastectomia e da consequente procissão de quimio e radioterapia, pudesse ler os seus livros e escrever os seus poemas longe do bulício doméstico, do esforço das escadas. Depois ela morreu, mas o quarto continuou sala de estar, parecido com o cenário onde ela passava os  dias; tornou-se na sala de trabalho do meu cunhado que lá mora com a minha irmã mais velha desde que a minha mãe se foi e o meu pai corria risco de ficar sozinho num casarão de três andares. No quarto de hóspedes onde eu costumava dormir, o quarto mais próximo do quarto do meu pai, está agora a Belmira, que veio da aldeia onde o meu pai nasceu e cuida dele em tempo inteiro. Da janela do quarto na cave vejo a madeira da lareira alinhada ao longo da parede, está ali a acabar de secar para no Outono estar de feição para estralejar na lareira. A maior parte dos toros é eucalipto, mas também há carvalho, castanheiro... É uma imensa quantidade, o meu pai encomenda sempre duas mãos-cheias de toneladas, para que dure, este ano e o próximo... Olho aquele monte com olhar antecipatório, pergunto-me quanta dessa madeira vai arder aos olhos do dono.
Uma manhã, gloriosa e quente, vou ao IPO. Chego cedo, pois sei como os tempos são mortos num IPO. Horas de espera a enfeitar uns escassos momentos úteis. Procuro o médico no departamento de Tumores Líquidos, o meu pai tem uma leucemia crónica, uma doença maligna do sangue. Quero falar com ele, pois o meu pai faz um anticoagulante diário para combater o efeito espessante do sangue que provoca a leucemia: com tanta reprodução descontrolada de células do sangue, este tem tendência a entupir os vasos sanguíneos de pequeno calibre. Mas um anticoagulante é uma sanguessuga, é medicamento cheio de manhas e perigos, tem de ser vigiado assiduamente, de outro modo pode actuar em demasia e provocar hemorragias... O meu pai tem de ir ao IPO quase semanalmente controlar aquilo, cada ida representa sair de casa antes das 8 da manhã, regressar depois das 2 da tarde, sem comer; penar esse tempo todo em cadeiras duras, pelos corredores, até que lhe façam uma picada e o mandem embora. Tem mais de 90 anos, a doença cansa-o, a espera arrasa-o, o ambiente deprime-o, a inutilidade do que lá vai fazer tornou-se-lhe evidente. Não se queixa de nada. Vou ao IPO explicar isso ao médico, pedir-lhe que acabe com o anticoagulante, sugerir-lhe que o substitua por uma pequena dose de aspirina, esta também tem efeito anticoagulante. Sei que é solução menos específica, menos eficaz; mas trata-se de pôr as coisas nos pratos da balança: a vida que resta ao meu pai pode medir-se em meses, interessa-nos que a viva o melhor possível, nem isso: o menos mal possível. Para quê arrastá-lo pelas estações do calvário em nome da tranquilidade da consciência técnica dos médicos?
Não ignoro que a minha tarefa para essa manhã é árdua. Conheço os médicos, sou um deles, já os enfrentei como doente e sei como ficam escandalizados, inseguros no seu papel, quando tentámos discutir com eles as soluções possíveis para o nosso corpo e alma. Mas vou escorado na decisão que as minha irmãs e eu tomámos sobre o futuro do nosso pai.
Lágrimas rolam pelas faces da Susana, a mais nova, quando insisto que é preciso decidir já:
“O pai é capaz de não chegar ao Natal...”
De súbito, parece-me que não passou assim tanto tempo desde os dias em que, alegremente, em volta da mesa de jantar, discutíamos o nome que iria ser dado à nova menina que vinha aí:
“O nome que prefiro é Susana”, diz o meu pai do seu lugar à cabeceira, “quer dizer ‘lírio do vale’ em hebreu...”
Agora acabaram-se os tempos em que ela era a menina e ele a figura securizante, que resolvia tudo o que se relacionasse com estar doente; agora os papéis inverteram-se e ela tem de decidir se o melhor é ou não parar com todos os tratamentos, com as idas constantes ao IPO. Resistir às sugestões e às tentações de futuros internamentos, tratamentos agressivos, transfusões, picadelas, tubos... Assumir que chegou o tempo de aceitar o fim e não o adiar meia-dúzia de dias por um massacre; decidir se vai ou não permitir que o pai morra, sozinho, a meio da noite, numa cama de hospital.
O médico dos Tumores Líquidos é novo e simpático, tem um nome tranquilizante, o meu pai gosta muito dele e ele exprime grande consideração pela postura civilizada e paciente do seu doente. Noto que fica surpreendido com a minha abordagem, com o que lhe proponho: parar com tudo o que seja invasivo, não exigir que o meu pai lá volte em nome de controlos de cartilha, trocar o anticoagulante por uma modesta aspirina... Mas acaba por concordar comigo, que estou ali e, em silêncio, não desisto. Só diz:
“Mas vai ser preciso ouvir a opinião dos ‘Sólidos’, o seu pai também é seguido por lá...” 
Pois..., os Tumores Sólidos. O meu pai, para além da leucemia, tem metástases ósseas de um tumor na próstata, operado há muitos anos atrás; nada de mais sólido que os ossos.
“Eu vou lá, falo com eles...”, proponho, “se me disser quem é o médico que devo procurar. Se o doutor fizesse o favor de lhe dar uma ligadela, entretanto...”
Do outro lado da secretária, o médico olha-me, vagamente, como se estivesse a pensar noutra coisa. Depois diz:
“Eu vou lá consigo. Espere um bocadinho por mim lá fora enquanto acabo aqui umas coisas...”
Noutra ponta dos corredores, num gabinete ao cimo de umas escadas, o médico dos Sólidos consulta o processo no computador ao mesmo tempo que ouve a minha proposta com algum embaraço. Também ele está espantado com a minha determinação respeitosa e vontade afável em discutir com ele o curto futuro do meu pai. Acabam por concordar em suspender alguns dos medicamentos, substituir o anticoagulante por aspirina, autorizar que o meu pai deixe de lá ir, que só lá vá por absoluta necessidade, necessidade ditada por ele, mais do que pelo hospital.
“Você pode pôr o seu pai a ser seguido pelos Paliativos; acho que eles têm um serviço de apoio domiciliário...”, diz um deles.
Interesso-me por essa possibilidade, mas eles ignoram tudo sobre pormenores. Só sabem que o outro serviço funciona dentro da cerca do IPO, “lá para o fundo”.  
Atravesso uma extensa terra de ninguém e, no meio de algumas árvores, descubro um edifício discreto e rasteiro onde, em vez da azáfama tecnológica dos edifícios principais, reina um silêncio e uma calmaria anestesiante. 
Depois dos sólidos e dos líquidos, aquilo tem todo o ar de ser o pouso dos que se avizinham do estado gasoso da existência, penso, enquanto espero ser recebido pela médica responsável pelo serviço. Na espera, telefonei a uma colega a saber que informações me podia dar sobre o serviço, os cuidados que prestam, a sua responsável. Referências boas, a minha amiga disponibilizou-se para lhe telefonar de imediato, fazer a ligação, explicar resumidamente o caso. Suspirei, confortado, naquela quase hora de almoço de uma manhã dura.
Pouco depois o segurança chamou-me, alguém queria falar comigo no telefone pousado sobre o balcão. 
Na linha, uma voz de funcionário comunicou que o que havia a dizer não necessitava nem que ela descesse nem que eu subisse:
“O seu pai tem direito a ser seguido por nós como qualquer outra pessoa, não é nenhum favor que lhe fazemos. Basta que prove que ele é cá doente...”
Ainda consegui, antes que desligasse, que me explicasse como queria que fizesse a prova e fui a correr ao departamento dos Tumores Líquidos ver se ainda apanhava o médico simpático. 
Apanhei, voltei aos gasosos a entregar umas etiquetas e saí da cerca do IPO com tudo resolvido. Tinha sido uma manhã produtiva. Porque seria então que me sentia com tal sensação de derrota?

25. Domicílio

Noite. Continuo ao volante com a sensação de não chegar a tempo. Encaixei o auricular mãos-livres do telemóvel na orelha, assim não corro todos os perigos de atender um telefone em andamento.
O meu pai não gostava de gatos. Sempre foi um mistério para nós e, já grandinhos, era com ambivalência que o ouvíamos referir, satisfeito, ter acabado de enfiar umas chumbadas da espingarda pressão-de-ar nos vadios que sempre frequentam os quintais. Outras vezes pegava num toco de vassoura, ou similar, para os “zupar” ou, não chegando a tempo da sova, pelo menos para  assustar até à expulsão temporária o felino que se roçava nos arbustos da vizinhança do limoeiro.
Com esta disposição, tinha de ser às escondidas que dávamos um pires de leite ou restos de refeição ao gatito preto que se afeiçoara à casa e cuja sequela de pata partida nos partia os corações. Menos a ele, claro.
Com o passar dos anos, embora a aversão se mantivesse pulsátil, a sua manifestação atenuou-se e tornou-se mais corriqueiro ver um gato rondar a porta da cozinha ou assumir ares de proprietário torrando ao sol na tijoleira.
Depois, já recentemente, confessou o motivo de tanta aversão: tinha sido arranhado por um gato, um dia, quando era muito pequeno e se aproximara do bicho com aquela confiança aberta própria da infância. Senti-me frustrado com a confissão! Tantos anos a tentar convencê-lo a permitir-nos ter um gatizo, tantas acrobacias de pensamento a tentar acondicionar a sua repulsa em medos ancestrais, a desculpar-lhe a fraqueza, e, afinal, tudo se devia a ter sido, uma única vez, arranhado por um gato! E eu, que adorava bichinhos macios, tive de sublimar todas as tendências peluciais da meninice em bonecas de pano espanholas.
O tempo foi amaciando tudo isto e, sem consentimento explícito, o meu pai lá permitiu que um gato adoptado pelos meus sobrinhos, que viviam num andar, fosse acolhido temporariamente no nosso quintal... Depois, já a minha mãe tinha morrido, apareceu uma gata, muito meiga, de pelagem fofa e tonalidades desmaiando entre o castanho e o branco; de físico bem tratado, mas quiçá com carências afectivas, que passou a preferir o nosso jardim. Estaciona em cima dos nossos muros, cobiça a lareira pelo lado de fora dos vidros das portas da sala; a minha irmã Clarinha dá-lhe de comer, mais a pílula de 15 em 15 dias. Um dia, descobri o meu pai, em meias, a coçar-lhe o dorso com os pés, a dizer com um ar travessamente contente:
“Estás a ver? Ela parece gostar do tratamento...”
Toca o telemóvel no meio de luzes difusas. É a Susana, com a voz à beira do desvario. Na última hora o pai resvalou para uma espécie de inconsciência, a respiração tornou-se entrecortada e ruidosa. Pergunto pela posição das mãos, se estão a ter algum movimento: estou a recear o gesto, tão próprio dos moribundos, de acariciar com a ponta dos dedos a fímbria do lençol, como as crianças fazem com um pano de fralda ou a almofadinha favorita à procura do conforto que invoca o sono. Ela parece espantada com a pergunta, quer que alguém vá lá, urgentemente, vê-lo, pois está combinado entre nós que não o tiraremos de casa sob pretexto algum.
“Um médico! Não arranjas ninguém que venha cá? Já!? Vê se arranjas alguém, és médico!”
Um médico, para ir a casa de alguém, já!, às oito da noite... Sei bem a resposta que se dá a pedido desses: “Se está assim tão mal, o melhor é levá-lo ao hospital...”
Telefono à Raquel, médica de família no Porto, em quem deposito toda a confiança do mundo em termos clínicos. Explico-lhe o contexto, peço para me aconselhar alguém, um contacto de telefone.
Ela sugere um nome ou dois, quando se apercebe que estou a guiar propõe-se fazer o contacto, depois pergunta:
“Quer que eu vá lá?”
Não quero. É hora de jantar, interrompi-lhe o ir para a mesa, os gémeos estarão na banheira à espera de serem enrolados em lençóis de banho felpudos e ralhetes carinhosos; não a quero sujeitar a uma visita domiciliária a dez km de distância e cujo desfecho prevejo sombrio. Ela insiste, calmamente:
“Não quer mesmo que eu vá, Pedro? Eu vou lá, fica mais tranquilo, não tem de andar, feito louco, à procura de alguém... Sabe que a esta hora não vai ser fácil.”
Acabo por aceitar, o leve remorso de a estar a envolver nisto diluindo-se no apaziguamento de ter entregue o assunto em tão boas mãos.
“Vou já para lá, depois ligo-lhe. Guie com cuidado...”
Lá fora está escuro. A auto-estrada está vazia. Merda, tenho de meter gasolina, a luz da reserva acendeu-se, já está em amarelo fixo. Preso em telefonemas, não me dei conta de quando isso aconteceu.
É uma estação de serviço nos arredores de Coimbra, deserta, com a agulheta na mão olho fixamente o deslizar dos números, de vez em quando espreito o telemóvel pousado no banco do passageiro, a vigiar se a luz se acende. Está uma noite gelada e um ventinho cortante fez-me levantar a gola do casaco, estou insuficientemente agasalhado para o ar livre de Novembro. 
Não o sei ainda, não estou lá, mas a esta hora, no Porto, o meu pai expulsou o ar dos pulmões pela última vez e não voltou a inspirar – completa-se o ciclo que começou com a sua primeira inspiração, quando nasceu. A minha urbana, sofisticada e altiva irmã mais nova desmoronou-se no chão do quarto num choro convulsivo, como uma qualquer órfã siciliana.
Pago, entro no carro, deslizo para a auto-estrada silenciosa e negra. Pouco depois o telefone toca. É a Raquel, adivinho o que me vai dizer ainda antes que o diga. Di-lo com cuidado, num tom de voz e num discurso de perfeito equilíbrio entre o pessoal e o profissional, fornecendo a quantidade de informação certa para o momento e avaliando, simultaneamente, qual está a ser a minha reacção à notícia, a interferência que isso poderá ter na minha segurança rodoviária. Em seguida informa-me que ficou em casa do meu pai até chegarem os homens da agência funerária, passou o certificado de óbito e articulou com a agência os detalhes legais; confortou os elementos da família que lhe pareceram mais afectados no momento: a minha irmã mais nova e o  marido, o meu cunhado Gil, pessoas que nunca vira anteriormente.
“Fica bem?”, perguntou antes de desligar e finalmente ir poder jantar.
Em minha casa, agora a 250 km de distância, a panela de sopa deve ter arrefecido completamente sobre o disco do fogão.   

26. Corpo presente

Ao contrário da minha mãe, que era toda romance e poesia, o meu pai abominava obras de ficção, abarcando neste seu desinteresse o cinema que não fosse estritamente documental. Lia muito, mas os seus interesses restringiam-se a disciplinas como a História, a Astronomia e as Ciências Naturais, dentro destas a sua predilecção orientando-se para as neurociências e a busca da Consciência. As descobertas de Hanna e António Damásio na exploração das conexões entre o biológico, o fisiológico e o filosófico entusiasmaram-no, pois o mistério que, acima de todos, o fascinava e intrigava era a emergência, como um sol, da consciência sobre o aparente caos das redes neuronais.  
Nos últimos anos vi-o também interessar-se pelo estudo das religiões e a sua queda pela música, manifestação emocional a que não atribuía grande importância, aumentou. Era frequente chegar a sua casa, pousar as malas no hall para o ir saudar, entrar na sala e reconhecer os sons do adagio molto e cantabile da IX Sinfonia de Beethoven.
“Estou aqui a ler aquele livro que tu e a João me deram no Natal”, referia, mostrando a capa do Alcorão.
Não era crente, o meu pai, e acreditava tão pouco nos romantismos da vida eterna que nem sequer pôs a possibilidade de vir a ser sepultado no mesmo cemitério onde ficaram as cinzas da minha mãe, preferindo os palmos de terra a que tinha direito (“de borla”) no cemitério de Agramonte, por ser irmão da Ordem de S. Francisco. E sete anos de seminário vacinaram-no contra as seduções do Cristianismo e os códigos de barras da Igreja Católica. Mas de modo algum era um ateu e o Padre Avelino, superior dos Frades Capuchinhos, nossos vizinhos de rua e visita frequente, respondia-lhe, se ele o picava com a sua ausência de fé:
“O senhor não precisa de religião nenhuma, Dr. Serrano, já tem religião que chegue: o senhor é um místico por natureza!”
E então, nos seus últimos anos, nas tardes melancólicas de lareira, o meu pai ouvia Beethoven e canto gregoriano como pano de fundo das suas leituras do Bhagavad-Gita.
“Sabes, olha que ainda é com estes gajos que eu me identifico mais...”, dizia-me, batendo com o indicador nos Ensinamentos de Buda, o livro assinalado com as tirinhas, feitas à custa de papel do Público, que usava como marcas para as passagens que tencionava rever ou reter.
Cheguei. Passa das dez da noite quando viro o focinho do Peugeot contra o portão da casa, os faróis iluminam as grades negras. Saio do carro para abrir o portão e olho a casa, como que à procura de algum detalhe que a diferencie pelo que se passou lá dentro. Nada, jaz em absoluta imobilidade, uma luz transparece nas janelas do hall que deitam para a Circunvalação.
Estaciono ao fundo da rampa, tiro a mala feita à pressa do porta bagagens (ainda bem que já tinha trazido o fato e a gravata preta, de outro modo acho que me tinha esquecido), bato a tampa com cuidado como se não quisesse acordar alguém. Ao cimo das escadas encontro o meu cunhado Gil, que me deve ter sentido chegar, que me espera.
“Então?”, diz. 
Dou-lhe um abraço rápido, informa-me que os tipos da agência funerária estão lá em cima, no quarto.
“É o Lessa?”
“Sim”, responde, “a tua amiga médica esteve cá até eles chegarem, passou a certidão de óbito, combinou tudo com eles...”
A Casa Lessa é uma agência funerária de S. Mamede Infesta, enterra toda a nossa família há gerações, o pai do armador que está lá em cima já enterrou o meu avô, a minha avó. A ideia de profissionalismo discreto e completa abstenção de encenação-lacrimosa-para-uso-de-cliente que tinha deles seria outra vez confirmada nas cerimónias fúnebres do meu pai.
Na sala, todos agrupados no sofá, como se tivessem horror a estar distantes uns dos outros, as minhas irmãs, o meu cunhado Manel, uma amiga da minha irmã Susana que apareceu sem perguntar e está por ali para o que der e vier.
Venho cá para fora, para a noite fria de Novembro, em frente a igreja dos Frades Capuchinhos espera, as salas da cripta destinadas aos velórios são a menos de trinta metros da porta da cozinha da casa do meu pai! Junto a essa porta, roçando-se nela, mas sem intenção de entrar, está a gata branca e acastanhada que o meu pai foi tolerando no último ano, apesar da aversão essencial a gatos.
“Que impressão que esta gaja me faz!”, desabafa o Gil, a cara arrepiada como se fossem mãos a torcer-se de impotência, “tem estado toda a noite nisto, maluca, a miar, parece que adivinhou o que se passou lá dentro...”
E faz um gesto de a enxotar. Espavorida, a gata desaparece para trás do murete que há ao lado da porta da cozinha, que dá para a esplanada de tijoleira onde, dois anos antes, o meu pai caiu e quebrou o fémur. 
Ouvimos um barulho, vindo da cozinha; virámos a cabeça em simultâneo. Surgem os homens da funerária, fazendo gincana para conseguirem transpor a porta com o caixão. Estão a transportar o meu pai para a cripta e por ali é o caminho mais directo, não precisam sequer de usar carro nenhum, não há trajecto mais breve. Quando estão a passar por nós, a gata surge do nada, miando um uivo plangente, atravessa-se na frente dos homens que carregam o caixão, desaparece no escuro do quintal. Sinto um arrepio, vejo a cara atormentada do Gil, a sentir o mesmo que eu. O Gil acompanha os homens até ao portão de trás, sentado nas escadas que dão para o terracinho onde fica a lavandaria, olho, vejo, ouço o portão fechar-se lá ao fundo – o meu pai não voltará mais aqui, à casa que mandou construir para ser o lar de todos nós. O Gil chegou à minha beira, diz:
“Olha que era muito amigo do teu pai, sabias? Mesmo amigo...”
Levanto-me, abraço-o; sente-se tão desamparado como eu.
“Sabia...”
O meu cunhado Gil encontrou outra família na minha mãe e no meu pai, naquela casa uma casa como sua. Ambos os sogros o apreciavam, o meu pai referia-se, entre o divertido e o conquistado, ao seu modo de ser explosivamente afectivo, ao ar atormentado:
“É boa gente, o Gil. Tem aquele jeito meio exaltado, mas é um rapaz de valor, e amigo...” 
Penso nisso tudo quando me vou deitar, umas horas depois, a cabeça pesada e as emoções fechadas. Lá em baixo, no quarto da cave, o Zé João já dorme; olho-o em silêncio enquanto me dispo e me deito com cuidado ao seu lado. Apago a luz, está escuro. Do lado de lá da rua, também numa cave, o meu pai está sozinho, fechado, às escuras. Tenho de dormir, o mais rápido possível, amanhã vai ser um longo dia, oxalá já tivesse passado.

27. Nada ficou como dantes

Estacionei num lugar impossível em frente à entrada, estendi uma moeda ao arrumador e fui vasculhar uma daquelas lojas de flores que há sempre em frente aos cemitérios, na vizinhança de oficinas onde se aparelham lápides e se gravam baixos-relevos fúnebres.
Ia à procura de rosas, mas só as havia de papel encerado. Comprei umas flores semelhando rosas pequeninas, tinham-nas brancas, vermelho-pálido e violeta; quis destas últimas. À saída da loja, um homem tomou-me o bouquet das mãos, empunhou uma tesoura de poda:
“É para jarra?”
“Sei lá”, respondi, “não faço ideia...”
“Então é melhor cortar pouco...”, contemporizou ele a bissectriz dando um pequeno golpe ao pé.
Não ia ali desde o dia do funeral, faz três anos no mês que vem. Não vira, sequer, ainda a pedra que tínhamos mandado fazer para cobrir o quadrilátero de terra que formata a campa.
“Estou aqui numa daquelas lojas em frente ao cemitério, que fazem lápides, sabes?”, disse a minha irmã mais nova quando atendi o telefone, “vamos tratar da pedra?”
Havia que decidir o tipo de pedra, o que inscrever nela, que tipo de entalhes preferir para as letras.
“Granito, não achas?”
Sim, sem dúvida, entre o rigor do granito e o adoçado do mármore, o meu pai preferiria, com toda a certeza, a simplicidade austera do primeiro. E depois o granito é a cor da aldeia dele, da paisagem que lhe envolveu a infância. 
“O homem quer saber o que se vai escrever e a cor das letras: pode ser sem cor – a cor da pedra –, dourado ou em preto.”
Foi fácil acordarmos o registo do primeiro e do último nome, o primeiro e o último ano, depois ficámos em silêncio: era tudo? Ela disse:
“Podíamos pôr uma frase qualquer, não achas?, que dissesse alguma coisa sobre ele...”
Lembrei que talvez uma frase sobre nós, o que ficava em nós depois dele partir, dissesse ainda mais sobre ele. 
São três da tarde e está um dia benévolo de Outono, um gato preto dorme, enroscado ao sol, no topo de um jazigo. O cemitério é enorme, mas optei por tentar encontrar o local sem perguntar. Depois, se me perdesse, perguntaria; não me apetecia dizer a quem ia. Segui a intuição dos pombos.
Fui lá dar quase directamente; de repente reconheci a curva no caminho, o canto, encostado às traseiras de um jazigo, onde a campa está. Zigzagueei entre campas e ei-la, que é aquela de certeza; reconheci a pedra de uma foto de telemóvel que a Susana me mandou para mostrar como tinha ficado a lápide. Nada ficou como dantes. Então, a dois metros de ter de parar por ter chegado ao meu destino, ao lado da hortênsia e do pé de roseira enfezados que brotam de uma sepultura abandonada, os olhos encheram-se-me de lágrimas, sem aviso, sem aperto do peito, sem evocação nenhuma, apenas, suponho, por que o reencontrei ao fim deste tempo todo. Naquele estado de silêncio reflexivo, receptivo. E ele que tem estado sempre ali.
Peço mentalmente licença, sento-me sobre a lápide de mármore da campa da senhora que está ao lado dele e que é, mais ou menos, da idade dele. Fico um pouco, a olhar a pedra, sem pensar em nada de concreto, como se tivesse mergulhado no buraco de tempo e de intenção que há entre o fim de uma expiração e a próxima inspiração. 
Sobrevivem-nos as pedras e a luz do sol.

28. Entrada Norte

O pai da minha mãe era director de um Banco, mas não é por esse lado que o recordo, nem acho que fosse assim que ele gostava, maioritariamente, de se ver ou vir a ser recordado. 
Morreu num fim de tarde em que eu saía para marcar uma operação às amígdalas. Tinha oito anos e não me deixaram assistir a nada relacionado com a sua morte. Lembro melhor a sua sala de jantar do que a ele, recordo com mais nitidez o seu escritório do que os seus gestos ou a sua voz.
O meu avô escrevia que se fartava, escreveu sobretudo comédias, mas também poesia e ainda arranjou espaço para traduzir para português o Stephen Zweig. Gostava particularmente de escrever para teatro e as suas peças tanto foram estreadas, para plateias cheias e rendidas, no Teatro Sá da Bandeira como no salão do bilhar da sua casa, as filhas, as noras e as sobrinhas a fazerem de actores, a mulher no guarda-roupa, naquele género de utilização da família que, muitos anos depois, se tornaram pedra de toque de tipos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese... Europa do Sul, nativa ou exportada.
Uma das suas peças (A Costureirinha da Sé), escrita a meias com um amigo, uma opereta passada no Porto, fez tal sucesso que se transformou em filme, o primeiro filme português a cores (Manuel Guimarães, 1959).
Mas, como dizia, recordo mal o meu avô e o que tenho a riscar-me a memória são cenas fortuitas, como encontrá-lo no terreiro da sua enorme moradia a preparar-se para entrar num Peugeot 403 bicolor, castanho e preto e, ao ver-nos chegar pelos portões escancarados, tirar do bolso do sobretudo um par de sapatilhas, com que tinha a mania de nos presentear. Todo o acto a desenrolar-se sob o olhar atento da minha avó, que na sua estatura mignone, vestida de negro e com estolas de pele, fazia lembrar o perfil da Giulietta Massina, a grande dama do cinema italiano e companheira amantíssima de Federico Fellini.
De raspão, antes de ser puxado para fora por poder estar a incomodar, tive também um vislumbre dos bastidores da feitura do Almanaque do Porto, um produto que ele imaginou e concebeu por mais de uma década, presença costumeira nos lares do Porto e minha companhia fiel nos tempos em que, sentado na retrete, mal chegava com os pés ao chão. Anedotas, charadas, palavras cruzadas, provérbios, fotos da nossa terra (que nesse tempo ia de Famalicão a Goma-Damão-e-Diu e de Monsaraz a Lourenço Marques), conselhos agrícolas, fases da lua, curiosidades científicas e do mundo do celulóide, um protótipo de banda desenhada, enfim – tudo quanto pode ambicionar uma leitura transgeracional light e variada. 
Eis o meu avô, de pé, por trás da escrivaninha de madeira cor de tabaco, empunhando um frasco de cola com uma embocadura que parecia um tetina de biberão, a colar, em folhas de papel-almaço, recortes de notícias, quadriculados de palavras-cruzadas, fotos a preto-e-branco. Foi o meu primeiro contacto com a edição e a surpresa de perceber que qualquer obra definitiva tivera os seus dias de andaimes. Nunca soube (aliás, nem ele nem eu), que nesses momentos fugazes me estava a passar as bases do entendimento da obra a vir e do valor da perseverança.
Lugares sagrados da minha infância, essa parte da casa dos meus avós onde ficava, entre vidros e dourados, a luxuosa sala do piano, o escritório do meu avô e, até, o lavabo contíguo à entrada Norte da casa, uma entrada que, embora fosse a principal, raramente era usada por tão formal e pouco prática e em que o lavabo, por razões de diminuta utilização, mantinha um ténue, levíssimo, aéreo, aroma a canos de esgoto. Mas, sabe-se da sensibilidade de olfactos praticamente virgens e como são arquivados nas gavetas mágicas e definitivas dos sentidos os potentes produtos do gatilho da imaginação. Recordámos, eu e os meus primos, esse perfume sanitário com tal precisão que, agora que a casa foi vendida a terceiros e esse mundo se impediu de ser pisado, o conseguiremos reconhecer de imediato se, porventura, pelo facto de o mundo ser redondo, toparmos com ele noutra latitude.    

29. O Céu da boca

Nem sempre acontece, mas, às vezes, quando meto um pedacinho de goiabada na boca, no preciso momento em que a língua, antes de o catapultar garganta abaixo, se alteia e roça o doce no céu da boca, uma sensação gustativa específica emerge e acende os candeeiros de iluminação que bordejam a marginal da minha memória. Eis-me, criança, em Leça da Palmeira.
Leça da Palmeira é, hoje em dia, um dormitório, chique e apinhado, do Porto, mas há 45 anos atrás era uma pachorrenta estância de veraneio para onde a nossa família se mudava em Agosto, e a curta dezena de km que a separava da minha casa mais antiga era, para mim, que andava em dez ou onze anos, tão longínqua como a Côte d’Azur. 
Reconstruo agora o que na altura me limitei a viver com a tolerante passividade da infância.
Isso era sagrado, as férias do meu pai eram sempre guardadas para Setembro, para que pudesse passar esse mês de vindima e frutos maduros na sua aldeia natal, ali para os lados de Viseu. No entanto, Agosto era mês de praia e nessa altura eu, as minhas irmãs, a minha mãe e as empregadas, viajávamos para uma casa arrendada em Leça da Palmeira e para uma barraca de praia, alugada ao mês, na Praia dos Beijnhos, um pedaço de areia e rocha quase vizinho do local onde andava a ser construída a Piscina das Marés do arquitecto Siza Vieira. O meu pai, esse ficava no Porto a trabalhar; aparecia apenas à noite, para jantar e dormir, coberto do pó mítico da distância e trazendo da cidade abraseada alguma encomenda que a minha mãe lhe fizera.
A mudança para a ‘casa da praia’ era antecedida de grande azáfama, pois levava-se quase tudo, apesar das diversas casas que íamos alugando em Leça serem mobiladas e conterem o todo necessário a uma sobrevivência razoavelmente confortável. Mas, na concepção da minha mãe, proximidade de areia era sinónimo de deserto e, para além de roupa de cama e serviço de mesa, era também empacotado equipamento de cozinha e os apetrechos que se podem associar a um piquenique, uma vez que almoçar e lanchar num areal tinha que se lhe dissesse. Tanta mala, cestas e trouxas obrigavam a várias transmudas e aconselhavam a pedir emprestada a carrinha Wolkswagen pão-de-forma da firma do meu tio Mário, pois a generosa mala do Citroën boca-de-sapo do meu pai nem tudo engolia.
De todas as casas que alugámos em Leça, a minha preferida era a mais antiga, uma casa de soalhos rangentes não muito longe do restaurante  O Garrafão, com madeiras pintadas em esmalte cinzento-leve e cujas maçanetas das portas, tão amistosas ao toque, evocavam aqueles ovos de madeira que se usavam para passajar meias.
Na cozinha, já quase na intimidade da copa que antecedia a sala de jantar, havia um armário encastrado na parede, também ele adornado por uma porta canelada de tabuinhas verticais pintadas de cinzento-marítimo. Eram ali  guardadas as vitualhas, os acepipes e as guloseimas. Estavam arrumadas, de baixo para cima, por ordem de sofisticação: tinha de me pôr de joelhos para observar de perto aqueles tubérculos algo repugnantes cuja cor fazia lembrar pele de rinoceronte, mas que se revelavam excelentes depois de cortados em rodelas finas,  fritas em azeite estralejante. Ao lado, dentro de outro caixote, eram guardadas as cebolas que, no escuro da noite, iam fazendo medrar uns cabelos tenros e verdes. Ao nível do meu umbigo, ficavam as gavetas onde se acondicionavam os sacos de arroz e massa. Os pacotes de açúcar, de farinha, os pimenteiros, o colorau, a noz-moscada e os cominhos ficavam em frente aos meus olhos e nariz e, acima disto, acabavam-se as gavetas e começavam as prateleiras. Na primeira, a contar de baixo, alinhavam-se os frascos de pickles, a mostarda, o café e o chá Likungo. Na segunda, arrastando um banco, cintilavam as sobremesas e afins: os pacotes de pudim El Mandarin, as gelatinas e o fermento Royal, os frasquinhos de contas prateadas para  enfeite de bolos, a tablete de chocolate para mousse (degredo no quarto para quem a usasse para outros fins), os biscoitos, as latas de bolachas e a goiabada.
A razão sempre foi um mistério, mas na nossa casa do Porto nunca havia goiabada! Havia marmelada, muita, confeccionada num panelão que fervia uma mistela que se comportava como um vulcão em erupção e, não raro, borrava a parede mais próxima de uma massa alaranjada que atraía as vespas. Entre Outubro e Maio, o produto final ocupava todas as tijelas disponíveis, coberto com um papel vegetal que exalava um aroma a aguardente. Mas nada de goiabada, esse doce tão infinitamente superior em sabor, textura e aparência! A goiabada era um luxo estival, tínhamos de esperar por Agosto e por Leça da Palmeira para a podermos disfrutar. Para esses dias em Leça, o meu pai comprava sempre uma lata de 5 Kg, uma apresentação que nunca mais voltei a ver ao longo dos anos em que, já adulto, faço com que não falte nunca uma lata de goiabada em casa. 5 Kg! Nunca me permitia falhar a operação de ver abrir aquelas latas, embora não me fosse permitido colaborar, pois era empreendimento rotulado como muito perigoso, aquela folha de metal, serreada e vibrátil, cortava como barbatana de tubarão! Mas quando a operação se concluía e o meu pai, que era cirurgião e por isso a pessoa indicada para usar o abridor, levantava uma ponta da tampa com mil cuidados, que prazer! Que prazeres, corrijo, era difícil escolher um só: se a promessa  da quantidade, se a antecipação do sabor, escorregando como veludo garganta abaixo, ou o maravilhamento para os olhos daquela superfície intacta, onde, sobre o reluzente envernizado da polpa, se decalcava a marca do produto impressa na tampa. Aquele brilho, aquele desenho perfeito, só podiam ser observados uma vez e por pouco tempo, pois, de imediato, uma faca profanava a revelação. 
Nos dias que se seguiam, essa faca seria tantas, e tão furtivamente, vezes usada que, no meio de suspeitas acumuladas, flagrantes relacionados, castigos infligidos e esforços musculares redobrados na retrete, a goiabada se ia em pouco mais de três semanas... This was the stuff dreams are made of.  

30. A estação da bruxas

  When I look over my shoulder
  What do you think I see?
  Some other cat looking over
  His shoulder at me.

Donovan (“Season of the Witch”, 1966)

Nesse tempo havia bruxas em todo o lado. Não em permanência, graças a Deus, mas respeitando um equilibrado sistema de permuta. Por exemplo: assim que nós começávamos a fazer malas para ir para a casa de Viseu, passar todo o mês de Setembro, as bruxas da casa de lá começavam a fazer as malas para virem, durante um mês, ocupar a nossa casa mais antiga no Porto.
O mesmo acontecia quando se iniciava a mudança, nos primeiros dias de Agosto, para a casa alugada em Leça da Palmeira: eis as bruxas que moravam habitualmente nessa casa de Leça a empacotarem andrajos, feitiços e mau-olhado entre resmungos, contrariadas por terem de se mudar provisoriamente para uma casa ensolarada do Amial. E elas que eram uns seres de hábitos, apegadas a névoas, miasmas, teias de aranha e espessas camadas de pó!
Mas o sistema não era perfeito, nenhum é, e havia sempre a hipótese de alguma se atrasar a deixar a casa, de existir uma desmiolada que não cumpria as regras, uma surda que não as ouvia ou outra, especialmente malévola, que ficava só para me aterrorizar. 
Na casa de soalhos rangentes de Leça da Palmeira, essa sensação tornava-se quase palpável à noite e de cada vez que o sobrado de tábuas enceradas crepitava eu suava de puro terror na minha cama estreita, enquanto a goiabada dormia em plena segurança dentro do seu armário, pois apesar de o assalto à lata se poder perpetrar em plena impunidade eu não poria o pé no chão nem que estivesse a rebentar para mijar. O pior é que esta presença assombradora podia manifestar-se também em pleno dia, bastava que estivesse o terceiro tipo de clima possível em Leça da Palmeira, aquele que, mesmo antes de raiar a luz dia, era augurado pelo uivo roufenho do farol da Boa-Nova.
Esse clima de bruxas, em que coelhos cinzentos corriam entre os chorões que bordejavam a praia e os caranguejos se roçavam, nervosos, na pedra fria das fendas entre as rochas, podia muito bem ser anunciado de véspera pelo farol, mas o indício não era totalmente seguro, pois, a maior parte das vezes, o sol de Agosto dava cabo dele em três tempos. Mas, se o tempo tinha de correr mal, tudo podia começar com um ”oh” da minha mãe logo após o jantar, interjeição anunciando que a nossa voltinha até ao centro de Leça ou à quermesse fora estragada por uma neblina cerrada, caída sem aviso e que, num repente, arrefecera o tempo para temperaturas compatíveis com pneumonias duplas. Em pé, enfiado na camisola que me seria vestida se saíssemos, afastando a cortina com uma ponta de dedos, espreitava pela janela da sala o espesso manto alaranjado que se produzira na refrega entre a névoa invasora e a luz dos candeeiros da rua. Tirando o lamento intermitente da ronca, o silêncio era total, como se toda a população tivesse desertado ou, talvez, esperasse, amordaçada, por trás de cada janela e nem uma só alma se atrevesse a pisar os paralelepípedos da rua, brilhantes na humidade como as escamas dos peixes que esperavam, mudos, no mercado do lado de lá da ponte móvel.
Na manhã que se seguia a uma noite destas, mais plausivelmente se a ronca uivara toda a noite, era possível que a Maria, que tinha ido ao pão, nos surgisse arrepiada e com o cabelo coberto de gotículas de orvalho marítimo, anunciando:
“Hoje não há praia para ninguém...”
E todo o santo dia penávamos pela casa, tentando espantar o tédio com sessões de  envernizamento de bonequinhos montados sobre caixas de fósforos e feitos de búzios e cola UHU, com leitura e, para espairecer, um ou outro ataque à goiabada e ao queijo flamengo. De permeio, eu e a minha irmã sofríamos uma prolongada sesta no quarto, à espera de um sono que não descia, escutando a casa ranger nas duas da tarde como um navio perdido na bruma. E o que tinha sido aquele clic na porta do guarda-fatos...?

31. Amanhã é longe de mais

Por ter sido o primeiro a imergir, consegui lascar uma fatiazita de goiabada entre a confusão dos banhos dos outros e a azáfama da preparação do jantar.
Agora estou aqui, sentado a uma ponta da mesa da cozinha, a olhar atentamente o meu baldinho de praia, as pernas a balançar contra a trave do banco ao ritmo do cascalhar dos ovos a cozer.
O meu baldinho é o azul, no fundo tem alguma areia, dois búzios e uma lapa e, na água, gira loucamente um peixito de olhos esbugalhados. Um camarãozinho transparente, de cor acinzentada, sobe e desce no balde como se fosse um cavalinho de carrossel. 
Pedi à Maria se ela me deixava cozer o camarão na água dos ovos, mas ela não deixou, diz que é um crime cozinhar uma coisa deste tamanho, que nem tem por onde ser comido. E rematou, com a sua sentença preferida:
“Ficava como os de Vila Pouca: travessa muita, comida pouca!” 
Mas a minha ideia não era comê-lo, era comprovar que iria ficar vermelho; quase não acredito que uma cor tão desanimada e com as tripas à mostra como esta fique com aquele bonito alaranjado dos camarões que vem à mesa na marisqueira do Senhor Henrique Torres, em Matosinhos e que faz o meu tio Rui perguntar sempre:
“Belos camarões, Sr. Torres, são da costa?”
Em seguida dá um gole profundo no fino, a mim espanta-me como é que a cerveja não lhe sobe ao nariz com tantas bolhinhas que engoliu de uma vez só.
Este fim de semana vamos lá encontrar-nos com os meus primos e tios, só que, desta vez, eles vêm de mais longe do que nós, pois a nós, que estamos aqui em Leça, basta-nos sair da casa, entrar no carro e atravessar a ponte nova. Depois, os meus primos ficam cá para Domingo e vamos todos para a praia. Os meus tios não, que não há camas para toda a gente, mas vêm cá ter à hora do almoço. Gosto sempre muito de ir por aquela ponte e acho que o meu pai gosta tanto como eu, pois fica todo entusiasmado (ao contrário da minha mãe que tem medo que o mecanismo possa emperrar e arrastar os carros) quando, subitamente, o semáforo fica vermelho e temos de parar para a ponte se abrir e passar um barco. Ali ficámos, a espreitar pela janela, a ver o chão da ponte a subir lentamente no ar e a fazer-me impressão como é que uma rua onde a gente passa com o carro pode mudar tanto de posição em tão pouco tempo. 
Do lado de lá é logo o Mercado, depois a rua das confeitarias, e, ao fundo de uma voltas, numa esquina, é a Marisqueira.
O que aprecio mais, quando vamos à marisqueira, nem é bem o marisco, de marisco só gosto de lombos de lagosta e de camarões descascados, que são as únicas coisas que não picam os dedos. O que gosto mais são os Grissinos que eles trazem para a mesa antes do resto e, enquanto toda a gente fica ali a martelar cascas e a esgravatar patas, levantarmo-nos para ir espreitar as santolas, sapateiras e lagostas a subirem umas por cima das outras nos grandes aquários que eles tem à entrada; e pensar o que poderia suceder se os elásticos, que mantêm as pinças dos lavagantes presas, rebentassem. Depois voltámos à mesa para comer um gelado, que ficámos a lamber a toda a volta enquanto vemos a dança que o meu pai e os meus tios fazem quando é preciso pagar a conta, pois cada um deles parece ter grande prazer em puxar da carteira antes do outro, em pôr a mão sobre a mão do outro quando ele a leva ao bolso do casaco onde deve estar a carteira, e dizer:
“Ó Eduardo, olhe que eu até fico ofendido!”
Ao Sábado, a seguir ao mercado vamos também à confeitaria, sempre a uma que é mais ou menos perto da casa da tia Lelé, irmã do meu avô Heitor. Estas confeitarias são a central, os sítios de onde partem os batalhões que vendem bolos na praia e, às vezes, até encontrámos lá a trabalhar uma das senhoras que costumámos ver, descalças e de avental, a percorrer a praia com uns armarinhos de lata azuis, com tampa, gavetas e gavetinhas onde os bolos estão arrumados por categorias.
Aqui, na confeitaria, a quantidade de bolos é tão grande que fico baralhado só de os ver acumulados nas vitrinas e montras, enquanto que na praia a gente tem de se concentrar imenso e ser certeiro na escolha quando a minha mãe, a meio da manhã, finalmente chama a senhora com um gesto e nos vai avisando:
“Olhem que só podem escolher um cada um!”
A senhora ajoelha-se na areia em frente à barraca e nós aterrámos em frente à arca do tesouro, ao mesmo tempo que, nas barracas do lado, miúdos vigiam de soslaio a nossa hesitação enquanto fingem que jogam ao prego.
E, embora saiba que podia comer hoje um tipo de bolo e amanhã outro e assim sucessivamente, amanhã é longe de mais e custa-me decidir entre uma bola de Berlim, um caramujo, um mil-folhas ou um pão-de-deus, que é maior, embora não tenha creme. 
A minha irmã Clarinha, que tem uma queda contabilística para assuntos de comida, pergunta:
“Mãe, se eu comer bolo também posso comer batatas fritas?”
“Já sabes que não”, responde a minha mãe, “é uma coisa ou outra...”
Ela não desiste logo, tenta:
“E se forem barquilhos? Posso comer bolo e, se aparecer o homem, barquilhos?” 
A nossa mãe diverge:
“Decidam-se, não veem a senhora aí à espera?”
Os miúdos da barraca a seguir já não disfarçam e levantam areia com os pés, como se fossem cavalos danados por desatar a galopar.

32. Os cotovelos de Maria

Ontem à noite fomos ao centro paroquial, pegado à igreja de Leça, ver um filme. Estava a sonhar com isso quando a Maria me acordou naquele jeito bruto de chamar o meu nome aos berros, destapar-me e puxar-me pelos pés. Deu cabo de tudo e o sonho evaporou-se tão depressa que, embora tenha ficado na cama uns bons minutos a remoer, não consegui lembrar-me mais do que estava a acontecer nele.
Chateado, levantei-me e abri as portadas. Olhar lá para fora foi igual a estar a ver através de um copo de leite frio! Um nevoeiro grosso não deixava ver mais do que o outro lado da rua e um cão amarelo a olhar-me do passeio com aquele ar desolado que os cães às vezes têm.
“Nem sequer se vai poder sair”, gritei em direcção ao corredor, “para que têm a mania de me acordar tão cedo?!”
Não obtive resposta ou porque não ouviram, ou porque não me ligaram e, então, resolvi explorar a profundidade daquele silêncio o que me permitiu cortar uma gorda lasca de goiabada sem ser apanhado de imediato. Ainda a engoli-la, corri para o quarto de banho e lavei os dentes sempre a olhar pelo espelho. Consegui acabar antes e, quando a minha mãe entrou a dizer “ah, estás aqui”, já eu tinha fingido que lavara a cara e estava a secá-la na toalha.
“Tens roupa na tua cama. Veste-te e arranja as tuas coisas que vamos para a praia no fim do pequeno-almoço.”
“Mas não se vê nada lá fora, vai estar um gelo!”
“Não vai nada, é só uma ponta de nevoeiro – vai levantar. Ouvi no rádio, dizem que vai estar um dia muito bom...”
Vesti-me e fui despejar o resto de água de mar do baldinho azul: o camarão desapareceu logo, mas o peixe ficou ali a nadar como se estivesse num aquário com forma de retrete. Mijei-lhe em cima e puxei o autoclismo – com sorte, se o sal do mijo não o intoxicasse, ainda ia parar outra vez ao mar. Meti a toalha, o balde, a pazinha, o espelho da Clarinha e o meu canivete no saco e fui ter com elas à cozinha, onde já estavam todas sentadas à mesa a falar e a comer grossas fatias de regueifa com manteiga.
“Quero regueifa com goiabada”, pedi.
“Não queres nada”, disse a Clarinha, “goiabada é só ao lanche; não é, mãe?”
Quando saímos desta casa e a porta se fecha, a mão de metal que se usa para bater e chamar dá sempre um safanão e bate à porta, o que me faz impressão, pois é como estar a bater a uma casa onde já sabemos que não está ninguém! A quem pode ser dirigido tal batimento que não seja a um ser invisível, tipo bruxa?! Mas, era o que queria dizer quando falei nisso, logo que a porta se fechou sobre nós senti subir pelo nariz aquele cheiro que, em dias especiais, vem directo do mar e parece uma mistela de nortada, sal e algas. A minha mãe disse:
“Olhem só este cheiro a maresia! Faz-me sempre lembrar quando era menina e ia para a Barrinha de Esmoriz... Dizem que tem muito iodo!”
E como eu me detivesse uns metros mais abaixo, a fazer umas festas no cão amarelado, ela espicaçou-me:
“Vá, anda, olha que a maré vai estar vasa...”
E a minha irmã Clarinha, que tem de repetir tudo o que se disse, acrescentou:
“Anda, olha que a maré vai estar vasa...”
Demorámos imenso tempo de casa à praia, dá-se mesmo conta disso aos fins de semana quando vamos no carro do meu pai e é um instante. A pé, temos de descer a rua toda, chegar à avenida marginal, virar à direita e percorrer toda aquela extensão de passeio até à praia dos Beijinhos, que é a penúltima antes da praia Azul e do farol da Boa-Nova.
A minha mãe tinha razão e a maré está completamente vasa, o mar anda lá ao fundo, tão longe e misturado no nevoeiro que praticamente só se ouve. Deixaram-me ir para as pocinhas das rochas com a condição de ter muito cuidado e prometer que não molhava as mangas da camisola, tenho de a levar vestida pois ainda está frio para ir só de fato de banho. De qualquer modo, mandou a Maria estar por perto e ela fica ali na borda da água, sem fazer nada, a molhar os pés.
A maré vasa é o que eu gosto mais no mar, é quando se pode estar sossegado, apanhar estrelas do mar e bichos que não se esperam e ver as pocinhas com atenção; pode-se estar um dia inteiro só a ver o que há em duas ou três pocinhas, isto é, podia-se se depois a maré não começasse a encher! Há muitos tipos de pocinhas, umas são minúsculas outras enormes, umas rasas e outras fundas, umas quase só tem areia e água, outras têm tanta coisa como se fossem um mar inteiro. Destas, as melhores são as que estão mais no meio das rochas, já encostadas às últimas pedras antes do mar aberto. São as melhores, mas as que metem mais medo lá estar. De repente é como se o mundo todo desaparecesse e estivéssemos sozinhos com um mar que está ali a lamber as rochas todo ajuizado, mas que se pressente ser fundo e não acabar mais. Daqui, em pé, já só vejo até aos cotovelos da Maria.
De cócoras, com todo o cuidado, agarro-me com uma mão à ponta de uma rocha e espreito: em baixo, a uma distância mais curta do que a minha altura, começa o mar aberto. A água tem transparência na parte de cima, mas, se se olhar na vertical, fica rapidamente azul-escura e depois perde-se numa cor que parece negro mas nem é bem isso, é de ser tão sem pé. Quando bate na rocha e recua faz um ruído como se estivesse a chupar tudo, como um desentupidor gigantesco. Se não tivesse toda a cautela ou me desse a loucura de saltar, bastava um passo e tombava naquela água, morria. Dei um passo atrás, subi acima de uma rocha, olhei para trás e lá está a areia e a linha das barracas, às listas vermelhas e brancas, umas, às listas azuis e brancas, outras, também há verdes. Vejo a minha mãe lá muito ao fundo, percebo que é ela pois tem aquele chapéu esquisito e a minha irmã pequenina sentada no colo. Quanto à Maria, continua ali a chapinhar na borda da água, a olhar para o mar como se dali pudesse aparecer alguma coisa que lhe sirva! Podia afogar-me mil vezes que ela nem dava conta e o meu pai despedia-a num abrir e fechar de olhos!
Nesta rotação, quando baixei de novo os olhos, topei com uma poça maravilhosa, daquelas como gosto: funda, mas não que não tenha pé se entrar nela; sem areia, por estar longe do areal e o mar que a alimenta ser tão fundo que já não a consegue cuspir àquela altura; para além disso tem uma fenda na rocha, exposta ao sol, quase a rasar a linha de água. Sei bem que aquilo deve estar cheio de caranguejos, embora, de momento, não veja nenhum. Pudera, sentiram-me chegar, estão escondidos lá ao fundo, na sombra, à espera que me vá. Em total silêncio pousei o baldinho ao meu lado, abri o canivete e tirei o espelho do bolso: vou fazer incidir luz de sol concentrada na fenda da rocha até os pôr a ferver de calor e os obrigar a sair; prevejo uma boa caçada. Mas eles não se intimidam facilmente, a fenda é profunda e o canivete é curto, não vou arriscar os dedos nas pinças deles... Se, ao menos, tivesse aqui uma cana ou um arame... De súbito, vejo uma sombra escorregar da parede para o fundo da poça! Foi uma coisa rápida, tão camuflada, que fiquei na dúvida se terá sido uma nuvem que projectou sombra na água. Viro o pescoço, olho o céu por cima de mim: o nevoeiro evaporou-se, não há uma única nuvem, e o azul do céu é tão intenso e puro que o sinto entrar em mim pelo ar que me enche o peito e me torna leve, tal se os meus ossos tivessem virado pneumáticos como o das gaivotas que planam lá longe.
Quanto à sombra, por exclusão de partes, só pode ser um polvo e a minha sorte nunca foi tanta.  

33. Uma pálida sombra

Era a última manhã desse mês de Agosto em Leça da Palmeira e seria também, embora nenhum de nós  o soubesse ainda, a última vez que alugávamos casa de praia em Leça. No Agosto seguinte, explicava a minha mãe à D. Gumercinda, que na barraca ao lado da nossa reflectia sobre o ponto de cruz:
“Talvez tentemos o Algarve, dizem que as praias são maravilhosas e a temperatura da água do mar um caldo...”
A D. Gumercinda, esposa do Dr. Rufino, já ouvira falar de todas essas amenidades, mas, com os relatos do Algarve, chegara-lhe também o rumor de que os modos eram mais livres nas praias do Sul, cheias de estrangeiros do Norte da Europa, o que lhe causava temor na influência que poderiam ter sobre a Gracinha, a filha adolescente.
O dia amanhecera condizente com um último dia, uma despedida. Intermitente, a ronca bramia como um cão abandonado e uma camada de névoa, da cor de água de cal, recuava a custo em direcção ao mar, revelando o vulcânico soturno das rochas que ladeiam a minúscula baía da Praia dos Beijinhos. A girar, perdido na bruma, o sol palpitava, fraco, alumiando o horizonte de um azul anémico que mal sublinhava o contorno das nuvens que se esfiapavam no céu sob a nortada.
“Uma sombra do que foi!”, a minha mãe caracterizava o fim da época balnear à D. Albertina, que, encaixada numa cadeira de praia ao lado da cunhada, a D. Gumercinda, tricotava furiosamente, “já se sente o Outono no ar...”
Sentado na areia, dois metros à frente da minha barraca para sublinhar que não tinha nada a ver com aquela gente, eu cobria os pés com punhados de areia fina, enquanto esperava, numa disposição saturnina, que chegassem as raparigas das barracas da ala direita da praia.
Verão de 1967, no número um dos tops está a canção “A Whiter Shade of Pale”, dos Procol Harum. Acabara de completar 14 anos, mal podia fazer a barba por falta de espaço para mover a lâmina entre as colinas de acne, e passara a ser-me vedado andar nos baloiços. Conhecera esse choque no Verão anterior quando, em Viseu, correra alegremente para a roda de cavalinhos de madeira do parque infantil, um local amigo em frente ao Hotel Grão Vasco. Mal dera lanço à roda e pusera em frenesi duas miudecas que vegetavam nos assentos, um guarda enxotou-me com uma pronúncia a frigir de sshs:
“Estáss a asssustar asss meninasss. Não achass que já éss demasiado matulão para isto?”
Agora, na Praia dos Beijinhos, onde não havia guardas nem nenhum cartaz afixado com o limite “12 anos”, não queria passar por humilhação semelhante. Segurava-me e limitava-me a olhar de lado o baloiço vazio, que continuava a chamar por mim no doce balanço habitual.
Entretanto, as raparigas tinham chegado. As barracas delas estavam agora atravancadas por um frenesi de cestos, roupões, toalhas e sapatos espalhados. Assisti, em alerta súbito e com o coração a entupir-me a garganta, à pala frontal de uma das barracas a ser baixada: era o momento de elas vestirem os fatos de banho... Mas nada, elas calafetavam as frestas com todo o cuidado e já saíam cá para fora completamente artilhadas!
Começávamos por nos reunir em frente às barracas delas, muito mais do que às nossas, e ficávamos ali a jogar ao prego. Depois, à medida que as mães, as tias ou as empregadas se iam esquecendo de nós, íamos deslizando para a parte de trás das barracas, um corredor sombrio onde a areia estava sempre húmida e o ar cheirava vagamente a urina, pois era onde se iam aliviar os aflitos que não tinham tempo ou disposição para se deslocar uns metros até ao quarto-de-banho oficial da praia. Mas, apesar destes inconvenientes, o local era recoberto de vantagens: escapávamos por momentos ao controlo e coscuvilhice dos adultos, podíamos nós espreitar e controlar o que se passava na praia (escavando a areia e levantando um pouco do pano das traseiras da barraca) e, até, pelo mesmo método, assaltar as provisões de comida guardadas num canto ao fundo da barraca. 
Mas, por muito que nos esforçássemos por tentar uma vida autónoma dos adultos, as nossas tentativas eram sistematicamente rebentadas pela rede que,  parecendo observar o mar, se entretinha com o que se passava em terra.
“Sabes que andei no colégio com a tia e a mãe da tua amiguinha...?”, esclareceu a minha mãe mal eu me aproximei da barraca para esperar a mulher que vendia os bolos e se aproximava pelo areal.
“Qual amiguinha? Não tenho amiguinha nenhuma!”
“Oh, retorquiu ela numa simplicidade odiosa, “aquela lourinha engraçadinha com quem estiveste a manhã inteira a jogar o prego...”
Cabisbaixo, ficava por ali sentado, a verter punhados de areia nos tornozelos, olhando os pés como se fossem o fundo de uma ampulheta. Ao lado, a minha mãe, enquanto recebia da Clarinha o porta-moedas para pagar os bolos à vendedeira, comentava para a D. Gumercinda:
“De quem eu era mesmo amiga, era da tia dela, que andava na minha sala. A mãe, era dois anos mais nova, andava noutra turma, via-a mas nunca tive grande intimidade... Quem andava também no Colégio era uma prima direita delas, que morava em S. Mamede Infesta, uma beldade – metia as primas num chinelo. Olhe, estive anos e anos sem a ver, mas encontrei-a outro dia na Casa Tamegão, a escolher uma cafeteira italiana de café. Coitada, até me fez impressão: está um caco, uma pálida sombra do que era!”  

34. Entrar pelo cano

Na cidade do Porto parece ser um pré-requisito à felicidade as pessoas morarem perto umas das outras ou, até, em cima umas das outras.
As minhas duas irmãs moram no mesmo prédio, uma no quarto-direito e a outra, para não imitar demasiado a mais velha, no terceiro-esquerdo. As minhas amigas, e irmãs, Pais que, por acaso, casaram com dois irmãos, moram no mesmo prédio onde, também por acaso, foi morar um amigo do grupo de quando todos tínhamos vinte anos e o tempo não existia. A minha prima Gabi, por acaso prima direita das referidas Pais e enviada pela vida para o degredo de Braga (uns longínquos 45 km do Porto), suspira ao dizer que o que gostava mesmo era de habitar uma grande casa onde residisse toda a gente de que gosta: as irmãs, os maridos e os filhos respectivos, os amigos, etc. Mas, o que é mais grave, é que esta loucura colectiva parece vir de trás...
No dealbar dos anos 50 do século XX, o meu avô Heitor mandou construir duas moradias geminadas em frente ao palacete que construiu para si próprio numa pacata zona residencial. O casal Zaida e Heitor tinham três filhos, mas só foi necessário construir duas casas, pois a minha tia Teresa, apesar de casada e com filhos, já morava em casa dos pais por onde, aliás, ficou provisoriamente até tudo se transformar em poeira cerca de 50 anos depois. Para uma dessas novas casas geminadas foram morar os meus tios e os meus primos e, para a outra, nós, isto é os meus pais, as minhas duas irmãs e eu. Resumindo: toda a família nuclear morava num raio de atravessar a rua, o que tornava o Natal muito prático e corresponde, mais coisa menos coisa, ao sonho da Gabi.
A minha casa mais antiga era cópia exacta da casa mais antiga dos meus primos: disposição dos quartos, salas, lançar das escadas, da claraboia; cozinha, quintal... Minto!, no terreiro para onde dava a porta da cozinha da nossa casa havia uma olaia, onde construímos uma casa, e no da casa dos meus tios havia um chorão de ramos pingões que não servia para nada. Tirando isso, eram completamente iguais, construídas tão ao mesmo tempo, com o mesmo plano e com os mesmos materiais que até havia uma funcionalidade siamesa que devia ser partilhada por ambas as casas sob risco de morte por seca ou, pelo menos, de abjeção por sujidade. Refiro-me ao cano.
Neste cano corria a água que ia abastecer os tanques de lavar roupa de ambas as casas e que se situavam, em espelho e apenas separados por meio-muro, a uns vinte metros da porta das cozinhas. Bebendo directamente do abastecimento camarário, o cano iniciava o trajecto atravessando os alicerces e depois, já mais próximo da luz do sol, entranhado no muro que separava as duas casas, indo terminar-se, como uma serpente de chumbo com duas bocas, numa torneira sobre cada um dos tanques. Mas como gerir em harmonia um cano que serve duas famílias e a hipótese de se querer lavar roupa a horas desencontradas?
Felizmente alguém tinha pensado nisso e, na primeira caseta, os operários que construíram as casas deixaram um tijolo por colocar na parede que separava a nossa primeira caseta da primeira caseta da casa dos meus tios. Nesse buraco, somente do comprimento e da altura de um tijolo, o cano estava à mostra e sobre ele havia um manípulo que, rodado para um lado, dava água ao nosso tanque e, rodado para o outro, vertia água no tanque dos meus primos.
Quis o destino que esse buraco e esse manípulo de metal viessem a ter uma outra funcionalidade, esta para além do sonho mais louco do construtor das moradias geminadas. Esse buraco tornou-se o principal canal de comunicação entre as duas casas e a expressão “vai chamar a tua tia ao cano” era tão natural nas nossas vidas como o ir para a mesa ou o ir à porta atender o toque do carteiro.
“Tomásia, por favor vá ao cano e diga à D. Olinda que preciso falar com ela...”,
dizia a minha mãe à criada, como se não houvesse telefone ou não fosse possível conversar frente a frente no sítio em que o muro que separava os quintais dava aos adultos pela cintura. Mas não, ninguém usava os telefones ou se lembrava, sequer, de falar de janela para janela. Ia-se à caseta, uma arrecadação anexa à porta da cozinha onde se guardavam vassouras, baldes e outros utensílios com cabo como ancinhos e enxadas, soltava-se o manípulo da rosca onde estava encaixado e batia-se com ele no cano até que alguém ouvisse as vibrações do lado de lá. 
Estabelecido o contacto, a minha mãe e a minha tia Olinda, cunhadas amigas muito conversantes, dialogavam horas em pé, dobradas, de modo a conseguirem ver uma nesga da cara uma da outra através do buraco no cano, e parecendo-se, na pose, com as figuras de pescoços distorcidos das pinturas modernistas.
Não recordo, para além da incumbência de ir chamar alguém ao cano para proveito de um adulto, o ter usado o cano em proveito próprio. Acho que éramos considerados demasiado pequenos e irresponsáveis para termos usofruto de tal tecnologia.

35. Corações ao alto

Como provavelmente não estará lembrado, recordo que o propósito desta rubrica Vou-te Contar é o de discorrer sobre casas onde vivi e, por casas não serem nada sem gente, sobre as pessoas que lhe davam vida.
Passados, que são, 35 episódios sinto que ainda mal saí do sítio, apanho-me a saltar de casa em casa e a única certeza é a de que ainda não gastei palavras sobre uma divisão que teve importante papel na minha adolescência e, suponho, na  adolescência de milhões de outros figurantes por esse mundo fora. Refiro-me à garagem.
Em Portugal, antigamente, havia-as, fundamentalmente, de dois tipos: a garagem de prédio e a garagem de moradia, sendo a primeira, de longe, a preferida dos jovens por razões que me proponho explicar nas linhas que se avizinham.
Quer numas quer noutras se guardavam automóveis e/ou se arrumavam trastes ou bens que, embora preciosos – como a lenha ou as batatas – se queriam fora do tropeço habitual da família.
Fonte habitual de indiferença ou temor durante a infância, a garagem lucrava, de repente, um novo olhar, um novo valor, logo que as vozes se aflautavam, o acne reinava e os espelhos ganhavam profundidade. E, para falar apenas do que sei, no Porto, durante os anos 60, as garagens entraram violentamente na moda e não havia Sábado que não se passasse alguma coisa nalguma delas.
As festas de garagem podiam acontecer Sexta à noite, Sábado todo o dia e Domingo à tarde, embora Sábado fosse o seu dia de reinar, pois ao Domingo tendiam a ser acontecimentos algo mortiços e à sexta, embora prenunciassem iniciativas particularmente excitantes (festas de aniversário com comida; festas de Carnaval), eram fenómeno raro.
Em termos de amenidade e bem-estar exterior, as festas convocadas para garagens de moradia eram asseguradamente de melhor qualidade. Espaço circulante bem limpo e arrumado, enfeites frequentes, a possibilidade de deixar casacos e de frequentar o quarto de banho no andar de cima, as festas de garagem de moradia tinham um brilho que às outras não chegava, mas tudo isso se pagava bem caro no que se refere àquilo que mais interessava aos usuários: intimidade à média-luz.
Pois que, nessas garagens de vivenda, bastando descer as escadas, o recinto podia ser intensamente frequentado (às vezes até em permanência!) por adultos e as luzes manter-se fixas numa intensidade cruel, não sendo fácil chegar ao elementar gesto de desatarraxar uma lâmpada ou de as esbater com papel celofane de cor lúbrica como o vermelho, o azul ou o amarelo.
Estas pesadas desvantagens explicarão, decerto, o motivo pelo qual todos preferíamos as mais cruentas festas de garagem de prédio, que decorriam em cubículos abafadiços, sem ligação directa com as casas respectivas e sendo algumas situadas em lugar tão recôndito que permitiam que uma qualquer rapariga ou rapaz mais ousados conseguissem organizar e manter uma em funcionamento toda a tarde sem que os pais notassem! Nesta liberdade, o problema da iluminação era facilmente solucionado, antes de mais porque, geralmente, só havia uma lâmpada para desatarraxar ou velar, ficando o espaço mergulhado num atraente estado de penumbra apenas maculado pela incipiente luminosidade coada por algum tijolo de vidro esverdinhado ou furinhos de respiradouro. Ah! que doces crimes contra a integridade se cometeram nessas garagens de prédio.
Pessoalmente falando, frequentei quantas pude entre os meus treze e dezassete anos, antes de a realidade adulta me arrastar para as quermesses, os magustos, os bailes de queima-das-fitas, as matinés dançantes das universidades e outros aglomerados de tipo industrial.
Não me perguntem como se processava o alastramento da divulgação da existência de uma festa de garagem, é um mistério como isso funcionava tão bem numa época pré-telemóvel, pré-facebook, pré-tudo o que não fosse os bilhetinhos e o bichanar durante as aulas. A minha prima Nunu, de quem tenho falado por aqui em abundância, era uma peça-chave na informação do menu para cada fim de semana e, por isso, eu e os meus amigos mais chegados lhe éramos gratos, todos lucrando com essa partilha de conhecimento, incluindo ela, que podia usar de poderosa dialéctica perante a minha relutante tia Olinda:
“Claro que é gente de bem, mãe! E, para além disso, vou e venho com o Pedro!”
Mas, apesar desta combinada aparência, nem sempre íamos às mesmas festas de garagem pois, às vezes, eram tão abundantes na cidade que tínhamos de nos dividir segundo os nossos complexos interesses mais imediatos.
Sábado, três e meia da tarde, o Renato e o Alexandre vieram ter a minha casa, preparamo-nos para uma festa de garagem (de moradia, infelizmente) ali perto da Arca d’Água, zona próxima da casa dos meus pais. Chegaram ambos trazidos pelos respectivos pais, cada um com o seu saco plástico muito bem enroladinho. Ao portão, a minha mãe e nós os três adeusamos para os pais do Renato, o último a chegar, pais ei-los afastados muito contentes no seu automóvel pois deixaram o filho em seguras mãos.
“Vamos estudar todo o dia, mãe”, explicara o Alexandre à sua exigente mãe, “depois – mais ao fim da tarde – é que vamos dar uma voltinha por ali perto, a pé. Podes confirmar com a D. Manuela...”
E a minha mãe, microscopicamente manipulada por mim nas últimas 48 horas, confirmava razoavelmente o cenário ao telefone, enquanto eu controlava a evolução dos acontecimentos debruçado do cimo das escadas.
Ultrapassada esta etapa, íamos vestir-nos para o meu quarto. Para além do fato-de-banho, eles traziam geralmente no saco uma camisa, um lenço ou uma gravata florida que os pais não lhe permitiam usar no dia-a-dia, mas, no entanto, acessório importante ao visual geral. Nessa tarde, eu próprio ia usar um colorido lenço de seda da minha mãe que evocava muito decentemente a echarpe que vira, numa foto do Beatles Monthly Magazine, o John Lennon usar no ashram da Índia.
O Alexandre está um pouco nervoso. É a primeira vez que vai levar fato-de-banho e não sabe bem a rotina da coisa, designadamente se o veste por baixo ou por cima das cuecas.
“Claro que é por baixo, está-se mesmo a ver!”, digo-lhe: “Já viste o que era elas poderem sentir que estás de fato-de-banho num Sábado à tarde de Fevereiro?!”
Vermelho como um tomate, o Alexandre encaixa-se no fato de banho, às listas verticais amarelas e negras, e em, seguida, enfia as cuecas, as quais deixam por cobrir uma imensa extensão da licra dura do tecido, tudo isto sob o desdenhoso olhar dos seus dois maiores amigos.
“Estou bem?”, pergunta, inseguro.
O Renato e eu partimo-nos a rir, tanto que passam alguns minutos até lhe conseguirmos explicar o erro.
“Tens de a pôr ao alto, anormal”, explica o Renato, “de outro modo quando te entesares, e aposto que vai ser logo com a primeira, elas dão logo conta!”
Não sei onde ou como ou com quem aprendemos estes rituais de conduta pré-festa de garagem, mas eles integravam um código que pretendia ser de delicadeza para com as raparigas que nos esperavam do lado de lá da pista de dança e a quem (achávamos nós sem sombra para dúvida) era muito chato estar a fazer sentir as crescentes variações do nosso diâmetro emocional.
Desta conduta cavalheiresca fazia igualmente parte a escala rotativa, discretamente combinada já no local, para ir buscar a patinha feia que havia sempre nas festas e que era considerado indecente deixar sentada mais do que duas danças seguidas. Todas as raparigas tinham de dançar! Assim, por muito bem que me estivesse a correr um processo de engate e podendo mesmo ser perigoso interrompê-lo em fase pouco consolidada, tinha de cumprir a minha escala e, se o esquecesse, algum dos outros estaria atento e far-mo-ia recordar sem piedade.
“Porra, pá, troca comigo, por favor! Agora que já estava orientar-me e cravei uma música do Isaac Hayes!”
E lá ficava eu, durante os mais de dez minutos daquele slow portentoso, a fazer rodar um coiro intransponível que, à falta de melhor, se ia atracando a mim; não me restando alternativa que a de, ao menos, tentar manter contacto com a minha preferida através de olhares intensos lançados por cima do ombro dos ossos ou da banha do ofício.
Depois de nos pentearmos cuidadosamente, de esticar ao máximo o cabelo sobre as orelhas, de criar uma melena sobre a testa (o Alexandre usou mesmo o revirador de pestanas da minha irmã Clarinha), descemos silenciosamente as escadas em direção à Arca d´Água.
Como a minha mãe nos apanhou no hall, nos obrigou a lanchar e a ouvir umas tantas recomendações antes de sairmos, quando chegámos a festa já tinha começado, no gira discos o Otis Redding cantava o R-e-s-p-e-c-t, e a animação era imensa. 
Deixei-me ficar um pouco, encostado a uma parede, a ambientar-me e a reparar, os olhos brilhantes de maravilhamento, como pareciam outras algumas daquelas gajas que víamos todos os dias à saída do liceu. E porém... Hoje em dia, pesado de experiência e sabedoria, sou capaz de compreender que a maior parte do milagre se devia a uma fraca iluminação, contornos de lápis de sombra nos olhos, rímel nas pestanas, cabelos amorosamente escorridos por demoradas permanentes; por blusas esticadas, entaladas em cinturas estranguladas por saias dois números abaixo. Mas, apesar do Fevereiro invernoso, como tudo aquilo as transmutava em fofas piscinas onde só apetecia mergulhar, assim nós o pudéssemos, assim nós o soubéssemos.

36. O mistério das agendas pretas

Quando, logo após a sua morte, fomos obrigados, por circunstâncias legais, a mexer nas coisas do nosso pai, encontrei, numa das gavetas da sua escrivaninha, as agendas que usava para apontar os afazeres da vida diária. Estas agendas cobriam os anos entre 1949 e 2007, o ano da sua morte e, a uma primeira vista, todas pareciam ser do mesmo modelo: pequenas agendas de 10 cm de altura por 7 de largura, isto é, ocupando à justa a palma de uma mão, concebidas para caber no mais pequeno dos bolsos de um casaco ou de umas calças.
Como não eram de utilidade prática imediata e tapavam, como um revestimento de ladrilhos, os documentos que se acumulavam sob elas na gaveta, amontoei-as, sem grandes escrúpulos e literalmente às mãos cheias – pois eram mais de meia centena – num dos compartimentos da estante do escritório. Logo se veria o que fazer com elas. 
Quase três anos depois, numa tarde abrasadora de Julho, dei comigo a dispô-las sobre a mesa da sala de jantar da casa do meu pai, casa a quem tinham sido escancardas portas e janelas para que eu aí passasse uns dias de férias, longe de mofos e sombras tristes.
Sem um propósito demasiado consciente comecei a agrupá-las pelas seis décadas a que se referiam e, ia a tarefa pela metade, dei-me conta que, no monte geral, havia duas agendas que, por serem um tanto maiores, destoavam do tamanho monotonamente uniforme de todas as outras. Eram ambas de capa preta, uma delas, a maior e mais espessa, com o ar esbarrondado de objecto que foi muito manuseado. Na parte inferior da capa, uns números desbotados pareciam indicar o ano de 1935, mas o último algarismo estava de tal modo sumido que a abri para confirmar o ano. Ao fazê-lo, um pequeno pedaço de papel mata-borrão cor-de- rosa tombou sobre a mesa, revelando o intricado padrão tecido pelas manchas do excesso de tinta absorvidas ao longo desse ano. Com ele, aterrando mais longe por ser muito fino, um pedacinho de papel onde se dispunham, manuscritas, aquilo que, supus, seriam as classificações obtidas na disciplina de Ciencias de uma série de indivíduos: Barbosa, Caria, Franklim, Matos, Serrano, Paiva, Fonseca, Pereira, e Ribeiro.
A agenda era, efectivamente, de 1935 e, num folheio rápido, verifiquei que estava densamente povoada de anotações. A outra agenda, melhor conservada e menos preenchida, dizia respeito a 1937, isto é, aos dias em que o meu pai tinha entre 20 e 21 anos de idade. Não havia, em todo o lote, mais agendas desta época da vida dele e a agenda cronologicamente mais próxima destas duas referia-se ao ano de 1949, ano em que nasceu a minha irmã mais velha.
Sendo o meu pai um tipo metódico, que começou a registar os seus dias tão precocemente, seria de supor que tivesse continuado a fazer registos ao longo dos restantes anos da década de 30 e durante todos os nove anos da década de 40 que precederam o nascimento da Clarinha. Assim sendo, quais as razões que o teriam levado, em detrimento de possíveis outras, a conservar aquelas duas agendas tão díspares, em cronologia e aparência, das outras todas?
No final da tarde, o calor ganhara uma intensidade absurda e, durante a noite, chegou mesmo a trovejar, uma tempestade seca que se acabou em mais calor ainda. Deitado na cama que fora a do meu pai, sem conseguir dormir por causa de um ar pesado como chumbo onde os meus pulmões abriam caminho à força, a meio da noite desci ao rés-do-chão para preparar água com gelo e umas pingas de limão. Na mesa da sala de jantar, imóveis no silêncio nocturno, destacadas das pilhas ordenadas, as agendas pretas chamaram por mim. Tomei-as e levei-as para cima. Quando, finalmente, apaguei a luz o quarto não retornou à escuridão que pensava esperar-me, mas uma luz acinzentada infiltrava-se pelos interstícios dos estores e um som de água corrente chegava do jardim. Levantei-me e espreitei: no quintal, as grandes folhas estacadas dos feijoeiros tremeluziam sob um jacto transparente, mas, da minha atalaia, não conseguia ver quem as regava.
  
37. Desembrulha, amor!

Manhã gloriosa de S. João. Decidimos ir ao horto tomar o pequeno-almoço e, na empreitada, comprar um manjerico para abrilhantar e aromatizar a sala de estar da casa do meu pai, anémica por integrar agora os aposentos tristonhos de uma casa fechada vai para três anos.
O Horto da Quinta do Tronco, aqui ao fundo da rua, aproveitou uma velha casa agrícola, conhecida outrora como a Quinta do Bravo, e tornou-se num enorme hangar de cobertura amovível e paredes de granito, repleto de plantas ornamentais, bonsais, flores para todos os gostos e ocasiões, velas, incensos; vasos, floreiras, pires e outros tipos de recipiente que alegram o espaço com a sua cor cremosa de tijolo e o seu buraquinho redondo, com jeito de umbigo, por onde se escoarão os excessos de rega de donas de casa pressurosas.
O dono do Horto é um tipo vivaço e, como se não bastasse tanta variedade, onde até se encontra, para venda, uma pontezinha arqueada de madeira, como aquelas que se veem, mirando os nenúfares, nos quadros impressionistas, integrou na área as amenidades de um café com esplanada e tornou todo o recinto wireless, de modo que é vulgar encontrar por ali gente nova a teclar em computadores ou obsessivamente agarrada aos monitores.
Pedi um croissant com fiambre, aquecido, um Sumol de ananás – nada como começar uma manhã são-joanina de forma dieteticamente incorrecta. A empregada é uma moçoila despachada, de t-shirt, rabo-de-cavalo e calças de fato de treino, acoplados a um olhar transbordante de curiosidade desafiadora e evidente gosto pelo convívio. Quando se afasta, após pousar na mesa de madeira às ripas e bancos corridos, o pequeno-almoço e o cartão electrónico com a despesa, reparo que ostenta no tornozelo direito, logo acima do rebordo dos ténis, uma tatuagem representando a clássica composição da caveira com tíbias entrecruzadas, a que foi aposta um lacinho cor de rosa no crânio ossudo.
Terminada a refeição propriamente dita, A. e eu vegetámos mais um pouco pela mesa, onde o fundo dos cinzeiros – ao invés de água – contém uma camadinha de terra fresca, beberricando um café antes de nos decidirmos levantar para ir escolher, entre muitos da espécie, o nosso manjerico.  
Eis-nos ao balcão da caixa. Do outro lado, a empregada limpa cuidadosamente restos de terra agarrados ao vaso e prepara-se para acondicionar a planta num saco de plástico com asas.
“Demorou muito, fazer aquela sua tatuagem da caveira?”, pergunto à rapariga.
“Gostou?”, pergunta ela de imediato, olhando-me com olhos curiosos. “Não, não demorou muito, doeu mas foi como o caraças...”
“É natural”, respondi, “é uma zona quase só pele e osso...”
“E também tem umas estrelinhas engraçadas aí no ombro...”, junta-se A. à conversa.
“Também tenho uma com os gatinhos da minha filha, e outra com o meu nome em português e em árabe...”, acrescentou ela, enquanto dá um jeito com a tesoura aos contornos da bandeirola que enterrou no vaso e onde reza uma quadra alusiva à Quadra.
“Mas a melhor é uma que eu tenho aqui”, continuou ela. E, dando-nos as costas, levantou a t-shirt generosamente, expondo os lombos e permitindo-nos a visão, na fronteira do cós descaído das calças do fato de treino, de um vistoso laço, tatuado em azul-negro e cor-de-rosa-choque no fundo das costas.
“Bem, esse laço aí ninguém vai conseguir desapertar...”, comentei, entre o divertido e o surpreendido.
“Pois não”, diz ela, que, entretanto, já se recompôs e está a conferir o nosso troco, “se não tinha-lhe mandado tatuar por baixo DESEMBRULHA, AMOR”.
Caro ouvinte, um último conselho antes de me ir em busca de sardinhas e pimentos: não se meta nunca com uma gaja do Porto, vai ficar sempre a ganhar!

38. Um peso no peito

Com regularidade, ainda adolescente, acompanhava o meu pai num domicilio a casa dela, na rua Brito Capelo, em Matosinhos, e ficava aflito quando, ao entrarmos no carro após a consulta, o meu pai desabafava:
“Esta mulher tem o coração desfeito, não sei como ainda está viva...”
Depois, com o passar do tempo e o ouvir repetido desta sentença, fui-me tranquilizando perante este paradoxo de uma pessoa poder ter, medicamente, o coração desfeito e continuar a viver como se nada fosse.
A minha tia Lelé (nascida Celeste Campos Monteiro) era irmã do meu avô materno e casada com o meu tio João Castro Guimarães, um personagem de antologia. Morreu cedo, esse meu tio e a gente, olhando para ele sem saber quem era, tomava-o por um lord inglês: era mais alto do que o comum dos portugueses, tinha uns penetrantes e algo alucinados olhos azuis, o cabelo fino penteado para trás com brilhantina, usava laço e tinha um humor extravagante.
“Celeste, vim agora da baixa, a rua de Sá da Bandeira está em chamas...”
E meia-hora após a minha tia, aflita de procurar ouvir notícias no rádio e tentar localizar parentes que pudessem ter sido chamuscados na tragédia, ele confessava, calmamente:
“Então foste acreditar nisso, mulher?! Não se vê logo que é um disparate?”
Mas a minha tia Lelé era uma pessoa crédula e suponho que estes abanões permanentes no seu quotidiano e o facto de ter sempre vivido uma vida economicamente apertada pelo estado de permanente festejo do meu tio, a imbuíram de uma serenidade bem-humorada ante os altos e baixos da existência:
“Então, tia Celeste”, perguntava a minha mãe, “onde vai de férias este ano?”
“Olha, filha, vou para trezentos e cinquenta escudos”, respondia ela na sua voz rouca e de trémulo peculiar, traçando o seu raio de acção veraneante.
O meu tio João, acelerado na sua queda pela paixão pelo vinho tinto, deixou-a viúva relativamente cedo. Com o seu ar de gentleman, o meu tio João, que assinava o ponto na Mabor, passava a maior parte do seu muito tempo livre nas tascas de Matosinhos, na companhia de marinheiros perdidos em terra e de outros frequentadores desses locais. Não se lhe conhecia, dos jantares de Natal ou das festas de Carnaval em casa dos meus avós, outro gosto que não fosse o vinho e desprezava bebidas aristocráticas como o champagne, o porto, ou o whisky.
Viúva, a tia Lelé continuou a morar na sua vivenda da rua Brito Capelo, uma rua de paralelo riscada pelos trilhos do eléctrico. A casa dela era não muito longe das confeitarias que abasteciam de bolos e cremes as praias de Leça da Palmeira. Tendo ficado só, passou a aparecer muito mais pelas casas das sobrinhas, a dos meus pais, a da minha tia Titi, onde passava temporadas, sempre sem pesar, mantendo o bom-humor sereno e levemente auto-irónico ao serviço de ser apreciada por todos.
Fisicamente, era uma pessoa desengraçada e nós, os sobrinhos-netos, pusemos-lhe a alcunha de “leão da montanha”, animal que, nos anos 60 e 70, era um personagem dos filmes de banda-desenhada que passavam na TV: um felino esgrouviado, desajeitado, de juba curta e bigodes eriçados. Dela, todos recordámos o seu buço rijo e os seus beijos picantes, a voz de cana-rachada estafada, e a moeda de 50 escudos que nos oferecia, embrulhada em papel branco de pontas torcidas, como se fosse um rebuçado. Ficou a imagem do carinho descomprometido que nos despertava, não sei bem porquê, talvez, por ser um exemplo silencioso de perseverança em tempo de náufrago no deserto.
Já grande o suficiente para ter carta de condução, lembro de, à noite, no final do dia que passava semanalmente em casa dos meus pais, a ir levar à sua solitária e fria casa de Brito Capelo, uma casa que exalava o mofo plangente dos objectos antigos e tinha o reflexo sem préstimo dos lugares em que o vazio vai tomando conta de tudo e empurrando, como num cerco silencioso, o único habitante para um espaço cada vez mais restrito.
“Não precisam de se maçar”, dizia, a mim e à minha recente mulher, quando saíamos do carro para a ajudar a subir as escadas, a transportar os tupperwares com os restos do jantar que levara da nossa casa e lhe serviriam de refeição nos próximos dias. Mas nós insistíamos, ajudavamo-la mesmo a deitar-se na cama ainda desfeita, fechávamos a porta à saída, fazíamos o caminho de regresso ao Porto imersos no silêncio cismático que provoca observar a velhice abandonada.
Quando morreu, a tia Lelé deixou-me uma balança de cozinha, daquelas antigas, de estrutura de ferro forjado, com dois pratos de cobre, e um bloco de madeira onde vivem os respectivos pesos, incrustados por ordem decrescente de tamanho. Pouco depois, eu e a João fomos, por um ano e uns pozes, pais adoptivos de uma miudinha de três anos cuja brincadeira favorita era brincar, sentada no tapete do seu quarto, com esses pesos antigos e fazer deles uma família: o kg podia ser o avô, o meio-kg a avó, os 250 gramas o pai e por aí fora... Enquanto os dispunha alinhados pelo tapete, a Teresinha ia conversando com eles e estabelecendo as regras de um mundo que estava a começar a construir sobre os despojos de outro mundo que se finara em silêncio, sem um queixume.

39. Alvoroço no galinheiro

Lembro que foi comprada numa casa de artigos de caça e pesca ao fundo da Rua de Sá da Bandeira, vizinha do teatro, e foi mais ou menos na altura em que surgiu o álbum branco dos Beatles, o que nos coloca em 1968 e me atribui 15 anos de idade. Recordo, também, a terminante e imediata proibição em lhe mexer.
Mas como podia um tipo resistir a uma tão bela espingarda, macia de coronha e de coice, poderosa no seu tiro de pressão e, multifunções, dotada de uma maravilhosa mira telescópica, amovível, que eu retirava do suporte no dorso da espingarda e usava como engenho amplificador, sobretudo para ver de perto raparigas que estavam fora do alcance e cuja silhueta (um olho arregalado, o outro fechado), queimava a minha retina ansiosa pela proximidade reverberante e muda que o improvisado telescópio proporcionava.
O meu pai guardava a pressão de ar atrás da porta do escritório, em posição estratégica, pois a porta do escritório ficava vizinha da porta de entrada principal da nossa casa. Em tentativa de assalto, ou assim, a defesa já estava ali à mão de semear, a caixa de metal, repleta de uns chumbos que lembravam minúsculas rolhas de garrafa de champagne, escondida na primeira gaveta da estante, dissimulada entre as amostras de medicamentos.
E de cada vez que aparecia em minha casa um amigo que ainda não conhecia o portento, eu desinquietava-a de trás da porta, metia uns chumbos no bolso e subíamos, em silêncio e atitude predadora, até ao meu quarto, o qual ficava defronte ao galinheiro da Dona Aida Mexia, a minha vizinha do lado de lá da rua.
Fechada a porta à chave, descida a persiana da janela até restar apenas uma fresta por onde se pudesse enfiar a ponta do cano, colocado o convidado em posição de atalaia, eu focava a mira telescópica até ter bem enquadrada no centro da cruz, formada pelo cruzamento de duas linhas negras verticais e duas horizontais, uma das aves que picava tranquilamente o solo do galinheiro distante. Depois era só premir o gatilho e ficar, num acesso irreprimível de riso, a ver a galinha acometida de uma agitação física e de um cacarejar angustiado inusitado que faziam com que a Dona Aida, agachada num canteiro do jardim ocupada com dálias e zínias, se levantasse, intrigada, a tentar compreender o que teria perturbado a paz das suas galinhas a um grau semelhando uma súbita possessão demoníaca. Nunca o descobriu, coitada, a não ser que, e é pura especulação, a sua dentadura tenha algum dia tido um encontro inesperado com um chumbo de caça em animal de criação doméstica...
Para além da pressão de ar, o meu pai possuía, mas essa não precisava de advertência – metia respeito por si, uma Franchi italiana de dois canos. Essa transportava-me directamente à minha infância, à quinta perto de Viseu onde passava o último longo mês do Verão e aos tempos em que o meu pai gostava de caçar. Menino, algumas vezes o acompanhei, mais aos meus tios caçadores e respectivos perdigueiros, em sortidas que se iniciavam em manhãs de chão de caruma ainda encharcado pelo relento da noite, o estalar cauteloso dos ramos de pinheiro sob os pés, a súbita suspensão do movimento dos cães, a cauda espetada e a atenção fixada numa silenciosa moita de giestas.
Estafado, os bolsos atulhados de cartuchos vazios, regressava a casa a meio da tarde, eu próprio saboreando a aura de vitória que representavam aquelas duas lebres, a meia-dúzia de perdizes batendo contra a coxa dos caçadores; aqueles lindíssimos animais, parados para sempre no tempo, que jaziam enfileirados na mesa da cozinha, agitando as cozinheiras, e que, nos próximos dias, seriam celebrados em mais do que uma refeição. E, para mim, a assunção maior do mistério seria, ao sentir numa dentada num peito estufado de perdiz uma presença estranha, meter a mão à boca e encarar entre os dedos aquela diminuta esfera de metal que fazia a diferença entre a vida e a morte.   
Com o tempo, o meu pai deixou de caçar, a caçadeira quedou-se no guarda-vestidos do seu quarto, também ela especada à espera que alguma sombra suspeita aparecesse a perturbar o nosso pacífico quintal do Porto.
Quando o meu pai morreu, nem se pôs a questão que as duas armas fossem para outra pessoa que não eu. Mais, a minha irmã mais nova confessou-me, horrorizada que, no revolver póstumo das gavetas, tinham encontrado, entre lenços e peúgas, um revolver Browning do tempo da segunda-guerra, impecavelmente conservado e carregado com seis balas!
Todo esse arsenal jaz agora no meu quarto, cada uma das espingardas encostada ao seu canto de parede, o revólver (com o carregador fora da arma) enfiado numa gaveta. Que vou eu fazer com tudo isto?! Há um ano atrás, perante a promessa de uma intrusão feminina ao meu quarto, as pobres espingardas tiveram de recolher à sombra dos armários, pois não queria assustar a minha visita nem transmitir-lhe a sensação que fora parar ao covil de um qualquer serial killer, monstro nórdico ou similar.
Por lá ficaram, sem se queixar, até que um dia as redescobri, picadas de um acne ferrugento e entristecidas no seu esquecimento. Agora, olham-me de novo dos seus ângulos de parede e esperam, neutras ou inquietantes, conforme as estações, que eu lhes dê um destino ou as encarregue de um desfecho.  

40. Concerto para clarinete e mu

Não sei que pensar disto, mas associo duas das minhas tias a animais, quadrúpedes! Ainda por cima, tias que partilham o mesmo nome, um nome de forte carga estratosférica e simbólica.
Falei aqui muito recentemente (Vou-te Contar: 38. Um peso no peito) da minha tia Celeste, a de Matosinhos, tia-avó materna, conhecida entre alguns dos sobrinhos por ‘leão-da-montanha’, dada a sua semelhança com esse simpático bicho. Hoje, proponho-me falar de outra Celeste, não que esta fosse parecida com nenhum animal conhecido, mas porque a recordo como responsável por... Bem, comecemos do princípio.
O meu pai tinha uma série interminável de irmãs, o que fazia com que eu tivesse uma profusão de tias naquele lado da família: Céu, Clara, Celeste, Amélia, Otília, Ilda, ... (falta-me uma, porra, mas agora não me lembro). Estas tias e respectivas famílias moravam na Beira-alta, num epicentro de cerca de 20 km em redor de Viseu.
Todos os anos da minha infância e primeira adolescência, por várias vezes ao longo do ano, demandávamos aquelas paragens, o que incluía uma provação de quase três horas para percorrer uma esquálida centena de km, sofridos e vomitados nas curvas do vale do Vouga, uma estrada de tal modo contrariando o conceito de linha recta que se encontrava apetrechada com um tipo de sinal de trânsito que não voltei a ver em nenhum outro lugar (salvo na serra algarvia do fim dos anos 60) representado por um triângulo onde, em baixo-relevo, estavam pintados sobre o imaculado da cal três zzz em asfalto negro e que, ao contrário do que cheguei a pensar face à monotonia da viagem, não alertava para o risco de sonolência mas para a interminável sucessão de curvas e contracurvas entre Sever do Vouga e Viseu.
A minha mãe, coitada, fazia de tudo para distrair o nosso sistema labiríntico de equilíbrio (que hoje se sabe ser especialmente sensível durante a infância), desde contar-nos histórias ou desafiar-nos a enumerar os automóveis que passavam em sentido oposto e cuja matrícula começava por P.
Quanto ao meu pai, coitado, esse tinha de encostar à berma de dez em dez km para que, à vez, um de nós saísse a correr e vomitasse aquela idílica paisagem em que o rio, por entre uma massa de verdes, serpenteava lá ao fundo a caminho de Aveiro.
Sabíamos que já não estávamos demasiado longe de chegar ao destino quando a paciência dos adultos se esgotara por completo e todos os cuidados com as crianças no banco de trás eram substituídas por um:
“Se voltas a pedir para vomitar, levas...”
E eu, olhando fixamente em frente, respirando ruidosamente pelas narinas o ar puro que entrava pela frincha da janela, tentava abstrair-me do cheiro a novo dos estofos do Citroën boca-de-sapo e imaginar que não estava em movimento.
Nos primórdios desta viagens, antes de a casa que fora dos meus avós paternos sofrer profundas obras e ficar pronta a receber os tiques de comodidade de uma família urbana, ficávamos geralmente alojados em casa da minha tia Céu, que, em Viseu, residia não muito distante do recinto da Feira de S. Mateus e da estátua do Viriato. A minha tia Céu era a irmã mais velha do meu pai, uma espécie de figura maternal (dado que o meu pai ficou órfão de mãe pelos oito ou nove anos), e casada com o meu tio Augusto, cujo mister principal era ser director de uma escola primária mas que recordo muito mais por ter um belo clarinete de madeira negra e ser regente de uma filarmónica. No quintal desses meus tios havia sempre cães perdigueiros, latadas com videiras e, se acontecia ser Setembro, toda a casa recendia com o odor das maçãs bravo-de-Esmolfe que se amontoavam nas tábuas dos salões vazios do sótão. Se, pelo contrário, chegávamos nas férias do Natal, então o que melhor recordo é o frio árctico de Viseu na passagem do ano e a manobra, lenta e dolorosa, do estender dos pés nus pela aspereza gelada de lençóis de linho, rigidamente engomadas, até alcançar o oásis da botija de grés, envolta em flanela, do fundo da cama. O deitar, o levantar, eram os momentos mais custosos destes invernos em que quase congelei sentado na tampa da sanita de um quarto de banho, imenso como um banho-público, onde os canos gemiam de torpor e as torneiras sopravam vapor cada vez que se tentava invocar a água quente.
Este casal de Viseu, que nos recebia de coração nas mãos e cuja doçura de modos era tão envolvente como a cor atijolada da marmelada da minha tinha Céu, não possuía, no entanto, muitos animais de quinta, pois, apesar da casa ter quintal, viviam também numa cidade. Podíamos apontar galinhas, patos, perus, alguns garnisés para enfeite, o perdigueiro que referi, talvez um gato ou dois; seguramente alguns ratos, rebolando-se felizes no sótão perante o maná de maçãs. Bicharada a sério havia-a em Oliveira de Barreiros, em casa da minha tia Clara – que tinha um burro e tudo – e em Queirã, a aldeia do meu pai no sopé do Caramulo, em casa da minha tia Celeste e do seu marido, o meu tio Antoninho Figueiral.
Aí sim, e sucedia que, por temperamento, a tia Celeste tinha especial prazer em mostrar os seus bichos ao curioso sobrinhito do Porto que, mal ele batia à porteira de madeira da sua casa, o recebia com um sonoro:
“Ó Pedrito! Então vieste ver dos tios?! Entra, entra, vai subindo que já vamos ver os animais todos...”,
dizia ela numa interpelação onde as vogais, em tons agudos, eram vincadas num chamamento cantado que muito me intrigavam face ao estranho modo de se exprimir daquela gente.
E depois de me enfiar um ladrilho de marmelada na boca, lá ia eu com ela dar a volta pela criação, com a qual se relacionava como se fossem animais pensantes, poupando as frases e os pensamentos articulados para os mamíferos superiores, e usando interjeições, onde abundavam os pi-pi-pi e os trriu-trriu, para as aves que se atropelavam em torno das suas pernas enquanto ela distribuía milho e ração feita com couve segada, água quente e farinha. Depois das galinhas, dos patos e dos perús, passávamos às coelheiras e, em seguida, aos porcos. Propositadamente, deixava sempre o momento de maior suspense, no sentido de maravilhamento junto com algum receio, para o fim da visita.
“Não tenhas medo, que ela não te faz mal”, tranquilizava-me, intuindo o receio no modo como me colava atrás dela ao chegarmos àquela porta de madeira, fechada por uma tramela de madeira exterior. E isso era a primeira coisa que me intrigava: aquela porta só podia ser aberta pelo lado de fora, pormenor que, em vez de me tranquilizar, amplificava o mistério.
O compartimento, que ela agora abria, ficava sob a casa, dava para o enorme espaço murado entre o portão de entrada e a fachada de granito da habitação, recinto cujo chão estava atapetado de mato cortado, tojo e giesta, o que tornava o andar fofo e silencioso. Também inaudível, pelo mesmo atapetamento, era a aproximação do habitante que morava dentro daquele anexo, mergulhado em completa escuridão, pois quem precisa de luz se não tem de ler e se consegue encontrar no escuro aquilo de que precisa?
Surgida do nada, de nenhum local na escuridão que eu conseguisse precisar, em completo silêncio apesar do seu tamanho, ali estava, encostada à minha pessoa, olhando-me de uns enormes, pestanudos e castanhos olhos, uma vaca, que respondia ao nome de “Malhada”, “Castanha” ou “Mimosa”, conforme os desenhos ou o temperamento.
A tia Celeste, encantada com o meu assombro, intimava-me a fazer-lhe uma festa, que "ela não faz mal, é muito mansa, muito meiga...”
E eu, como se tocasse em algo sagrado, com o poder de me aniquilar a qualquer instante, atrevia-me a pousar a mão entre aquelas narinas que, escavadas entre uma pele rosada e sardenta, sopravam ar quente; ousava, ao fim de  minutos de confiança, passar a mão pelo lombo macio e acetinado da Mimosa. Nesse tropel de emoções e sensações, sentia, lá muito ao fundo, sem saber muito bem porquê, que estava a entrar em contacto com um ser que, apesar da sua diferença de forma, da sua estranheza de modos, pertencia a uma qualquer família próxima da minha, uma noção de parentesco onde não teria lugar uma lagartixa ou, mesmo, uma galinha.
Então, ajudava a tia Celeste a atirar braçadas de erva tenra para a manjedoura e ficávamos ambos a vê-la retouçar naquilo, enquanto cada um dos três ruminava para os respectivos botões.

41. Bodas de diamante

Os meus pais casaram-se na Capelinha das Aparições, em Fátima. Isto passou-se em 1949, pouco mais de trinta anos depois de a Virgem ter feito a sua azinhagem ali mesmo, pelo que o local estava ainda cheio de magnetismo.
Ao casamento assistiram os pais da noiva e, como o noivo já não tinha pais que se vissem, a irmã mais velha do meu pai e o respectivo marido. Não houve boda e os recém-casados seguiram directamente para uma lua de mel no Algarve.
A versão oficial, vendida nas décadas seguintes, para uma tal esqualidez de cerimónia devia-se ao facto de o noivo não ter pais vivos, mas eu nunca comprei muito a teoria. Apesar de órfão, o meu pai tinha dez irmãos e parentela suficiente para encher uma igreja e ensombrar os dourados e cristais das salas do casarão dos meus avós no Porto.
Repare-se na cara de toda a gente na fotografia: o preto e branco não explica o congelado de tanta sisudez, à qual apenas escapam o sorriso deslavado da minha mãe e o ar confiante da expressão do meu tio Augusto. Pelo contrário, a disposição do meu avô Heitor não se poderia querer mais saturnina. Aquilo não era, deduzo, coisa que lhe agradasse.
A minha mãe, repare-se, era, à época, uma jovem princesa, filha de banqueiro, com todas as prendas e predicados necessários a um bom casamento, era até bonita e falava francês. E o que lhe calhou na rifa foi um tipo dez anos mais velho, um pelintra chegado de um cu de judas onde andava tudo descalço e as ruas eram atapetados com tojo e merda de quadrúpede; um fiancé que para se acabar de licenciar em Medicina tivera de andar a esgravatar nas minas de volfrâmio durante a segunda grande guerra. Praticamente sem ter onde cair morto e, mais grave ainda, sem antecedentes que se vissem ou se pudessem encontrar nas páginas de alguma obra heráldica da extensa biblioteca da casa dos meus avós maternos, na pavimentada cidade do Porto. O noivo tinha, no entanto, duas qualidades que talvez não brilhassem muito aos olhos de pai cauteloso do meu avô Heitor: inteligência e uma força de vontade de ferro, como as décadas seguintes não cansariam de demonstrar.
Sem mãe desde a infância, com um pai que o ia visitar ao seminário sobretudo para encomendar paletes de missas pelas almas dos fiéis defuntos, o meu pai teve de crescer depressa e praticamente sozinho. Quem, perante os seus olhos, funcionou como figura materna foi a minha tia Céu, a irmã mais velha que lhe serviu de madrinha no casamento. Essa minha tia morava em Viseu com o marido, professor primário de profissão mas músico de coração. O meu tio Augusto era um daqueles seres de alma pura, a sua simples presença física despertava um respeito carinhoso em quem estava por perto e os meus pais eram-lhe gratos e devotados.
Nos anos 50, era tão pequeno que nem disso me lembro, a filha mais velha deles, a minha prima Natalinha, viveu na nossa casa mais antiga enquanto se licenciava em Matemáticas. Foi durante o curso que conheceu na universidade aquele que viria a ser o seu marido para uma vida inteira, um engenheiro electrotécnico de porte reservado e perfil aristocrático e que, por feliz coincidência, se chamava também Augusto como o futuro sogro.
De modo que se pode dizer que a minha prima Natalinha e o meu primo Augusto casaram da nossa casa e, logo, rápido, a vida levou-os para morar em Lisboa, onde fizeram a vida. Das primeira visitas que lhes fizemos já me lembro vagamente: moravam num pequeno apartamento em Queluz e uma vez por ano ou assim lá íamos nós ao Jardim Zoológico, ver os Jerónimos e os Paços de Sintra, ficando alojados em casa da Natalinha, pois amor com amor se pagava.
Depois, a vida dos meus pais melhorou economicamente, a da Natalinha e do Augusto também; eles tiveram três filhos e mudaram-se para um solarengo e enorme andar nos Olivais e nós, nas visitas seguintes a Lisboa, passámos a ficar instalados no hotel Liz, ali na avenida da Liberdade. Nesses dias, Lisboa parecia-me muito mais moderna do que o Porto e era fascinado pelos hors d’ouvre das refeições no hotel e pelas fotografias a cores dos combinados que encimavam os balcões dos restaurantes lisboetas e que me apetecia experimentar todos, começando no n.º 1 (carne assada, ovo cozido, salada-russa e pickles), indo por ali fora até ao final da ementa plastificada.
Adolescente, quis aventurar-me pelo mundo e Lisboa era, aos catorze anos, o lugar mais longínquo e exótico a que me deixavam ir sozinho. Mas os meus desvarios diurnos eram sempre enquadrados por um regresso ao andar dos Olivais da Natalinha, onde tinha de regressar a uma hora que me permitisse estar sentado com eles à hora do jantar, olhando com um ar invisivelmente irónico as rezas que antecediam a sopa.
Ah, mas durante a tarde podia vaguear como quisesse pela cidade e percorria a avenida de Londres com o similar inebriamento que outrem pode sentir ao olhar as montras da 5.ª Avenida, em Nova York, e por aí comprei, na discoteca Sinfonia, as mãos trémulas de reverência, a minha cópia do recém-saído Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um disco ainda impossível de encontrar no Porto.
Não penso que a Natalinha e o Augusto, formatados na música italiana e francesa dos anos 50 dos seus tempos de namoro, apreciassem muito o destempero dos Beatles, mas nunca se queixaram dos decibéis ou de eu lhes ter gasto a agulha de diamante do gira-discos de tanto ter rodado o vinil na hospitalidade sulista do seu andar nos Olivais.   

42. Dá-me lume

O Augusto era da minha idade e filho do Alberto dos Olivais, um lavrador que morava ao cima da rua, mesmo ao lado do larguinho onde, em Queirã, ficava a capela da nossa família.
Este Alberto dos Olivais era homem que o meu pai respeitava e deste modo eu tinha carta branca para frequentar a sua casa, vagabundear livremente pelos campos e matas com o filho dele desde que prometesse não me aproximar de poços e das extintas bocas de minas do volfrâmio. O Augusto era o filho mais novo, o outro filho chamava-se Hermínio e havia também um rafeiro cruzado de perdigueiro, amarelado, que respondia ao chamamento de Raboto por lhe terem cortado a cauda, de modo que o bicho, quando me via chegar, mostrava o seu contentamento abanando o toco remanescente.
Em casa do Alberto dos Olivais tomei contacto com um estilo de vida  muito diferente do que estava habituado. Faz parte das minhas memórias mais vincadas um almoço em casa deles em que nós os cinco (pai, mãe, os dois irmãos e eu, o convidado) abancados a uma mesa nos achámos perante uma bacia de folha onde luzia, fumegante, um cozinhado de carne de porco, feijão e couves. Não havia pratos, cada um contava apenas com um garfo para picar o que tinha à sua frente. Recordo a leve sensação de repulsa inicial, misturada ao não saber como proceder em termos de etiqueta alimentar. No ganhar de coragem, atrasei-me um pouco, observei como os outros faziam e espetei o garfo no intervalo que me cabia naquela azáfama. Que bom, que fantasticamente saborosas aquelas tiras de entrecosto, de focinho e orelha de porco cozidas com feijão e couves, não mais voltei a comer igual. Não mais, também, o Augusto me voltou a encarar como quando éramos pequenos e fazíamos barquinhos com casca de pinheiro gentilmente escavada, chegou mesmo, para desgosto meu, a passar a tratar-me por “senhor doutor”; o tempo destrói toda a ilusão.
Com o Augusto, entre os dez e os doze anos, antes de começar a levar os meus próprios amigos urbanos para a casa de quinta que fora a dos meus avós paternos, aprendi muitas coisas: a caçar escorpiões e sardões; a fazer canas de pesca e a não-pescar nada na ribeira da Levada; a apanhar rãs e a soprar-lhes ar na cloaca com uma palhinha de modo a que não conseguissem mergulhar e fugir; a cagar no meio dos campos e a limpar o cu a folhas de videira; a fazer cachimbos com nós de cana seca e a atafulhá-los com barbas de milho, escondidos no meio dos milheirais, um fio acre de fumo branco denunciando a nossa presença. Só nunca consegui mover-me tão bem descalço como ele nem a dar palmadas no lombo das vacas com tanta descontração.
De tudo o que aprendi e partilhei com ele, o que relembro com mais nitidez são as nossas caçadas aos escorpiões, conhecidos como licranços ou alacraus na terra do meu pai. Ele sabia a técnica, eu lia coisas sobre esses artrópodes aracnídeos em livros da colecção Verbo e deste entrecruzamento entre teoria e prática cresceu a nossa sabedoria no assunto.
Setembro, o longo mês que passávamos na nossa casa de Queirã, era ainda um bom mês para escorpiões (Buthus occitanus), pois os dias eram quentes e soalheiros e os lacraus preferem o sol. Constroem as tocas, de entrada rectangular, ao contrário da circularidade preferida pela maior parte dos animais, debaixo de pedras batidas pelo sol, não se encontram escorpiões em locais húmidos e soturnos.
Caçávamo-los às horas de torreira pelas pedras que ladeavam o caminho que na Levada conduz à ribeira que, fresca e gorgolejante, atravessava sob a azenha e dividia a zona de pinheiral das terras de cultivo de milho e da plantação de choupos.
De cócoras, em frente a uma fenda rectangular escavada onde o pedregulho tocava o chão do caminho, pousávamos cuidadosamente o frasco de vidro, o pauzito descascado de pinheiro e o raminho de giesta, os únicos artefactos técnicos necessários ao aprisionamento daquele bravo animal que, apesar do tamanho diminuto (o comprimento de um dedo indicador), era tão temível no ataque que uma picadela sua bastava para liquidar animais pequenos e deixar a gemer de dor durante vários dias o adulto mais afoito e descuidado.
A primeira etapa da caçada consiste em virar a pedra sob a qual se poderá acoitar o escorpião e isso já exige alguma sabedoria, pois o acto deve ser praticado usando um pau ou um pé bem calçado. A imprudência de o tentar fazer enfiando os dedos próximos da base da pedra pode ser a morte do artista, pois, a existir ali um lacrau, ele estará tão tenso como nós perante o que o aguarda.
E era sempre com a garganta seca, o coração a martelar nos ouvidos, que virávamos o calhau e dávamos um preventivo salto atrás.
Descoberto, o animal avançava para fora da toca de rabo espetado no ar, na extremidade do qual, na ponta de uma ampola mais escura do que o amarelo torrada-com-manteiga do corpo, chispava, encurvado, o temível ferrão, pronto a dar uma estocada na primeira coisa que se chegasse. Ao mesmo tempo que assumia esta pose agressivamente defensiva, o lacrau tentava ir andando para outras paragens mais seguras e a coberto, pelo que era preciso ser rápido e começar por travar-lhe a fuga desde logo. Faziamo-lo usando a pauzito de pinheiro com que se comprimia levemente a cabeça de caranguejo do animal. Ele ali ficava, preso e furioso, tentando abocanhar o pau com as pinças e desferindo o ferrão na madeira. Entretanto, já eu, ou o Augusto, tinha laçado um nó corrediço na haste da giesta, argola na qual tentávamos aprisionar a cauda erecta do escorpião. Conseguido isto, mais fácil de escrever do que de fazer tal o trémulo que nos acometia, era só apertar o nó, suspender o animal no ar, metê-lo cuidadosamente no frasco e aferrolhar a tampa com um suspiro de alívio.
Então, e só então, era lícito e seguro olhar o bicho de perto, através da transparência segura da espessura do vidro.
Regressados a casa, subia as escadas a correr em direcção ao quarto de banho, enquanto o Augusto ficava acocorado no terreiro a vigiar a presa vitrificada. Mas o frasco de álcool etílico estava quase vazio, de tanto ser usado para embalsamar bicharada, e só nos restava a alternativa de encher a prisão de vidro com aguardente, produto conservante que havia às dezenas de litro na adega por baixo da casa.
E lá se ia o bicho desta para melhor, entre o emborrachado e o afogado, contorcendo-se no estertor, mas não tanto como aquele outro parente seu que, para tentarmos confirmar a teoria de que escorpião aprisionado em anel de fogo se suicida enterrando o ferrão em si próprio, morreu carbonizado ao tentar atravessar o círculo flamejante que eu e o Augusto laboriosamente tínhamos construído sob o olhar curioso e sadicamente divertido do meu pai que, por trás de nós, nos ia picando:
“Vejam lá onde põe as manápulas, se as encostam ao bicho quem fica a arder são vocês!”  

43. A mosca e o hipopótamo


Estou sentado, de pernas cruzadas, no tapete da sala da casa mais antiga. A porta que dá para o quintal está aberta, lá de fora chegam cantos de pássaros, uma luz amortecida de outono. Estou a ler o Tintim no Congo, numa parte de imenso suspense que tem a ver com um hipopótamo. Uma mosca pousou-me na perna, é a sexta vez que o faz nos últimos cinco minutos e é sempre a mesma mosca, sei porque a tenho controlado pelo canto do olho. Pousa-me na parte de coxa livre, entre a bainha da perna dos calções e o joelho, eu abano a perna, ela voa e pousa no abat-jour de metal em feitio de chapéu de chinês sob o qual a minha mãe mexe a agulha sem parança, como se regesse uma orquestra; volta à minha perna, sacudo-a, ela levanta voo e aterra no caixilho inferior do vidro da janela, fica ali a passear na massa de vidraceiro do rebordo e regressa à minha coxa, pousa sempre no mesmo pedaço de pele.
Agora estou preparado, encostei o Tintim devagar contra o colo, tenho o corpo teso, a atenção focada e a mão pronta, semifechada numa garra em forma de concha. Tem-me chateado tanto que não a vou esmagar logo com uma palmada; reservo-lhe outra sorte.
Pousou; deixo-a passarinhar um pouco pela pele, para que se convença que está segura. Lá está ela, toda contente, a esfregar a cabeça entre as patas, se eu fizesse o mesmo com a força com que ela o faz a minha cabeça decerto rolaria pelo chão.
Fíchetttt! Com um movimento rápido apanhei-a na concha da mão, ela zune lá dentro, aprisionada. Afasto, quase nada, dois dedos, de modo a criar um pequeno espaço: cai na esparrela, tenta escapar-se por ali. Agora está encravada, pinço-a com a outra mão. Arranco-lhe primeiro uma asa e depois a outra, a seguir ponho-a no chão de tacos encerados. Sem asas parece outro bicho, fica ali a andar sem rumo, meio aos bordos, pouco confortável na nova situação de animal terreno, à mercê de todos que lhe queiram mal. Agora, qualquer manada de formigas a pode cercar e arrastar para o formigueiro, qualquer gato lhe pode dar umas patadas e trincadelas; eu mesmo, a qualquer segundo que me apeteça, posso encher-me de a ver para ali a zunir e a rodar sobre si própria como uma estúpida e dar-lhe com o livro do Tintim, ou esmagá-la com a sola da sandália.
“Que foi?”, perguntou a minha mãe levantando a cabeça do tricot.
“Nada”, respondi, “era uma mosca a chatear...”
“Assim dás cabo do livro...”, disse ela, aproveitando logo para fazer a sua pedagogia livreira, “olha que os livros são o nosso melhor amigo...”
“Eu sei”, respondi abrindo o livro onde ia.


44. Retrato de senhoras com apontamento

Cochim, no sul da Índia, continua a ser a capital das especiarias que era no tempo em que descobrimos o caminho marítimo para lá, mas tornou-se também um destino turístico tão intenso como Goa e as suas ruas estão pejadas de lojas de souvenirs, o grosso delas parecendo uma filial do Gato Preto ou da Natura e vendendo a mesma fancaria mal alinhavada que se pode encontrar, a preço semelhante, na feira de Espinho.
Destoando deste panorama piolhoso, encontrei, na mesma rua onde fica a casa onde morou o Vasco da Gama, uma loja de velharias e de antiguidades com coisas verdadeiramente interessantes, onde fiz aquisições de que ainda gostarei daqui a vinte anos e em relação às quais não poderei afirmar, com aquele ar excitado do turista, que foram ao preço da chuva. Não, a vendedora do Tribal Art sabia o que tinha exposto nas prateleiras modestas da sua lojinha abafada e era uma rapariga tão requintadamente subtil que se limitava a responder às perguntas que lhe fazíamos sobre os produtos sem nunca pressionar a escolha, sem se fundir à nossa sombra e sem, perante uma hesitação do cliente, propor descontos. Uma pose verdadeiramente rara na Índia.
Um dos artigos que atraiu o meu olhar foi uma volumosa pilha de fotografias antigas, a preto e branco, a maior parte delas encaixilhadas em cartolina branca de bordo ondulado, algumas ostentando ainda o carimbo do fotógrafo, um produto idêntico ao que podiam ser fotografias antigas da Foto Beleza, despachadas para a Feira da Ladra por um arquivo a precisar de espaço para acolher material novo.
Embora no lote houvesse fotografias de uma equipa de ténis em 1939, dos funcionários da companhia de electricidade de Madras ou de uma turma de finalistas de um liceu em Bangalore, a parte de leão daquele monte consistia em retratos de família, fossem na sua versão solitária do bebé nu em cima de uma almofada, do jovem casal recém-casado, do velho casal de pose circunspecta, até à versão polifónica da família alargada, todos muito sérios e penteados, a criançada esgazeada sob o flash de magnésio do fotógrafo, como se fosse o fogo do demónio que se preparava para lhes roubar a alma.
Percorri lentamente todas aquelas fotografias, os dedos carregando-se da nostalgia que nos contagia ao folhear folhas mortas, instantes irrepetíveis, a cristalização de momentos únicos cujo significado se esboroou no esquecimento...
A primeira vez que entrei no Tribal Art, entre essas dezenas de fotos duas prenderam especialmente a minha atenção de comprador: uma delas representava um velho casal, a mulher em pé, o homem sentado numa severa cadeira de madeira, daquelas com braços e espaldar de trono. O marido, um homem escanzelado de olhos perfurantes, era uma figura impressionante e impressionante também era pensar o ter-se ele deixado fotografar, pois as suas orelhas, destacadas do crânio, tinham as pontas ratadas e nos dedos dos pés, descalços, bem como nos das mãos, era ausente a linha de recorte que torna um dedo completo – o homem devia ser um leproso, um leproso de classe média, em pose de patriarca, com acesso aos serviços de um fotógrafo, mas mesmo assim um tipo a deixar cair pedaços. Quanto à outra fotografia, consistia ela num retrato de grupo, cuidadosamente encenado, e mostrava um grupo de mulheres, todas sentadas, trajando saris de dia festivo e, das quinze do conjunto, apenas uma ousava um tímido sorriso. Nessa primeira visita à loja não comprei nenhuma delas, mas a sua presença ficou a reverberar-me na cabeça pelos dias seguintes, particularmente a do casal.
Deixámos Fort Kochi (é o nome actual de Cochim) de madrugada e na véspera passámos uma última vez na loja. A vendedora recebeu-nos com um aceno de reconhecimento, tendo perguntado, no seu modo muito doce e gentil, de que lonjura éramos provenientes e, como quem vê cumprir-se um destino, esboçou um sorriso discreto quando me viu aproximar da pilha de retratos e retomar o meu gesto pensativo de os desfolhar como quem consulta os arcanos de um tarot.
No final da consulta, lá estava eu a olhar para as duas fotografias da primeira visita (o casal do patriarca leproso; as senhoras de sari), tentando decidir qual das duas pediria para ser embrulhada, pois já decidira que levaria apenas uma. Acabei por pedir que me embrulhasse o retrato das mulheres, um pouco por exclusão de partes, por concluir que não me era confortável pensar em exibir, num país distante, as mazelas de um velho senhor desconhecido.
Regressado a Portugal, entretido naquela tarefa cativante que é desfazer malas e reencontrar o que trouxemos num cenário novo, no escolher do sítio onde doravante vão ficar, desembrulhei a minha fotografia do seu resguardo de papel de jornal e fita-cola. E, ao olhar para ela, descobri um detalhe de que não me apercebera, apesar de toda a atenção com que a estudara na Índia: a lápis, no canto inferior da moldura, estava registada, a lápis, uma data, muito plausivelmente, muito provavelmente, a data em que aquelas senhoras teriam sido fotografadas e que era o dia 20 de Julho do longínquo ano de 1976.
Por esses dias, nesse mesmo ano, eu fizera 23 anos, concluíra o curso de Medicina e decidira, como viagem de curso, viajar uns meses para a Índia. 


45. Não venhas tarde

Era um dia do início do Verão de 1976, uma hora avançada da tarde, quando eu, ao volante de um Fiat 128 azul-escuro, e ele, ao meu lado, atravessámos a cerca do Hospital de S. João com a finalidade de ir ver a classificação obtida no último exame, da última cadeira, que nos separava de um diploma de médico.
Nenhum de nós experimentava alguma espécie de apreensão quanto ao resultado, nem pela cabeça nos passava chumbar naquela disciplina. Mas o saber isso foi muito diferente do silêncio com que estacionámos o carro e nos dirigimos para a entrada de um dos pavilhões pré-fabricados que, na esteira da democratização do ensino universitário, começavam a juncar os amplos e frondosos jardins do Hospital, onde, aulas terminadas e pares de namorados desaparecidos da relva, os pássaros se entretinham ruidosamente a comemorar o fim do dia, alheios a quem passava. Mudos, observámos as nossas quase gémeas e excelentes classificações e, sem abrir o bico, regressámos ao carro. Aquela lista de nomes, dactilografada e assinada por um professor, significava, com a evidência de punhos cerrados, um facto incontornável: a partir desse momento, para todo o sempre, seríamos médicos; os seis anos de estudo tinham chegado ao fim e essa consciência vibrava na minha cabeça com a surdez de uma pedra ao bater no fundo de um poço.
Sentado ao volante do automóvel estacionado, olhando em frente, senti uma grande angústia tomar conta de mim e, mesmo sem olhar, pelo silêncio carregado como chumbo que emanava do banco ao lado, senti que o mesmo se passava com o meu amigo Juca.
“Agora é que estamos fodidos...”, desabafei, como se, encostado a uma parede de tijolo, anunciasse a vista do pelotão de execução.
“Vamos mas é embora daqui...”, rouquejou ele, com o incómodo característico a quem dá conta que se deixou ficar num cemitério após o anoitecer.
Acendi um cigarro, encaixei uma madeixa de cabelo, que me caía sobre os óculos, por trás da orelha, e arranquei dali.
Imperturbável, a tarde de Verão esbarrondava-se num poente e, Circunvalação abaixo, víamos tons de vermelho acumulando-se para os lados do mar.
“E agora, que fazemos?”, perguntei.
“Sei lá…”, sugeriu ele.
“Podíamos passar pelo Piolho, ver se está por lá alguém e, depois, ir jantar a qualquer lado...; que dizes? Mas primeiro tenho de passar por casa, prometi aos meus velhos que lhes dava notícias quando ficasse médico.”
“Tá bem”, concordou o Juca que não se importava tanto como eu de passar lá por casa, pois mantinha um oculto e muito respeitoso fraquito pela minha irmã mais nova.
À noite, durante o jantar, informei o Rui, que não se dera ainda ao trabalho de passar pela Faculdade, que passara na última cadeira, também era tão médico, como nós. Em resposta, disse apenas:
“Como é, sempre vamos?”
“Vamos, claro!”, respondi, sentindo um frémito no estômago.
Começámos, em volta do bolo de bolacha, a combinar alguns pormenores e decidimos que partiríamos apenas em Setembro, pois, sabíamos muito vagamente que as monções terminavam por essa altura e que a viagem seria melhor com clima seco.
“Vamos ter de fazer uma porradaria de vacinas..., lembrou ele, e recomendou: ”Vê se começas a tratar do graveto com o teu velho...”
“Isso não vai ser problema”, retorqui, “ele prometeu que, se me formasse sem chumbar nenhum ano, me oferecia uma viagem de curso onde eu quisesse...”
Pois, mas o que o meu pai nunca imaginou foi que a viagem de curso onde eu quisesse era uma jornada à Índia, ainda por cima por terra; um overland to India como estava então na moda. À imagem dos meus colegas de curso, vários deles filhos de colegas de consultório dele, o meu pai contava que eu pedisse fundos para uma passeata de semanas pela Itália, pela Suiça, pela Escandinávia, em termos de atrevimento máximo pelo Canadá, Estados Unidos... Assim, quando lhe apareci com a decisão de ir à Índia, a pé, e gastar nisso os cinco ou seis meses que me separavam do início da vida clínica, ele passou-se:
“Á Índia?! Por terra?! Tu sabes o que estás a dizer?! Já viste no mapa os países que terias de atravessar? Tens uma noção de onde aquilo é, de como aquilo é por aquelas bandas? Na maior parte desses lugares nem existe uma embaixada portuguesa!”
Com a irritante serenidade inconsciente da juventude assegurei-lhe que sim, que sabia muito bem onde em estava a meter, que cerca de nove mil km nada eram para mim; que o facto de o Afeganistão ser um covil de bandidos e o Paquistão estar, mais ou menos, em guerra civil não era coisa que perturbasse os nossos planos...”
O meu pai era um tipo que adorava História, assinava o Courier da Unesco, tinha um globo terrestre na estante do escritório, sabia bem como o mundo se movia em torno do seu eixo naquela segunda metade da década de setenta. No seu desespero por me dissuadir daquilo que julgava ser um capricho passageiro, cometeu um erro fatal: ao negar-me o apoio financeiro que teria o prazer de me dar se o meu destino fosse outro qualquer que não a Ásia foi como se proibisse o meu sonho. E quando eu lhe recordei a sua promessa, rematou:
“Dou-te exactamente o dinheiro com que se pode sair do país, nem mais nem menos!”
Estávamos nos anos em brasa da Revolução dos Cravos e, tentando estancar a hemorragia de capitais para o exterior, o Governo determinara como plafond máximo de exportação de divisas os 7 contos de réis (cerca de 35 euros), quantia que dava, à época, para ir passar uma semana rafada a Londres ou regressar de Paris com pouco mais do que um LP do Jacques Brel e uma torre Eifel dourada. Isto é, aquela generosidade oficial cortava-me totalmente as asas. Fiquei furioso e, antes de sair do escritório, atirei:
“Pois saiba que hei-de ir de qualquer maneira...”
“Oh, menino, não hás-de passar da Grécia”, ouvi-o ainda amaldiçoar-me.
No hall, dei com a minha mãe que, com cara de caso, rondava por ali como um abutre sobre a Torre do Silêncio de Bombaim.
“Que se passa?”
“Nada”, ladrei, “apenas gente que não cumpre o que prometeu...”. Azedo, informei ainda:
“Vou sair agora, não esperem por mim para jantar...”
“Não venhas muito tarde...”, suplicou, um ar de sexta-feira santa espraiando-se-lhe nas feições.
“Nunca se sabe...” respondi, misterioso, “talvez não volte mais...”.

46. De cócoras, ao sul de Atenas

A 14 de Fevereiro de 1968, os Beatles partiram para a Índia, em parte arrastados por George Harrison que, já há algum tempo, se interessava quer pela filosofia e religião hindu quer, mais especificamente, pela complexa e sofisticada música clássica indiana. Aliás, já em dois discos que antecederam essa viagem (Revolver, de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, 1967) se deixam ouvir os sons de tablas e cítaras.
Contas feitas, os Beatles permaneceram no país apenas dois meses, mas as canções que compuseram por lá (quase todo o duplo White Album, 1968) e a onda de influência que essa experiência teve  ainda hoje vibram pelo universo...
Eu que o diga, que acabei por ir lá parar na peugada disto tudo. Em Fevereiro de 1968 tinha catorze anos e não podia fazer mais do que babar-me de deslumbramento com os caminhos que os meus músicos preferidos exploravam, com os ecos, amplificados e distorcidos pelo mito, que nos chegavam à pasmacenta cidade do Porto. Mas oito anos volvidos, em 1976, já conseguia deixar crescer um bigode, já decidia por mim, mesmo que isso pudesse significar uma ruptura familiar.
Desde que me lembro, e por determinantes que não consigo precisar, o Oriente exerceu um tremendo fascínio sobre mim, a Índia em particular e, na infância, a minha imaginação reagia com fervor a cenários com encantadores de serpentes, cordas mágicas, faquires que acomodavam a sesta em camas de pregos, cadáveres boiando Ganges abaixo. Depois, vieram os anos 60 e explodiu um novo ressurgimento da Índia de que os Beatles, mas não só, foram uns dos principais culpados. É cíclica esta atracção do frenético Ocidente pelo imperturbável Oriente. No final do século XIX, início do século XX, houve febre semelhante e a pintura impressionista, por exemplo, é moldada na influência da pintura japonesa, assim como são impressionadas pelo oriente a literatura, a poesia, europeia e, apenas citando exemplos caseiros, podemos encontrar vestígios do velho fascínio em Pessoa, em Mário de Sá Carneiro... Eça de Q., esse, fez e desfez malas na poeira do Levante...
Assim, quando naquele escritório, me zanguei com o meu pai, não foi só por me sentir traído na promessa que ele fizera de me financiar uma viagem de fim de curso “onde quiseres”. Sentia-me também atrasado, sufocado, preso num cantinho onde os dias se repetiam quando tudo estava a acontecer lá fora! Porra, será que era assim tão difícil entender? E agora, que me preparava mentalmente para partir com a consciência de ir já agarrado à cauda do cometa, ainda tinha de me debater com detalhes destes?! Dinheiro?!
Para além dos sete contos (35 euros) do meu pai, o meu tio Mário oferecera-me, pelos meu recente sucesso académico, uma bela nota de 100 dólares, mas nada disso chegava. Para, digamos, três ou quatro meses de viagem, nada menos do que uns 50 contos (uns 250 euros). Bati à porta da família, mas como toda a gente estava a par do conflito e das minhas ideias loucas, levei delicadamente com os pés, as recusas irritantemente temperadas com um futurista “um dia ainda me hás-de agradecer”.
Acabei por conseguir o financiamento junto de alguns amigos que admiravam o projecto e o primeiro dinheiro que ganhei como médico foi para pagar essas prestações.
Em Setembro, um emocionado e restrito grupo de amigos e namoradas apreensivas foi despedir-se dos dois viajantes ao aeroporto de Lisboa. Como tínhamos pressa, decidíramos fazer o trajecto entre Portugal e Atenas de avião, assim não perderíamos tempo a atravessar a corriqueira Europa. Daí para a frente, sim, o caminho seria feito overland, a pé, usando os meios de transporte indígenas que surgissem: comboio, camionetas, boleia; camelo, se assim estivesse escrito! E lá fomos nós, crivados de vacinas e advertências, de mochila às costas, sem um mapa, uma máquina fotográfica, um plano concreto de viagem – destinação Índia, o resto logo se veria. O Rui, o meu determinado companheiro de viagem, ia à procura do Deus que não encontrava por cá, quanto a mim, as minhas finalidades eram mais confusas e Deus não me interessava por aí além... Acho que, em todo este empreendimento, fui apenas um turista exótico.
De Istambul, num café com vista para Santa Sofia, remexendo um chá demasiado açucarado, escrevi ao meu pai um postal a informar que já passara além da Grécia. Fiz o mesmo de outros locais cuja simples menção arrepiava quem ficara: do Irão, que dava então pelo bonito nome de Pérsia; de Kandahar, no Afeganistão, onde o Bin Laden ainda não se atrevera por não ter idade para isso; da instável e perigosa Lahore, no Paquistão.
A Índia, vista de perto, não nos cativou como estávamos à espera, de modo que, ao fim de uma semana a ver os abutres rodarem em círculo no céu de Nova Deli sobre a nossa camarata ao ar livre no terraço da Skyway Guest House, apanhámos um comboio a carvão para norte, uma viagem rondando os mil km por entre planícies infinitas, charcos de água onde boiavam búfalos e mergulhavam pássaros; vistas de mulheres, de vestes coloridas, serpenteando por estreitas veredas traçadas em campos de cereais sem fim à vista. Cobertos de fuligem, sentados sobre os sacos de serapilheira que atulhavam um camião de caixa aberta, subimos o vale de Kathmandou por entre rododendros em flor, a flor nacional do Nepal como percebi pela efígie nos maços de tabaco. Sim, a cidade dos mil templos, considerada muito perigosa, era outra coisa e estar ali era como estar com os pés assentes na terra e a cabeça já em pleno céu, um céu onde os cumes nevados eram mais altos do que as nuvens.  
Porém, o mais perigoso em todo o Oriente, foi, para nós, sempre o invisível, aquilo que nunca vimos, desde os percevejos que nos chupavam o sangue mal apagávamos a luz, às bactérias que, exuberantes de toxinas, nos dançavam nos intestinos. Do tempo total de viagem, uma fatia não despicienda foi passada, dobrados ou de cócoras, nas soturnas e imundas retretes asiáticas, revolvendo-nos em vómitos, desfazendo-nos em merda. E era ver-nos, nas breves paragens de ininterruptas viagens de autocarro que duravam dois ou três, a deixar apressadamente os veículos de cada vez que estes paravam nas horas que Meca recomenda aos crentes: os nossos companheiros estendiam os tapetes de reza e prostravam-se a Alá, os dois incréus de pele clara, acocorados a distância respeitosa, gemiam a deuses mais rasteiros...
Leves de espírito e muito mais de corpo, regressámos ao lar sem aviso, já o mês do Natal ameaçava e, recordo-o como se fosse ontem, entrei em casa dos meus pais à hora do meio-dia. A porta de trás estava entreaberta e, de costas, a minha mãe passava louça por água na banca da cozinha.
“Será que há almoço para mim?”, perguntei, e, na surpresa e brusquidão do movimento de se voltar, a minha mãe estilhaçou uma porcelana clara no mosaico preto e branco do chão da cozinha.


47. Trocado em miúdos




De todos os miúdos que, sentados ao redor do bispo, pasmam para a objectiva da máquina fotográfica com uma expressão entre o bovino ou o alucinado há um, único, que parece olhar para fora da fotografia como se afirmasse pela pose e pela expressão: o meu enquadramento não é este!
Reparem nele, no extremo esquerdo da fotografia, de pé, quando era de idade para estar no grupo dos sentados, encostado aos grandes e cabendo à justa na imagem como se chegara atrasado para a foto com a sua nova família. Aposto que a chapa foi tirada num Domingo, após a missa, e que o senhor bispo honrou muito os presentes ao posar com eles sob as esquálidas janelas do Seminário de Viseu. Durante a longa vida do meu pai nunca pus os olhos nesta fotografia ou soube, sequer, da sua existência. Topei com ela, objecto único dentro de uma pasta de elásticos, ao arrumar os despojos do seu escritório, mais de dois anos eram passados sobre a morte dele, e já todos os papéis prioritários tinham sido catalogados; todas as fotografias dos álbuns de família rememoradas e postas a resguardo da humidade de uma casa que se estava a fechar para o mundo. Ninguém sonhava que o meu pai tinha esta foto nem compreendia qual a razão por ser guardada longe dos olhares. Nunca vira uma imagem sua do tempo do seminário, o pouco que sabia da sua estadia de seis ou sete anos por lá contara-mo ele sem grande detalhe, de modo que foi um baque passar uns olhos surpresos por aquele rebanho sombrio e reconhecer de imediato a jovem ovelha tresmalhada em cuja face parecem dançar traços do meu sobrinho Gil, do meu filho. Mais ou menos no Verão em que encontrei a fotografia descobri duas agendas de que já por aqui falei (36. O mistério das agendas pretas) e cuja leitura me ajudou a compreender a direcção em que olharia o meu pai nesse Domingo a preto e branco de 1929 ou 1930 (teria ele os seus treze anos?), e em que só o seu olhar parece conseguir escapar ao que era o seu presente nessa manhã submersa. O meu pai ficou sem mãe ainda criança e o meu avô viu-se a braços com dez filhos pequenos, dos quais sete inúteis seres do sexo feminino, não despacháveis de imediato. Nesses dias, as opções de futuro de uma mulher passavam sempre, se não fosse um coiro intransponível ou tivesse dote, pelo casamento e as de um macho por escolher entre cara ou coroa, que é como quem dizia escolher a cara de um militar ou a tonsura de um padre. Encurralado, o meu avô paterno tratou logo de semear as raparigas mais novas pela casa das tias mais próximas e dois dos três rapazes foram endereçados ao seminário, um deles o meu pai. Cama, mesa, roupa lavada; educação garantida e futuro razoável; quanto à infância ainda por cumprir, o miúdo que a dobrasse e a metesse no saco... “Dia radioso! Aniversário natalício do Sr. Eduardo Serrano. Quantas belas recordações já não nos traz um relancear de olhos através destes 18 anos passados sobre a terra”, escrevia ele, na agenda de 1935, no dia dos seus 19 anos. Aniversário passado no seminário, sozinho, festejando-se a si próprio e desejando que o Verão chegasse depressa para desforrar na caça, numa pescaria. É, aliás, o mais vincado sentimento que deixa a leitura das páginas desse diário sucinto, registado em agenda comercial: a solidão de um rapaz que se foi fazendo sempre sozinho, pois o pai, nas visitas que faz a Viseu e aos seminário, é sobretudo para “encomendar 25 missas pela almas do Purgatório”. Com alegria, o meu pai regista as ocasiões em que passou por lá uma das irmãs mais velhas e lhe deixou um açafate de cerejas ou pêssegos e nunca, ao longo desse ano, uma única queixa ou sinal de desalento é passado a tinta. Seriam características que manteria ao longo da vida, as de não se queixar dela; as de observar e celebrar com deslumbramento a natureza lá fora: “7 de Março – O sol macio! O céu acrisolado como ainda não vi este ano. Houve missa cantada.” Mas, nas entrelinhas dos registos, aos olhos de quem teve uma infância e juventude menos agreste, impressiona a solidão gelada dos dias daquela agenda, de quem só percebi o motivo para ter sido conservada quase no final da leitura: foi nesse ano de 1935 que o meu pai ganhou coragem e, sem uma mãe que amaciasse o terreno do embate, comunicou ao meu avô que não queria seguir o destino que este lhe tinha traçado, que não queria ser padre e que eram suas intenções completar o ensino liceal cá fora e aprender inglês! Na agenda do ano de 1937 (a única outra que o meu pai conservou das suas década de juventude), é também cristalina a razão pela qual a guardou o resto da vida, aninhada na gaveta do meio da sua secretária na casa do Porto. Ao chegar cá fora, já longe do bispo e das sotainas negras, o meu pai apaixonou-se e vai registando o seu enlevo em inglês. Por quem? Ora, por quem! Leiam, Marco Aurélio, porra, está tudo nos clássicos! 


48. Telling Teles

 Repara agora no que tens debaixo dos olhos

                                  Marco Aurélio, Pensamentos

Passou já demasiada água sob a ponte e nada, para além do tédio, se passava nessas visitas que me prendesse a atenção e, então, as minhas memórias do assunto são perecíveis como os fragmentos de tecido com que Fifi presenteava os filhos do velho amigo.
Nos longas semanas do mês de Setembro que sempre passávamos na terra do meu pai, nos arredores de Viseu, havia um ritual que era preciso cumprir em cada ano: ir visitar os Correia Teles a Fornos de Algodres, uma terra na ponta de uma estrada cheia de curvas. A mulher, relembrou-mo a minha irmã Clara, chamava-se Alzira e o marido Alfredo, nome que assentava bem melhor à sua compleição e temperamento do que o Fifi pelo qual era tratado. Moravam numa casa à beira da estrada e o que melhor recordo do lugar é a sensação de atravessar uma tarde onde imperava um marasmo só interrompido pelo zunido sonolento de moscas barradas por vidraças de janelas. 
Fifi era um tipo esgalgado, aparecia-nos enfiado em fatos demasiado largos e com cortes que já não se usavam, o cabelo, a ficar ralo, esticado sobre a cabeça à custa de brilhantina, uns olhos, esverdeados como águas paradas, afundados na cara chupada de ulcerado gástrico. A mulher não destoava... 
Ao fim do dia, desfolhando no banco de trás do carro catálogos de amostras de tecido (Fifi era dono de uma fábrica), regressávamos aliviados a Queirã. Acho que até o meu pai, que era quem nos arrastava para aquilo, se sentia aliviado, tornando-se mais loquaz à medida que o nosso boca-de-sapo serpenteava em direcção a Viseu e Fornos de Algodres se esfumava na poeira.
Mas, enfim, o que a minha mãe nos explicava como justificação daquele massacre era que Fifi era amigo do nosso pai desde a sua juventude, desde os tempos em que ele andava no liceu. E eu e a Clarinha silenciávamos nesse espanto do nosso pai – de Fifi Teles! – ter alguma vez andado no liceu....
Graças aos sete anos que penou no seminário, o meu pai só ingressou no último ciclo do liceu já tarde, numa idade em que os alunos já se estão a passar para a universidade. A sensação de libertação que acompanha essa mudança para a vida civil é notória nas descrições que o meu pai regista no diário dos seus vinte anos, agenda que encontrei, depois da sua morte, camuflada no meio de todas as outras agendas que conservou, numa das gavetas da sua secretária.
Nessa agenda há algo que chama de imediato a atenção: muitas das entradas são redigidas em inglês, um inglês de neófito, algumas delas são até mistas: o texto mistura inglês e português numa mesma entrada! À medida que a percorremos a gente descobre o motivo: o meu pai usava o inglês como código, para proteger de olhos alheios (que de línguas estranhas só conheciam as mortas) aspectos mais íntimos da sua existência:
“I spoke three times to Amilosi.”
“I wrote to Amilosi.”
“I saw Amilosi today.”
E, precipitava-se o mês de Fevereiro para a primavera, de repente esse misterioso nome brota da agenda como trepadeira, sem percebermos de onde vem mas descobrindo muito rapidamente tratar-se de uma personagem feminina, e também que aquele “spoke” talvez refira telefonemas, pois quando estava ao vivo com ela o meu pai preferia o “saw” ou o mais específico e satisfatório “went to the cinema with Amilosi and sat down near her”.
No desconhecimento objectivo de quem será aquela misteriosa donzela, há, no entanto, algo na leitura que nos faz suspeitar de uma proximidade com um tal Teles, nome que o meu pai cita constantemente e com quem refere ter estado, ter saído, ter conversado...
“Fomos, eu o Teles e o Rogério Teles para lá da estação beber uma célebre garrafa de champanhe acompanhada de pastéis de Vouzela...”
Só em 6 de Maio o mistério nos é desvendado:
“Fui à festa da Senhora da Saúde onde prendi uma Mademoiselle, Maria da Luz Teles I love you.”
e ficámos a perceber que a misteriosa Amilosi é, para além de irmã do companheiro e amigo Alfredo Teles, uma rapariga solidária e generosa:
“I spoke to Amilosi who was no cravanço para os tuberculosos.”
A 12 de Maio, uma quarta-feira, o meu pai “asked her a photograph”, mas dessa fotografia, ou da simples informação sobre se o pedido foi correspondido, perdeu-se o rasto, assim como de Amilosi, uma vez que as raras entradas da agenda de 1937 após o Verão deixam de a referir de todo, como se com a chegada do Outono o vento tivesse começado a soprar noutra direcção. 


49. Aqui há gaja



Em 1968 as coisas corriam mal, muito mal, entre John Lennon e a então sua mulher, Cynthia Lennon. Há já dois anos que Yoko Ono, a japonesa com que John viria a casar, andava por ali a fazer estragos e, nesse mesmo ano, o casamento estourou de vez. 
Quem estava tremendamente amarfanhado com tudo isto era Julian Lennon, filho de John e Cynthia, na altura um menino com cinco anos de idade. Impressionado com a tristeza do miúdo, Paul McCartney escreveu uma canção inspirada na situação. Primeiro chamou-lhe “Hey Jules”, diminutivo de Julian, mas depois o título evoluiu para “Hey Jude”, a própria letra ganhou roupagem de história de amor e quem ouvia a canção sem mais informação, que era o nosso caso, ficava a cogitar:
“Aqui há gaja...”

             Hey Jude don't make it bad
             Take a sad song and make it better
             Remember to let her into your heart
             Then you can start to make it better
             Hey Jude don't be afraid
             You were made to go out and get her
             The minute you let her under your skin
             Then you begin to make it better
             And any time you feel the pain, Hey Jude, refrain
             Don't carry the world upon your shoulders
             For well you know that it's a fool who plays it cool
             By making his world a little colder
             Na na na na na

A canção, gravada pelos Beatles nos últimos dias do mês de Julho de 1968, estourou nas rádios no final de Agosto e eu gravei-a mesmo a tempo de a levar para a quinta do meu pai onde sempre passávamos os trinta dias do mês de Setembro.
Em Setembro de 1968 tinha uns recentes quinze anos e um gravador de fita Gründig que, provavelmente, não fora comprado para mim mas de que me apropriei com rapidez e ferocidade, de tal modo que nenhuma das minhas irmãs se lhe atreveria a tocar sem que eu as estraçalhasse por violação de propriedade alheia.
Era um belo gravador de duas pistas, num tempo em que não havia ainda sequer gravadores ou leitores de cassetes, aparelhos que também já não existem nos dias que correm. Um gravador de fita consistia num caixote, pesado, e na sua face superior espetavam-se dois pinos onde se enfiavam bobinas de plástico, uma delas preenchida por uma delgada fita castanha que ia correndo para a outra, vazia. Neste caminho a fita passava por um sistema complexo de carretos e magnetos e reproduzia a música que tinha sido previamente gravada. O meu Gründig tinha duas pistas, o que queria dizer que cada uma daquelas centenas de metro de fita podia ser gravada de um lado e do outro, bastava meter a fita ao contrário no aparelho! Horas e horas de música numa rodela com o tamanho de um prato de sobremesa… A felicidade proporcionada por aquele bichinho fiel e robusto. E imaginar que havia gravadores daqueles com quatro pistas à venda nas lojas da especialidade; saber que os Beatles tinham usado um de oito pistas na gravação do Hey Jude! Ó tempos de prodígios.
Nesse Verão arrastara comigo até Queirã o Renato e o Alexandre, os meus grandes amigos do liceu e dizer amigos é dizer muito pouco, pois numa dessas noites quentes firmámos um juramento de sangue, escrito com um alfinete embebido no sangue picado à polpa espremida dos nossos dedos e redigido num pedaço de papel que, depois de devidamente chamuscado nos cantos para conseguir um toque medieval, foi enterrado, numa caixa de charutos Cogetamae ao rondar da meia-noite, debaixo do castanheiro ao fundo do quintal. Sim, dizer amigos é dizê-lo por defeito, irmãos para sempre seria mais apropriado e ainda hoje o poderia semiprovar se não tivesse perdido a metade do mapa que me coube e onde constavam as coordenadas exactas do local de inumação.
Nesse Setembro, durante as quietas tardes de torreira, sentávamo-nos os três na frescura da sala de jantar que, graças às paredes com um metro de espessura, conservavam a sala num frescor de cave e aprisionavam-na numa paz de nave de igreja. No peitoril profundo de uma das janelas, a fita do Grundig, pachorrenta como um regato estival, serpenteava de bobina para bobina, e eu levantava-me de sete em sete minutos para manter o “Hey Jude” a tocar ininterruptamente.
Sentados em volta da mesa, ouvindo a canção e folheando aplicadamente revistas já lidas em busca de imagens e fundos interessantes, um de nós suspirava e comentava o poderoso som que jorrava das colunas incorporadas no gravador:
“É do caralhão, não sei como os gajos conseguem...”
“Pedro," pedia o Alexandre de tesoura no ar mal os na na na começavam a esbater-se no passado, "põe outra vez...”.
Legítimo proprietário do Gründig, corria a levantar-me para que o desprazer da música seguinte não irrompesse a perturbar o estado de espírito de profundo recolhimento em que aqueles na-na-na-na hipnóticos nos mergulhavam.
“Passa-me a cola”, requeria o Renato, que acabara de dobrar em formato de envelope mais uma página recortada.
Já não sei quem inventou a moda, mas assim que soubemos que as cartas chegavam ao destino e que “sim, os Correios não se importavam com isso” foi um furor com o artesanato dos envelopes caseiros, fabricados a partir de folhas de revistas que tivessem motivos e cores cativantes: bolas cor de rosa de anúncios de detergentes, pastagens verdes de reclames de iogurtes, nuvens azuis de publicidade a pensos higiénicos – que belas lombadas, que belos remetentes, tudo isso proporcionava. Nem mais um dos insípidos envelopes brancos de papelaria no marco do correio! Arrancada a página ao Paris Match, calculado o tamanho, vincadas as arestas, colados os cantos, era só enfiar as cartas lá dentro e escrever o nome das destinatárias em letra bem marcada.
Passámos grande parte desse Verão a produzir envelopes e a escrever cartas, a responder às cartas que recebíamos: cartas para namoradas, cartas para potenciais namoradas, cartas para irmãs ou primas que pudessem interceder ou fazer-nos chegar notícias sobre essas potenciais namoradas; cartas para aquelas raparigas que, por estarem verdes ou demasiado maduras, tratávamos de irmãs...
“Nunca o disse a ninguém, mas tu, para mim, és como uma irmã e isso é um feeling quase sagrado.”
A resposta chegou num envelope em que o meu nome e morada estavam escritos sobre o bojo azul-mentolado do corpo de uma garrafa de água mineral em que se lia Mon foie, connais pas:
“Era de mais se me passasses a tratar por sister, que dizes...?”
Para além disto, sobre que mais falávamos nós nessas cartas? Não faço ideia, não me lembro do que escrevia nem do que me respondiam elas naquela letra muito redonda, pontuada de bolas rechonchudas em cada i, os cantos livres do papel rematados com corações ou estrelinhas desenhados a caneta de feltro.
Todos os dias corríamos aos correios da aldeia, que funcionavam numa casa particular, onde éramos recebidos com grande pasmo e respeito (num par de dias dávamos cabo da provisão de selos do posto) e onde, em troca, nos entregavam o chorudo e colorido maço que esperava por nós. Depois, de regresso a casa do meu pai, atravessávamos em sentido oposto o terreiro do posto dos correios, fofo no seu atapetado de carqueja e estrume de vaca, onde picavam galinhas e fossava um leitão cor-de-rosa que, com um selo colado no lombo nacarado, daria um belo envelope.

                      50. Caldo verde



“Manuela, está um caldo!”
O meu pai, um rigoroso adepto da prevenção do choque térmico, fazia a sua abordagem ao mar de forma gradual. Progredia,  calmamente, até a água lhe dar pelo meio da coxa e aí se quedava por uns minutos, a mão direita em concha vertendo, como num auto-baptismo, progressivas colheradas de mar sobre os ombros que depois, tal como se estivesse a espalhar um creme bronzeador, distribuía pela pele dos braços, do peito, pelas zonas descobertas da careca.
Finalmente, quando se sentia termicamente apto, rodava sobre si mesmo de forma a encarar o areal e comunicava:
“Manuela, vem, a água está um caldo...”
Sentada sobre uma toalha, à sombra de um toldo, as mãos abraçando os joelhos flectidos, a minha mãe, algo envergonhada pelo entusiasmo sonoro do marido, erguia discretamente um indicador que abanava em negativa. Ela mantinha uma relação complicada com as águas de veraneio e, mesmo no tépido mar do Algarve, seria uma vitória conseguir convencê-la a aventurar-se, para além da cintura, às águas mais do que duas vezes por época balnear. E quando, pressionada pelos lamentos de toda a família, acedia a fazê-lo era vê-la mirando a benevolente piscina como se enfrentasse o cabo das Tormentas, olhando alarmada para o nível das águas que lhe davam pelo tornozelo como se a qualquer momento elas pudessem ganhar as profundezas da fossa do Mindanau, enquanto trinta metros mais à frente, com água pelo umbigo, o meu pai lhe assegurava:
“Há pé, há pé!”
Mas ela, malgrado os incentivos, a teia de conhecidos que flutuava na sua órbita, progredia num paralisado receio, os ombros tensos e os braços esticados ao longo do corpo, as palmas das mãos viradas para baixo como se pretendesse suster a suave ondulação, evitar os salpicos provocados pelas marradinhas da água contra a rebentação dos seus joelhos.
Agora, no meio do verde cintilante das águas, o meu pai desistiu e, com um mergulho satisfeito, entrega-se às águas, solitário. Deitado na areia, a uns metros da mala térmica que marca a fronteira da nossa zona no areal, penso se hei-de levantar-me e ir-lhe fazer companhia quando chega até mim o ruído surdo da ponta de metal de um guarda-sol ao ser espetado na areia e reparo nuns pés que, ao nível dos meus olhos, sacodem umas chinelas de praia. A família que chegou vem ainda vestida e uma rapariga desfralda à frente de uma outra uma toalha para que ela possa transmutar-se, resguardada, num biquíni. Rapidamente rolo sobre mim próprio, encaixo os quadris na areia quente, apoio o queixo sobre os braços cruzados e, camuflado atrás de uns olhos falsamente semicerrados, ajusto as miras telescópicas das minhas pupilas, esquecendo o pai na água, os leves remorsos por o deixar a sós com o oceano dissolvendo-se no ar da manhã, arrastados para longe enlaçados ao pregão do homem que se afasta anunciando batatas fritas.

Fotografia: Praia de Faro, 1969, fotógrafo desconhecido.



51. Retrato de família com risco


Quem terá riscado esta fotografia, que inconsciência terá produzido essa falta de respeito pelo passado? Parece seguro que foi uma criança, na idade em que já sabe que um lápis serve para aplicar em papel ou material que se pareça com papel, mas em que ainda não é capaz de produzir contornos identificáveis como olha um sololha o piu-piuolha a mamã... Quem teria sido e por onde andará hoje, disfarçada de adulto pelos corredores do mundo?
As crianças da foto, por seu lado, estão todas mortas, o tempo delas passou há muito. O tio Alberto, por exemplo, meu tio-avô, é a menina bochechuda que está sentada no colo da minha bisavó Emília e o seu ensimesmamento social era famoso na família, toda a gente esperando vê-lo aparecer apenas em dia de velório ou enterro... A esses, o tio Alberto e a mulher – a tia Maria, com o passar dos anos reconvertida de cozinheira em dona do galo velho – não falhavam.
Encostada ao ombro do pai (o meu bisavô José Figueirinhas) está a tia Fernanda, que morreu de cancro da mama e morava, com o tio Domingos, num renque de vivendas com trapeira perto da Arca de Água. Nunca tiveram filhos e visitavam a casa dos meus pais, certos como pêndulo de relógio, todas as semanas, à tarde. (Lembro ainda um presente, laboriosamente construído pelo tio Domingos em cartolina forrada a papel de lustro, que consistia numa complexa garagem, para arrumar os meus carrinhos, com vários andares e rampa de acesso).
Quanto ao meu bisavô materno, pai da minha avó Zaida, ainda corre na família a lenda da sua generosidade como médico, generosidade cheia de consultas grátis a quem menos podia e que deitava por fora no dinheiro deixado para remédios (que ele mesmo receitava) debaixo da almofada dos doentes pobres. Para além disso, o meu bisavô Zé falava como um carroceiro, o que só o torna mais simpático quando agora me fixo nas suas barbas de patriarca.
A minha avó Zaida é a menina bonita de laçarote na cabeça e a caminho de um meio sorriso... No seu recorte de olhos consigo rever o reflexo da minha mãe e da minha sobrinha Ana. Repare-se só ao nível que ela traz o cordão que lhe aperta o vestido! E ainda falam das calças de ganga de fundilhos descaídos que usam os rapers e skaters caseiros do século XXI! Quando ela morreu, andava pelos meus dezasseis ou dezassete anos, tive um imenso desgosto, tão ranhoso e destilado que passei o dia do funeral enterrado nos óculos-escuros que o meu futuro cunhado me emprestou. Nesse dia chorava por ela e por mim: nunca mais teria a quem vender as agendas de papel-costaneira cosidas com linha de costura; quem mais voltaria a comprar as mesinhas desniveladas que eu e os meus primos carpinteirávamos e que ela, ao fim de tempo razoável, nos devolvia para que lhas vendêssemos de novo? Mas olhem para ela aqui ao lado, olhando a eternidade com confiança, na tenra idade em que, de bom-grado sairia da foto e se juntaria aos netos para colorir um desenho que, à tardinha, recém-saídos do banho e de risca bem vincada, iríamos oferecer a ela própria.


© Pedro Serrano, Porto, fotógrafo desconhecido.


52. Uma casa não é um lar (Opus 2)



Com o à vontade do tipo habituado a milagres, Jesus produziu rapidamente um chicote a partir de um pedaço de corda e, a explodir de raiva pela falta de respeito para com a casa do seu pai, zurziu com ele os vendilhões do templo, o homem que vendia pombas, pôs em pantanas os expositores dos banqueiros... Em seguida, causando um arrepio de horror nos construtores civis presentes assegurou que, sozinho, conseguiria demolir e reconstruir em três dias o templo que demorara 46 anos a edificar.
Encolhido de frio na quinta fila da nave, encaixado entre as minhas irmãs, era a quinta vez que ouvia esta história em anos consecutivos. Já a sei de cor, mas, este ano, o padre Avelino, um oficiante inesperado na missa das sete, aproveitou as metáforas do evangelho segundo S. João para traçar, em tons sombrios, um lúcido retrato da penúria em que se encontra a igreja católica e a fé dos poucos crentes que esta ainda vai arrastando. Nada de mais verdadeiro, bastava olhar:
Na plateia, a congregação reduzia-se a uma escassa trintena de assistentes e não fora os frades e os noviços presentes, flagrantemente oriundos da longínqua lusofonia africana, mal se ouviria o coro de responso às invocações do altar. Antecedendo a chegada do padre, no púlpito, um seminarista de traça indonésia, provavelmente um timorense, enumerou, num português emperrado, o nome das almas por quem a missa fazia intenção, transformando o Serrano do patronímico do meu pai em ‘Sereno’... “Nunca pior”, ruminei para mim, entalando as mãos entre as coxas e enterrando o pescoço no cachecol.
No final de tudo, enquanto os fiéis, ainda zonzos da hóstia, se arrastavam para a saída, deslizei do meu banco e bati discretamente no vidro martelado da porta da sacristia, após o que a entreabri e chamei:
“Padre Avelino, dá licença?”
“Quem é lá...?” ouvi responder do outro lado da enorme cómoda de madeira escura com tampo de mármore onde se guardam sotainas e  paramentos. Mas só quando cheguei perto ele me reconheceu e abriu os braços para um abraço onde se fundia a amizade de muitos anos e a entoação profissional da saudação:
“Ó Pedro, que felicidade ver-te por aqui...”
“Vim à missa do meu pai, fazem hoje cinco anos que morreu...”
“Cinco anos, já!? Como o tempo voa... O nosso querido Dr. Serrano...”
E ficamos por ali uns momentos, sabendo um do outro, ele interessando-se pelo meu trabalho, eu querendo saber da sua saúde, uma vez que é diabético de longa data.
“Estou bem, estou bem; estou como vês... Também já tenho oitenta e um anos... E o teu menino, as tuas irmãs?”
Estava a contar-lhe que, também, o meu menino já ia nos 23 anos, que estava na Alemanha, quando as minhas irmãs irromperam pela sacristia tomando conta da actualização das suas próprias notícias.
No fim da visita ele veio acompanhar-nos à porta da sacristia, ficou-se um pouco a ver-nos afastar, eu ia progredindo na nave e virando-me para trás num repetido gesto de adeus que ambas as partes sabem agora que pode sempre ser um último.
Cá fora não estava muito mais gelado do que no interior e Novembro fazia descer sobre a escadaria da igreja e o par de candeeiros que a iluminam uma névoa alaranjada. Do outro lado da rua, tão vizinha da igreja que se poderia assistir a uma missa das janelas, a casa do meu pai esperava, como sempre, o limoeiro espreitando por cima do musgo do muro. Mas desta vez, das vezes que se seguem, a casa está fechada, envolta em negrume e silêncio e nenhum de nós vai meter a chave no portão, descer os degraus até às luzes que costumavam brilhar por trás de estores corridos ou pelas das vidraças da cozinha nem o meu cunhado Gil cruzará a ombreira para, faminto, ir levantar as tampas a tachos e panelas para espreitar o jantar que, paciente como a senhora Berta que dormitava sentada num banco, se aprimorava para quem chegava da noite. 

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Cochim, Índia, 2012; (2) Porto, 2011.


53. Days of future passed


Nunca, mas nunca na vida eu imaginei que pudesse ser obrigado a ver uma professora de matemática em fato de banho e, ainda menos, vê-la a conversar com a minha mãe, tricotando crochet como se nada fosse!
Estava-se em 1968, eu fizera quinze anos, os Moody Blues tinham editado no Natal anterior o fabuloso álbum Days of Future Passed e matemática era pesadelo de que julgara ter-me livrado, pelo menos durante os três meses das férias grandes, e agora ali estava ela, lustrosa como uma foca, no seu fato de banho preto, assombrando-me a paz de espírito, obrigando-me a permanecer na areia, arredado das riscas paralelas da minha própria barraca, a tentar evitar tangentes e secantes...
Ao menos não era minha professora, nem sequer professora no meu liceu, mas, de qualquer modo, era professora de matemática e dava aulas no Carolina Michaelis, o liceu de raparigas a escassa centenas de metros do meu, isto é: deveria ter conhecimentos e influência suficiente para me poder prejudicar, bastava-lhe mexer o mindinho! É claro que sendo eu assíduo frequentador da hora de saída do Carolina já a conhecia de vista, sabia até a alcunha de mãe-preta pela qual era conhecida entre as raparigas, rótulo que lhe vinha do fácies um tanto negroide e de nariz esborrachado, à boleia de uma canção de protesto que estava na moda naqueles anos de estrebucho colonial. Mas uma coisa era mirá-la, vestida, do lado de lá do passeio, outra vê-la, de um ano para o outro, aterrar no verão da Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira, nesse agosto em que tinha, à justa, acabado de surgir In Search of the Lost Chord, o esperado novo álbum dos Moody Blues, obra que confirmava a esmagadora surpresa do disco anterior e afirmava no firmamento o rock sinfónico, uma variação musical inaugurada (como era costume) pelos Beatles na primavera de 1966 com “Eleanor Rigby”, uma canção de nos pôr de joelhos, com um  arranjo de violinos e violoncelos que parecia música de câmara!
De tudo isto se ia falando, pernas cruzadas, lambuzados de Ambre Solaire, a uns metros das barracas, as nossas mãos, feitas ampulhetas, peneirando punhados de areia fina para o chão, os olhares demasiado tímidos para se fitarem de frente. A Lena e o Eduardo, dois tipos novos no nosso círculo da praia, eram, precisamente, grandes fãs dos Moody, possuíam em casa o Days of Future Passed e tinham já encomendado o Lost Chord e isso emprestava-lhes um valor inestimável, pois colecionávamos pessoas como quem coleciona discos.
Subitamente, no meio do meu entusiasmo, eis que descubro, arrepiado, que a Lena e o Eduardo eram filhos da mãe-preta, moravam perto de mim no Porto e, horror dos horrores, a Dr.ª Albertina (que era esse o seu inusitado nome) oferecera-se até para passar a dar-me boleia para o liceu no ano lectivo seguinte. Não, era mau de mais para estar a acontecer, a minha mãe a suspirar e a confessar à outra que a “matemática é o espinho dele, Dr.ª Albertina, isso e a Física, não há maneira... Este ano teve-me um 7 no segundo período!”
E a outra, entre duas remadelas nas agulhas do tricot, a interessar-se, a querer saber quem era o meu professor no liceu, pois que, com toda a certeza, o conheceria...
“Pedro”, aproveitou a minha mãe quando eu, a escorrer da gélida água dos mares do norte, acabava de chegar em busca de uma toalha perdida, “como se chama o teu professor de Matemática...?”
E eu, diminuído mentalmente por um couro cabeludo enregelado, a tentar lembrar-me como caralho se chamava mesmo o professor, a catar por entre a alcunha de sobe e desce como alguns o conheciam (o homem tinha uma perna mais curta do que outra) e a de se-te-apanho-fodo-te, como outros, os menos piedosos – entre os quais me incluía, se lhe referiam na intimidade, uma menção bicéfala ao seu defeito e ao facto de ser titular de uma disciplina temível...
Mas a adolescência é um tempo de perplexidade e contradição e era com espanto e um tributo mental de admiração ao pai que constatávamos diariamente ter a filha do sobe e desce, igualmente aluna do Carolina, um perfeito e ambicionado par de pernas... E acabou por ser por uma mistura de pernas e discos dos Moody Blues que aceitei a tal boleia para o liceu: agora, todas as manhãs, ao rondar das oito horas, batia à porta de casa da Dr.ª Albertina na esperança de ver surgir a filha ao cimo das escadas, a saber quem chegara. Nessa época estavam na moda uns collants de cor branca, opacos, e que transmitiam às pernas um picante ar cadavérico.
“Ah, és tu...”, dizia ela, pairando lá cima ou desfilando escadas abaixo a gritar pela mãe e pelo irmão.
E eu, paralisado na soleira como num embaraço de entrar em casa alheia, ficava-me ali como se já estivéssemos em 1969, ano em que os Moody Blues nos visitariam com o seu novo álbum On the Treshold of a Dream   

54. Natal c/ todos


Quando o telemóvel tocou andava pelo supermercado, na prateleira dos derivados do tomate, à procura de polpa, a explorar um spaghetti à bolonhesa que trazia na ideia para o jantar.
Era a minha sogra e queria saber como seria com o Natal deste ano. Contei o que já estava alinhavado: a 24 jantava com a família lá de cima, o cozido do almoço de 25 era por conta da minha irmã Clarinha e, a partir daí, não tinha nada programado.
“Então fica como o costume”, disse ela num despacho: “vens cá jantar a 25, com o Zé João.”
“OK”, agradeci do lado de cá da polpa de tomate, “aí estarei”, logo me escorregando o fluxo do raciocínio do spaghetti para a necessidade de encomendar, mal chegasse ao Porto, um bolo-rei e um pão-de-ló dos grandes, pois em casa da minha sogra são ferrenhos do pão-de-ló com vinho do Porto, e bolo-rei, já se sabe, não há igual ao que se enforna na capital do Norte, em que até a fava tem um torrado sem calcanhares a que se chegue.
Corriqueiro diálogo, concluirão ouvintes mais impacientes, dado que milhares de planos desta natureza terão lugar todos os Natais por esse éter fora... A pequena diferença, neste conto de supermercado, é que o contador é divorciado de mais de dez anos, pelo que esta sogra, antiga de trinta anos, e este telefonema de prazenteira combinação deveriam, no mínimo, jazer soterrados no pó do tempo ou no gelo do esquecimento.
Ah, mas vocês não conhecem a minha sogra, ela é uma especialista em manter famílias agregadas, uma espécie de íman familiar, teimoso e distraído... Para ela, separações, divórcios, filhos e netos a morar a 3.000 km, não são nada que não se ultrapasse com meia-dúzia de truques do livro de receitas de família. Já me dera conta disso quando os meus cunhados se separaram, e o mesmo aconteceu quando chegou a vez à filha mais velha e ao seu, então, marido – eu.
É claro que durante uns, escassos, anos as relações bilaterais amornaram – é humano que cada destroçada parte torça pelo seu grupo sanguíneo, qualquer especialista em transfusões nos explicará as razões disto – mas, ainda assim, a minha fotografia não desapareceu do lintel por cima da lareira, apenas foi remetida durante o período de nojo para plano mais discreto, mais atrás, perto da chaminé, que, no fundo, a minha sogra não me queria arrefecido de todo.
Agora, continuámos a encontrar-nos em casa dela para celebrar mais uma consoada e tirar uma sorridente fotografia de Dezembro, retrato onde só os mais novos aparecem de cara fechada ou em trejeito brincalhão, pois ainda não se aperceberam completamente do pequeno milagre em que participam nessa noite de outras muitas...
E, olha, lá estamos todos, depois do peru, das rabanadas, do pão-de-ló e do celebrado
“Olhem que este vinho do porto é colheita do ano em que eu nasci...,”
a sala tão bonita e ricamente decorada, o meu filho afagando as teclas do piano, a minha sobrinha belga à viola, cantando qualquer coisa alusiva, juntos, os que partilham o sangue e aqueles que nem sonhavam a existência dos outros antes de entrarem aquela casa; os que pisam as escadas para o andar de cima com a inconsciente desenvoltura de sempre e os que, como eu, optam agora pelo lavabo do rés-do-chão para lavar as mãos e darão uma última olhadela ao presépio (na mesinha onde outrora ficava o telefone) antes de rodar o puxador da porta da sala, movimento ao qual a minha sogra, como se fosse uma senha que só nós conhecemos, dirá:
“Ah, só faltavas mesmo tu... Meninos, já podemos ir para a mesa...”

© (1) Google Earth; (2) e (3) Pedro Serrano, Cascais, 2009.

56. Os predicados do Rochinha

O rapazeco que sobressai no retrato a interceptar a objectiva do fotógrafo (provavelmente o meu pai) sou eu, um avançado entre o meu primo Heitor e a minha irmã Clarinha. Tenho doze anos, uso gravata e o modo como penteio para a frente as farripas do cabelo são sinal de que os Beatles já modificaram a minha vida e tento, no exíguo espaço de liberdade capilar que me é permitido, assemelhar-me a eles quanto posso.
É a noite de Natal de 1965, no ano seguinte já não estaremos naquela casa em que o frigorífico ainda se admite na sala de jantar, teremos mudado para um andar chic na Boavista. E apesar de não haver informação no verso da foto, consigo chegar ao ano pela idade da irmãzita recém-saída da casca e sentada, lá na cabeceira, entre a minha mãe e a avó Zaida.
Do lado de cá da mesa, em primeiro plano, alguém passa o molho do peru por sobre um prato de ameixas de Elvas, tarefa arriscadíssima, pois havia uma molheira em que a base da terrina estava soldada ao prato e outra que não e, essa diferença, era fonte de incidentes gordurosos com consequências  têxteis que alastravam além do novo ano.
Ao lado da minha irmã Clarinha, era aqui onde queria chegar, está sentado o Rochinha com o sorriso que a minha memória sempre lhe afivela. O Rochinha era um tio, pelo lado da mãe, do meu tio Mário, e o tio Mário era casado com a minha tia Titi Teté, irmã mais nova da minha mãe. Isto que parece tão complicado de dizer acaba por condizer com a realidade, pois o Rochinha não nos era nada por laços familiares directos: não era meu tio ou meu tio-avô, nem primo, nem nada disso, no fundo era tão da minha família como o guarda-nocturno que nessa tarde viera pedir a consoada ao portão. O que não o impedia de ser uma presença tão constante e importante nas noites de Natal como o peru, o presépio ou as ameixas de Elvas.
Todos nós, os mais pequenos, adorávamos o Rochinha, à época esse sentimento fazia trança única mas as madeixas eram várias: para começar, o Rochinha mantinha aquele sorriso de quem tudo está sempre sintonizado no acorde perfeito; depois era um tipo pequenino o que o aproximava do nosso nível de entendimento físico e, acho, ser daí que se lhe adicionava o “inha” ao Rocha de família. O Rochinha tinha olhos luminosamente azuis e uma tranquilizante parecença com o anão bonacheirão da Branca de Neve, só vantagens como podem calcular. Ah, mas as coisas não se ficavam por aqui! A nível profissional, ele era apenas o representante da distribuição para toda a zona Norte, talvez para o país, da Laranjina C e da água do Vimeiro pelo que, ao longo das épocas festivas (Natal e Carnaval, para só citar duas) havia grades inteiriças destas bebidas sob as mesas da copa e nós, a quem tais consumos só eram permitidos fora de casa e em dias de espaçada excepção, quando o Rochinha marcava presença passávamos as noites gaseados em arrotada felicidade.
Como se não fora pouco, para tão curta personagem, um mistério, adensado pelos zumbidos que se interrompiam à nossa aproximação, envolvia o Rochinha como as brumas envolviam as rochas em Leça da Palmeira: o Rochinha, solteiro como um monge e com aquele tamanho que o aproximava da infância, tinha uma neta! Essa neta, nunca percebemos nós como ele a arranjara, se por método directo ou se por representação, como à água do Vimeiro, mas que ela existia isso foi-nos dado comprovar quando, uns anos mais tarde, ela começou a ser admitida às consoadas. Chamava-se Armanda e, como o nome passou a deixar supor em mim sempre que o ouço invocado, era uma menina calada, de pele branca, e pose melada como a Larangina C quando lhe passava o gás...
Por vezes, mesmo quando já estava a enfiar o sobretudo, a enrolar-se no cachecol para se aventurar na noite fria e voltar à vida desconhecida de onde provinha, o Rochinha, com o "ah..." malandro de quem finge ter-se esquecido de algo, metia as mãos nos bolsos e retirava-as com um retinir por demais nosso conhecido: era o maravilhoso, o inigualável trinado de chicletes Adams a chocalhar dentro das caixas onde vinham acondicionados. Havia caixas de várias cores, mas nenhuma suplantava o brilho mágico das amarelas, as preferidas do nosso benfeitor. Quanto a tamanhos, havia-as das grandes (com 12 peças) e das pequeninas, apenas dois chicletes de uma brancura que não destoava da alvura imaculada da gola do vestido da Branca de Neve. Óbvio que o Rochinha, sendo um ser do reino encantado dos minorcas, nos enchia as mãos estendidas de caixas das pequenas, preciosos objectos de joalharia onde, através de uma janelinha de celofane no cartão, os nossos olhos pedintes encontravam, como num amor à primeira vista, o nacarado dos chicletes no seu leito de cartolina. 


© Fotografia: Natal de 1965, Porto, fotógrafo desconhecido.

57. Travessa muita, comida pouca
Um arqueólogo familiar chegaria rapidamente à conclusão que o silencioso e cortês processo de emancipação do meu pai, em relação ao seu afirmativo sogro, se fez notar até na tipologia das empregadas que foram servindo na minha família nuclear.
Quando se casou com a sua princesa, filha mais velha de um banqueiro,  escritor, homem de teatro e pessoa conhecida na sociedade portuense dos anos 40, o meu pai, um desconhecido das berças desesperado por clientela clínica, herdou, de imediato, uma casa onde residir, moradia que se situava do outro lado da rua da mansão onde moravam os meus avós maternos e da qual a minha avó, sem ter de recorrer a binóculos ou monóculo, poderia espiar das suas janelas altivas o que se passava nas nossas.
Para além da benesse de casamento com telhado incluído, os meus pais receberam também no pacote nupcial uma linhagem de empregadas que eram arrebanhadas no mesmo lote e proveniência das que trabalhavam em casa dos meus avós. Assim, as muito queridas Tomásia e Cândida que acompanharam e enriqueceram a minha primeira infância, mantinham intrincadas relações de parentesco, que nunca entendi muito bem, com as raparigas que trabalhavam do lado de lá da rua... Pode-se adivinhar, nessa história nunca escrita, a teia de informações e bem intencionadas conspirações que tudo isto albergava.
Mas era preciso desconhecer o meu pai, o seu trajecto anterior e a sua obstinação sem propaganda, para acreditar que ele se moldaria a tal berço de ouro. Lentamente, à medida que a vida lho permitiu, foi  estabelecendo fronteiras e, juntamente com a exigência de pagar renda mensal ao meu avô pela casa onde morámos no começo da nossa existência como família, as empregadas contratadas para nossa casa passaram a ser recrutadas na aldeia do meu pai ou nas suas cercanias: Natália, Prazeres, Belmira, Maria... Este processo de emancipação culminou com a construção da nossa casa da Circunvalação, empreendimento que encheu o meu pai de alegria e excitação ao longo de mais de dois anos e de que um dia destes falarei aqui com mais detalhe. Para já, tenho ainda cerca de dez anos de idade e moro na nossa casa mais antiga, cujo portão de entrada é fronteiro ao enorme portão de madeira com chapéu de telha da casa dos meus avós.
Acabou de ser admitida para nossa casa uma nova criada: chama-se Maria e veio de Quintela de Queirã, uma aldeia satélite de Queirã, a aldeia na proximidade de Viseu e de Vouzela onde nasceu o meu pai. Imagine-se! Se Queirã já é um buraco com uma centena de casas onde nem uma mercearia, que se possa chamar como tal, existe, imagine-se o que poderá ser uma terra que, o próprio nome o indica, existe por referência à outra! Toda esta escanzelada proveniência, eu e a minha irmã Clarinha, que anda pelos catorze anos, o fazemos sentir à nova rapariga quando, pejorativamente, a chamámos usando o nome pelo qual descobrimos ser apelidada por lá, na sua lonjura serrana.
“Maria cotovia!”
Mas a Maria, cotovia ou não, irá manter-se longos anos em nossa casa e atravessará connosco a rua para ir morar na casa nova que o meu pai construirá. E com o tempo foi-se adaptando à cidade, a nós, e revelando a sua personalidade de mulher inteligente, cujo bom humor e tiradas rápidas passam a integrar o nosso tesouro doméstico:
“O Sr. Dr. parece uma andorinha rasteira...”, interpela ela, directamente, o meu pai, ao vê-lo achinelando a casa aos fins de semana, com o andar preso ao chão que esse tipo de calçado dá aos pés. Ou, pousando na mesa uma travessa e comentando, em desafio à minha mãe que, antes de os ver mirrar pela cozedura, achara aquele molho de grelos mais do que suficiente como acompanhamento para o jantar:
“Isto é como os de Vila Pouca: travessa muita, comida pouca...”
Um dia, como acontecia com elas todas quando já dominavam as técnicas de confecção da massa tenra ou de cavalgar com mestria uma tábua de passar a ferro, a Maria casou e regressou a Quintela para jamais.
Nunca mais a vi, mas no outro dia, ao escrever aqui sobre um jantar de Natal na minha casa mais antiga, ela saltou directamente da fotografia para a minha saudade.

                       58. Vive la France
 
Quando eu era pequeno, o meu pai, nos intervalos da sua intensa actividade como cirurgião, parecia apreciar a minha companhia.
Para grande contrariedade minha, sacudia-me da cama para intermináveis manhãs de caça ao coelho e às perdizes; arrastava-me a errar por km para avaliar se os vasos de recolha de resina, suspensos nos pinheiros, tinham atingido um bom nível de seiva e, ainda, por outras actividades igualmente secantes para um miúdo de dez anos, mas que, para ele, eram elixir de alegria e o faziam exclamar, a sublinhar uma qualquer plenitude, a enigmática e descontextualizada interjeição:
“Vive la France!”
Depois, quando já penava pelos bancos do liceu e o meu desempenho em botânica se revelava assustadoramente fraco, o meu pai – mais entusiasmado do que o filho com as páginas do compêndio – estudava comigo as nuances da seiva bruta e da seiva elaborada e forçava-me a aulas práticas usando como laboratório o jardim lá de casa onde, para grande horror meu, pululavam monocotiledóneas, corolas, estames, anteras falciformes com deiscência poricida e outros atropelos ao bom nome...
Uns anos passados, já aluno de Medicina, desafiava-me por vezes para o acompanhar nas consultas domiciliárias que deixava para o fim do dia e com o fito de esmiuçar ao vivo algum telefonema de um cliente que o deixara preocupado ou com uma dúvida médica por satisfazer. Ainda a estacionar o carro, antes de entrarmos na casa do doente, recomendava-me que não abrisse o bico durante a visita e explicava-me o contexto clínico e familiar do que talvez nos esperasse lá dentro. À entrada, pedia delicadamente autorização ao visitado para que eu estivesse presente – apresentando-me como um quase colega – e, regressados ao automóvel, resumia-me o entendimento a que chegara, não apenas a clínica envolvida ou o tratamento prescrito, mas também as consequências que o prognóstico sombrio daquele doente iam ter sobre o sorriso daquela senhora tão simpática que nos abrira a porta e, no fim, nos convidara a jantar...
Hoje, passados estes anos, lamento um pouco não ter dado mais atenção a todos esses momentos, o não ter respondido com mais entusiasmo e menos ar de enfado ao prazer que o meu pai parecia ter na minha companhia, em participar da minha vida nascente e associar-me à dele. Não posso emprateleirar este sentimento no negrume dos remorsos, é mais uma nostalgia que sobra da consciência do tempo fugido e que paira por aí, dizem os físicos, misturado à poeira cósmica, essa mistura de recordação e perda que fez o Proust escrever mais de 3.000 páginas sobre o assunto nos sete volumes do À la Recherche du Temps Perdu.
Nas ruelas transversais à sua intensa actividade profissional, o meu pai encontrava por vezes uns amigos muito diferentes dos médicos que iam jantar a nossa casa, que às vezes passavam férias connosco na mesma praia do Algarve.
Eram os pintores. O meu pai parava a falar com um punhado de tipos com um ar um pouco estranho, que tratava com respeitosa atenção e a quem, a crer pela quantidade de quadros amontoados no seu escritório, servia de guia para os males do corpo já que, é sabido, os artistas, embora desligados, evidenciam tendência para se afligiram muito e tem pouco dinheiro vivo para gastar em médicos. Recordo caminhar na baixa do Porto e cruzarmo-nos com esses sujeitos de aspecto despenteado, de vestes esquecidas do ferro de engomar e lenços de seda a resguardar o pescoço. O meu pai por ali se quedava em conversa, enquanto eu, calado, interiormente fascinado e divertido, absorvia a presença excessiva daqueles seres.
Quando a casa nova foi construída, a espaçosa e alta parede que acompanha a escadaria para o andar de cima, iluminada por um boa luz do norte, ficou pontuada por quadros dessa gente, sendo da nossa especial predileção uma pintura de um tal Cid que representava um D. Quixote aos tropeços na impressionista e descomunal asa de um moinho. E nos mais de dez anos que morei naquela casa era para mim quase automático pousar os olhos naquele quadro sempre que subia ou descia as escadas e que, mesmo já não estando lá, ficou associado àquela curva da escada.
Havia um outro, chamado Pedro Olaio, um pintor que morava em Valadares e tinha um estranho modo de nos desejar Feliz Natal. Todos os Dezembros chegava a casa do meu pai – apesar de o homem amputar o nome da rua e não escrever o número da porta! – um bilhete postal dos Correios em que a face onde as pessoas garatujavam as palavras festivas de circunstância, estava unicamente preenchida por uma aguarela, espanejada numa gama em pretos e cinzentos. “Que estranho motivo para um postal de Natal”, pensava eu olhando os motivos e os tons sistematicamente sombrios da pequena pintura e esquecendo a intenção que por ali morava.     


© (1) Pedro Olaio, 1969; (2) Pedro Serrano, Porto, 2010.

             59. Natureza quase-morta 


Quando era pequeno e, neste caso, o pequeno refere-se a idade abaixo dos onze anos, tinha um medo tremendo do vitral aqui ao lado, finalmente fotografado num Sábado recente em Viseu.
Sempre que íamos à cidade, tão seguro como visitarmos a minha tia Céu ou irmos à missa na Sé, havia um momento da tarde reservado ao lanche na Confeitaria Horta, uma pastelaria onde parava a alta sociedade de Viseu e as senhoras bebiam disfarçadamente, a acompanhar empadas de lombo de porco, vinho branco do Dão por chávenas de chá...
Alheio a tudo isso, até ao frisson de Aquilino Ribeiro poder estar sentado a uma das mesas com a sua neta Marianinha, as minhas mãos começavam a humedecer-se mal entrava na confeitaria, pois, mais tarde ou mais cedo, o meu olhar não resistiria a levantar-se para a vítrea imagem que vibrava na parede do fundo. E, depois de olhado, era certo e sabido que nessa noite, nas seguintes, paralisado como uma múmia na minha cama de Queirã, seria assaltado por visões de horror, catalisadas pela natureza morta-viva daquele vitral. Mas qual a razão específica desse terror que não me atrevia a desabafar, pois ninguém o compreenderia e ao medo teria ainda que somar a humilhação do gozo?
“Tia, o Pedro tem medo do tatu...”
“Não é um tatu, é um rato-porco-assado!”
Pelo traço, o vitral denuncia a sua época Arte-nova e mostra a mesa de uma qualquer festa rica: o champagne, as taças, os ananases, as cascatas de fruta, o rico faisão. Nada de muito diferente da sala de jantar das festas em casa dos meus avós do Porto, quase se poderia escutar o bruá das conversas em torno da ceia...
Mas, para mim, havia algo de muito inquietante no vitral, algo que sobrava, algo que faltava: é que a cena representava uma sala já depois de terminada a festa (não há um único ser humano presente) e na qual, pela calada da noite, um inquietante e sobrenatural animal, uma espécie de tostado cruzamento entre rato e leitão assado, tenta chegar ao colorido faisão, derrubando, na tentativa, uma travessa cheia de frutos... Mas ninguém ouve o tremendo barulho da travessa estilhaçando-se no chão? Ninguém dava conta daquela violação, ignóbil e maléfica, da harmonia? Então ninguém acudia, expulsava o monstro e defendia a alegria de uma mesa festiva? Iam-no deixar ratar aquilo tudo? É que depois do faisão iam os doces; ia conspurcar as taças, mijar nos restos de espumante... Não, era evidente que não, não havia evolução ou alívio na cena e, de cada vez que voltávamos à Horta, lá estava tudo aquilo, paralisado como num pesadelo!
Somente já grande consegui olhar o painel com serenidade e apreender os seus pormenores, a beleza do seu desenho e concretização.
A Confeitaria Horta, fundada em 1873 por um pasteleiro do Porto radicado em Viseu, famosa pelas castanhas de ovos, pelos pastelinhos de feijão, fechou há uns anos para grande desgosto dos viseenses e de quem mais se lembrava dela. Agora voltou a abrir, mas a remodelação deu cabo do espaço e continua sem os cliente que levaram ao seu fecho... As mesas de madeira, os bancos acolchoados, os espelhos na parede, a intimidade ar um pouco escura, tudo foi varrido pela alvura de uma decoração século XXI, por um tom demasiado branco e cru de paredes e tecto, lancinante ao olhar e avesso ao resguardo do cliente. Vá lá que mantiveram o painel, mas agora, única mancha de cor e sofisticação em toda aquela modernidade em série, parece um fresco melancólico que desbota na sua tristeza de exilado.   

Fotografia que antecede o texto: © Pedro Serrano, Viseu 2013.





                   6O. Revelação

O quarto de banho dos meus avós maternos era uma divisão mais longa  do que larga e, embora só tivesse uma janela a iluminá-lo, rasgada aos pés da banheira que ocupava toda a parede do fundo, era um aposento rico em claridade graças ao reflexo da luz no seu revestimento  em mármore branco e rosado.
Para além de ser uma divisão embutida no interior do próprio quarto, e por isso de acesso dificultado a partir do exterior, era um espaço interdito a menores, ou seja aos meus primos, à minha irmã e a mim, pelo que se tornava duplamente atraente atravessar o limiar da porta em vidro martelado que o separava do quarto propriamente dito.
Legalmente, o pisar dessa fronteira só se fazia quando a minha avó o estava a usar e um de nós, na esteira das saias da mãe ou na companhia de uma tia, aproveitava a boleia da distracção de uma conversa entre adultos para penetrar toda aquela brancura e pasmar para os enigmáticos objectos cuja utilidade associávamos difusamente às práticas irracionais da gente grande. Um desses aparelhos misteriosos era conservado pendurado atrás da porta, mais ou menos atabafado entre roupões, e consistia num cilindro de vidro protegido por uma vistosa casca de metal esmaltada a vermelho e adornada com arabescos dourados. Da base do cilindro, como uma cauda perversa, pendia um tubo de borracha flexível com uma torneirinha na ponta e foi por dolorosa revelação de uma barriga entupida por demasiado algodão-doce que descobri um dia para que servia aquilo que eles referiam gravemente como o irrigador.
Mas o que eu gostava mesmo de espreitar, até por perceber que era artefacto de mulheres que não se me aplicava, eram os ferros de tonalidade calcinada e vago odor infernal a chamuscado, escondidos num armarinho branco com altura própria para poder ser usado por um daqueles gnomos que geralmente habitam cogumelos. Mais tarde vim a compreender, não sem alguma desilusão pela finalidade tão inócua, que não eram aparelhos de tortura mas sim ferros de frisar cabelo!
Embora, em tempos de inventário, cada um de nós preferisse o seu particular no recheio do quarto de banho havia algo para onde fugia toda a nossa predileção colectiva. Sobre o tampo da cómoda principal uma caixa redonda de prata esperava, paciente, o momento em que os meus avós decidissem levantar a tampa e retirar um dos rebuçados medicinais, envolvidos em papel imaculado a que sobravam uma grandes orelhas brancas por onde se desembrulhavam, drops que ajudavam a acalmar o catarro matinal de fumador do meu avô. Mas, por vezes, numa das visitas rituais ao quarto de banho, um de nós era presenteado com um exemplar da poção. Os meus preferidos eram aqueles em que algum do caramelizado já repassara o papel, pois que sabia serem os que estavam num estado de madurez perfeita para escorregarem pela garganta em absoluto deleite. Na sua peganhice aqueles rebuçados eram tão tentadores que valiam o pecado mortal de serem surripiados numa surtida clandestina à casa de banho...
Durante estes anos pensei naqueles rebuçados sem conseguir concretizar o que seriam, de onde viriam; pensei-os até extintos.
No outro dia comprei num supermercado um pacote de rebuçados da Régua, guloseima que costumo adquirir longe a longe. Mas a este pacote específico resolvi despejá-lo todo numa tacinha que estava pousada sem serventia sob os meus olhos. E foi no final desse gesto, cinquenta anos depois, ao olhar os caramelos acondicionados que vim a concluir que rebuçados eram aqueles que crepitavam como uma promessa na caixinha de prata dos meus avós.



61. O Moço de Recados


No Verão de 1967, entre os treze e os  catorze anos, cumpri um castigo, determinado pelo meu pai e aceite por mim como justo, que consistiu em trabalhar como funcionário indiferenciado na firma de um tio meu.
O meu tio Mário, casado com a irmã mais nova da minha mãe, era sócio maioritário e gerente da Repor, Representações Portuenses Limitada, uma empresa que, entre outros bens comercializáveis, se dedicava à importação de azulejo de pastilha italiana e ao seu processamento e distribuição.
Como se tratava de um castigo, comecei na cave das hierarquias e daí não passei, pois um mês deu mais para evidenciar as minhas manhas do que as minhas capacidades laborais. O meu trabalho principal consistia em montar placas de pastilha de azulejo para revestir paredes e floreiras dos prédios do Porto e, secundariamente, em fazer fila nos bancos no guichet de depósito de cheques; em ir aos correios entregar e levantar correspondência, entre outras tarefas avulsas do género. Um aladrilhado moço de recados, poder-se-ia dizer.
Pois, como castigo, aquele contacto com o mundo real saiu furado às intenções punitivas dos meus pais e recordo-o como um tempo feliz da minha vida. As coisas que não podiam acontecer ao longo de um dia de jornada!
Habitualmente, vinha almoçar a casa, pois um dos empregados da Repor, o Zé da Aida (sendo esta Aida uma empregada ruiva permanente da minha avó), repastava na cozinha dos meus avós e a casa dos meus pais era do outro lado da rua...
Às vezes, só às vezes, quando perto da uma e meia da tarde me apresentava no terreiro onde o Zé tinha deixado a carrinha Volkswagen pão-de-forma estacionada à sombra da tília, dava de caras com o meu tio e patrão que, também ele, findo o almoço, se preparava para regressar à rua de Sá da Bandeira, onde ficava a sede da firma. E por vezes, só por vezes, ele olhava-me do seu olhar sonolento e levemente trocista e dizia:
“Vais para baixo...?”
E como eu acenasse que sim, ele escancarava na minha direcção a porta do lado do passageiro e, sem me dirigir palavra, gritava por cima do para-brisas do descapotável:
“Ó Zé, hoje o rapaz vai comigo...”
E o meu coração de moço de recados acelerava ao sentar-me no lugar ao lado do meu tio...
Acontece que, por vezes, a vida me leva ao Porto e, dentro desse acontecimento, sucede percorrer de carro a rua do Amial em direcção à Circunvalação. E no cruzamento da rua do Amial, que outrora me parecia uma avenida pela largueza, e a rua Nova do Tronco, onde todos nós morávamos nos anos que recordo, vejo surgir um Alfa Romeu, vermelho e vistoso como unhas recém-esmaltadas, que anuncia a sua chegada ao cruzamento em felina prioridade. Ao volante vai o meu tio Mário e eu afundado ao lado, tentando imitar, com o meu antebraço ainda demasiado curto, a descontração de o levar apoiado no vão da janela. Os dias são quentes, a capota foi recolhida, os vidros vão baixados e a brisa causada pela deslocação do carro faz ondular ao de leve as ondas do cabelo bem acondicionado do meu tio que, ciente do seu impacto visual, se entrega contente ao tráfego da avenida, enquanto, sem facilitar a harmonia da condução, escrutina pelo retrovisor lateral um ser de saia travada que teima em perturbar o trânsito com o seu andar ondulado.


62. Rua do Trevo, 27


Planta do Bairro do Ameal, 1948.
                   Something in the way she moves
                   Attracts me like no other lover
                                                        Harrison

Confesso que não sei por onde comece. Se pela pessoa, se pelo tempo em que tudo isto sucedeu ou se pelo lugar onde as coisas se passaram.
Se optasse pela pessoa diria que tal como a maior parte dos nomes com quatro ou mais sílabas ela era tratada por um diminutivo. Ainda para mais sendo um nome meio atravessado, que quem o carrega não aprecia. Conheço uma Angelina, que só responde por Gina e se eriça toda quando fala do nome que Deus lhe deu. Eu cá gosto, sempre gostei, talvez tenha a ver com a sorte nas Angelinas que conheci, certamente a hermética canção do Dylan “Farewell Angelina” (de 1965) acrescentou um toque misterioso, de Sul, à minha fidelidade ao nome.
O ano de ouro do que vos falo foi o de 1969, digo já o porquê da minha certeza tão longínqua: em Setembro saiu o álbum Abbey Road, dos Beatles, e a sua canção “Something” é uma música que lhe associo, lembro-me de a dançar com ela num magusto que sempre havia por Novembro numa quinta de lavradores perto da casa dela, perto da minha casa..., concluo agora que consigo ver tudo de cima como se fosse um Google Earth ou um ser alado que se entretém nas nuvens.
Na realidade pouco mais de quinhentos metros separariam a minha casa da rua dela. Entre ambas enfileirava-se o Bairro da Garantia, a casa dos Bessa Ribas, os terrenos de uma fábrica de curtição de peles, a fábrica de malhas, uma dezena de vivendas e logo depois estávamos em pleno bairro do Amial, uma rede de pequenas vivendas económicas de um só piso que o tempo foi transformando em casas de dois pisos, à medida que os moradores foram subindo na vida e tomando posse das propriedades. Um bairro cujas ruas tinham nomes florais: rua das Dálias, rua do Trevo, rua Florinha da Abrigada. Ela morava no número 27 da rua do Trevo, uma álea sem saída próxima da capela, mais uma travessa do que uma rua.
É claro que no princípio eu não fazia ideia de nada disto, era tão acabado de sair da casca e do quintal da casa dos meus pais que nem me apercebia de como tudo era próximo no Porto dos anos 60. Foi a ida para o liceu que me fez começar a perceber como havia outro mundo fora do cosmos do meu quintal, mundo do qual, inebriado pelo controlo que ia sentindo sobre os percursos, ia estabelecendo as ligações.
Perto do meu liceu só de rapazes havia um liceu só de raparigas, bastava subir uma rua a correr pelo fim da manhã e lá estavam elas a brotar dos portões como flores enchumaçadas em batas de um azul acinzentado, baças, pois que por si já tinham brilho que chegasse para manter os pais e os professores em alvoroço.
Uma dessas manhãs, tocada a sineta de saída do meu licei, ao chegar, ofegante, ao cimo das escadas que desaguavam no liceu Carolina Michaelis, ela cruzou-me pela primeira vez. O tempo ia frio e ela encravara os cabelos negros na campânula da ampla gola levantada do casaco azul-negro, de tecido pesado,  chamados de à marinheiro, os próprios botões tinham âncoras gravadas. No silêncio que se fez em volta dos passos dela reparei ter olhos escuros e uma boca carnuda de onde se esvaía um tom desdenhoso e altivo que, como um manto, se estendia ao próprio modo de andar.
Passou, eu rodei cautelosamente a mirar-lhe as pernas nuas e bem feitas onde umas meias vermelhas de elásticos cansados se enrolavam, desmazeladas, descaídas sobre os tornozelos.
Nessa manhã senti-a tão inalcançável, tão distante das minhas posses como um barco à vela que cruza uma praia e deixa os banhistas de boca aberta. Como era possível nunca a ter visto antes? E onde moraria ela, essa deusa que pisava o empedrado de calcário com um passo tão altivo, sozinha, sem rancho de colegas crocitando em volta, como se fosse impossível mais alguém caber naquele cenário?
Apertei com a minha prima Nunu, que andava no mesmo liceu, descrevi-a o mais friamente que consegui: os cabelos compridos, o porte altivo, as meias vermelhas enroladas nos tornozelos, o cachecol axadrezado a condizer.
“Como é que ela se chama?”, perguntou a insensível.
“Sei lá! Isso gostava eu de saber...”
E depois, um dia, regressava eu a casa sentado no banco atravessado que havia perto da porta de trás dos eléctricos, eis que distingo, no magote de gente que se alcandorou para dentro do veículo naquela paragem, estacionar em frente aos meus trémulos joelhos o anjo misterioso. Ali, a centímetros de mim, agarrada a uma das pegas de metal que se penduravam do tecto do eléctrico, o olhar indiferente e a boca desdenhosas fixados no vidro da janela por trás da minha cabeça. Levantei-me, ofereci o lugar e neste meu gesto não cabia o pó da estratégia, só antes a impossibilidade do servo em deixar seguir apeado um ente tão divino.
Agradeceu com um menear da cabeça, sem uma palavra, apenas uma centelha de reconhecimento irónico luziu nos olhos escuros, como quem pensa, como quem regista:
“Olha-me o cabrão do pigmeu...”   
Imaginem agora a minha surpresa quando, apenas duas frugais paragens antes da minha, a vi levantar, pedir licença ao vulgo e sair pela porta de trás do elétrico.
Mas então ela era quase minha vizinha?! Oh, céus, tinha de haver ali o dedo do milagre, o selo da coincidência que reúne os corações adolescentes em lugares cativos.
Vim a saber mais tarde que todos a conheciam por Lina, e nesse mesmo ano, a coberto das macias noites de Verão, haveríamos de errar, mãos dadas e olhares cintilantes, pela quermesse que nos santos populares era erigida no jardim em frente à escola primária do bairro do Amial.
© De cima para baixo: (1) e (3), blog O Porto e Não Só; (2) Pedro Serrano, Maio 2013.


63. Não há rosas sem Espinho

O QUE TEM O PALÁCIO DE CRISTAL A VER COM ESPINHO? Para mim, não tinha nada até a um baile de gala da Queima das Fitas onde, andava eu no primeiro ano de Medicina e ela ainda no liceu, conheci uma rapariga chamada João Pinto Basto.
De entre os milhares de pessoas que nessa noite enxameavam sob a cúpula do Palácio ela foi meu par num rosário de danças das canções que debitava o conjunto que abrilhantava o evento e, de um modo a que não recordo detalhes, demos uma oportunidade de continuidade à noite pela troca de números de telefone. Costa Cabral, onde ela morava, não era zona que eu frequentasse e, sem um cordão umbilical qualquer, não seria provável voltar a encontrá-la pela cidade pois não havia ninguém que a conhecesse que eu conhecesse e vice versa.
Mas o que é certo é que evoluímos rapidamente da cristalina situação de completos desconhecidos para a de amigos e, para além da correspondência que íamos trocando, no Verão seguinte dei comigo em Espinho, pois ela costumava veranear por ali e convidou-me a visitá-la. Às vezes ia até lá pelo método de me pôr na estrada de polegar no ar e se havia dias em que isso podia ser simples e directo, era outras vezes complicado e conseguido à custa de prestações no trajecto. Assim volveu-se mais prático apanhar o comboio em São Bento, que a viagem, para além de rápida, era interessante. Sempre gostei de comboios, do cheiro a pó de carvão, mesmo quando são eléctricos, dos ambientes associados; das linhas estrábicas que se estendem a perder de vista; do manquejar das rodas sobre os trilhos e, mais do que tudo, da mudança de lugar que proporcionam.
Porto-Gaia-Valadares-Madalena-Miramar-Aguda-Granja-Espinho.
Espinho, uma terra de pescadores seccionada por um comboio, só podia ser uma cidade estranha, sempre assim a achara desde os tempos em que, ainda muito pequeno, era arrastado até lá a visitar os familiares que, em ousadia anual, deixavam a Beira e ali renovavam casa para banhos numa praia cronicamente tornada infrequentával pela nortada e pelas próprias águas do mar, geladas e de correntes perigosas. Mas isso era o menos, havia o ar marítimo, havia os cafés ao longo da rua principal, havia o casino, havia o picadeiro, a linha de caminho de ferro que atravessava a cidade e, pelo alvoroço ferroviário, era ela própria uma atração.
Foi então com uma sensação de liberdade adulta, uma leveza transitária, que vi Espinho com uns olhos diferentes dos do macerado miúdo visitando tios que assobiavam nas vogais e nos recebiam em casas com mobílias que não lhes pertenciam; moradas soturnas de soalhos rangentes, vidraças tristonhas com vista para as ervas daninhas do cascalho da linha de comboio e aparadores torneados de onde, à hora do lanche, surgia a tigela de marmelada que viajara da serra até ao mar.
Com a João não havia marmelada e à hora do lanche, o mais tardar, regressava ela à casa que a família alugava numa rua de que já não recordo o algarismo, pois, nesse único particular, Espinho era como Nova York e as ruas, ao invés de serem apelidadas com nomes de comendadores ou políticos pulverulentos, eram numeradas. Não me lembro também de alguma vez termos idos juntos molhar os pés, limitávamo-nos a passear contentes em companhia, a sentarmo-nos nalguma esplanada a conversar.
E de qualquer sítio de onde viéssemos ou para onde fôssemos lá estava a linha do caminho de ferro contida entre grades e, como ponto de referência do centro nevrálgico da agitação urbana, a passerelle, muito concorrida, pois passando por sobre os carris, permitia aos peões circunvagar de um lado para o outro da cidade sem ter de esperar que os comboios passassem e as cancelas se abrissem.
Por esses dias imaginei escrever uma história que se passaria numa cidade que não se chamava Espinho, mas que teria uma linha de comboio a fazer-lhe risca ao meio; uma passagem aérea para peões com degraus de madeira; e, numa casa vazia, um telefone que, esquecido nas tábuas do soalho, tocava insistentemente sem que ninguém atendesse.
Porquê a casa vazia, porquê o telefone, quem marcava esse número e como terminava a história? Não sei, nunca saí desse momento que retinia como as campainhas das passagens de nível, mas foi essa sensação, desolada e paralisada no tempo, que Espinho me inspirou.
Provavelmente o mesmo não diriam os meus pais que, dois anos após ter terminado a Segunda Guerra Mundial, olham a máquina fotográfica no conforto abrigado da nortada das risquinhas de uma barraca de praia em Espinho. O meu pai, trigueiro e peludo, que, como as minhas tias da marmelada, vinha somente dos lados de Viseu parece chegado de Marrocos na véspera, mas a minha mãe, nos seus vinte anos e clara como convinha a uma praia do norte, parece demasiado etérea para pensar nisso.

Fotografias: (1) Espinho, por volta de 1930; (2) Espinho, 1946. Fotógrafos desconhecidos.











64. Sereias e outros moluscos 


            Hoje em dia, discoteca é local onde se vai dançar e boîte é casa de putas, mas quando era novo uma discoteca era uma loja onde se compravam discos e uma boîte um local onde se ia dançar. Frequentei muito as primeiras (a dos discos) e bastante menos as segundas, mas em todo o caso... 

A primeira boîte onde me lembro de ter entrado foi a Kontiki, situada na cave do Hotel Faro, e na visita iniciática franqueei a porta escondido na sombra protectora do Sr. Fagulha, gerente dos apartamentos Garantia, sitos à Rua Conselheiro Bivar, em Faro... Mas permitam-me um certo recuo para que as coisas surjam como mais claras.

Como por aqui contei ao longo de cinco folhetins (Vou-te Contar: 29. O Céu da boca 33. Uma pálida sombra) durante a minha infância e começo de adolescência íamos a banhos à Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira; uma praia nortenha, isto é: ventosa, rochosa e de águas geladas. Mas, de repente, instalou-se em todo o país a coqueluche do Algarve, região que o Norte do país parecia desconhecer por completo, como se tratasse de um outro país.

E a minha família desertou de Leça e rumou ao Algarve, deveria andar eu pelos meus catorze anos. Durante uns dois anos vogámos tipo ciganos, primeiro pela Praia da Rocha e depois pela Quarteira, nessa época ainda um longo areal pouco contaminado por cimento armado. Mas aquelas estadias tinham algo de tristonho: não conhecíamos nem gente nem os locais, ficávamos instalados em hotéis, tropeçávamos em restaurantes; tornava-se tudo impessoal e o ambiente familiar dos Beijinhos deixava saudades a todos, só o azul-ferrete do céu, as noites azul-negro e a água quente do sul nos faziam hesitar num regresso definitivo às praias do norte.

Acontece que o meu pai, entre outros locais onde trabalhava, era médico da Companhia de Seguros Garantia, seguradora que, por razões que desconheço, era proprietária do prédio de apartamentos em Faro onde funcionava a filial do Algarve, apartamentos que alugava, a preços razoáveis, para uso estival dos seus funcionários e familiares. De um ano para o outro mudámo-nos para Faro e assim seria durante todos os meses de Agosto de longos anos seguintes. Connosco fomos arrastando outra gente: os meus tios (e com eles os meus primos), amigos dos meus pais e respectiva prole; até um doente do meu pai, que fabricava panelas de pressão em São João da Madeira lá chegou a veranear um ano com mulher e filhas, que referíamos entre nós como as meninas Silampos. 

Faro tornou-se rapidamente um sítio de culto, um local de peregrinação por onde começaram a aparecer os meus amigos, os amigos dos meus primos e também amigos destes, gente que com sorte e jeitinho conseguiam tomar um banho num dos apartamentos, ver um jantar no Centenário pago pelo meu pai ou, na pior das hipóteses, podiam deixar guardados bens perecíveis no frigorífico das nossas cozinhas, gémeos na prateleira com a melancia que o meu pai ali punha religiosamente a refrescar e de que, ao fim da noite, sorvíamos ruidosas talhadas mirando da varanda as varandas iluminada do Hotel Eva, para onde davam as nossas traseiras.  

O rapaz louro e bocejante que aparece a meu lado na fotografia, sentados no chão do passeio encostado aos apartamentos Garantia, é o Zé Augusto Amorim, primo dos meus amigos Amorim, que viria a desaparecer do mapa no final dos anos 70 e ainda hoje o seu destino e paradeiro são um mistério para toda a gente. Diz-se que terá sido visto a última vez para os lados de Marrocos. Disperso-me...

No primeiro andar dos apartamentos Garantia ficava o quartel-general da companhia de seguros propriamente dita, um escritório gerido pelo senhor Fagulha,  algarvio com pinta de bon vivant e excelente public relations. Com ele trabalhavam duas moças na casa dos vintes, Natália e Nídia, sendo esta última o motivo real para as nossas frequentes descidas ao escritório, a queixar-nos de uma lâmpada fundida ou que um autoclismo pingava. Nem eu nem os meus primos, nem sequer os amigos do Porto que por lá caíam, estávamos familiarizados com os efeitos provocados por temperaturas quase tropicais sobre os decotes e as rachas das saias das algarvias de gema, ainda para mais contextualizados num escritório cujas paredes eram forradas a papel prateado estampado com sereias sem roupa ou resguardo acima das escamas caudais. 

Mas isto que conto foi já um pouco depois, já os 70 rolavam e eu me movia como peixe na água nos recantos mais escuros da Kontiki e “Lola”, dos Kinks, era o grande êxito desses agostos. Antes disso, a primeira estadia nos apartamentos Garantia, teria eu os meus dezasseis anos, foi tão solitária como os dias da Quarteira e o meu pai, porventura impressionado com o meu isolamento tímido, pediu, para minha grande vergonha e humilhação, ao Sr. Fagulha que me ambientasse um pouco pelas redondezas. E este, sem mais, uma noite depois do jantar pegou em mim e levou-me por uma entrada que havia em frente às traseiras do Café Aliança até às entranhas da boîte Kontiki, onde me apresentou ao barman e anunciou que, sendo eu uma espécie de seu protegido, passaria a ser frequentador assíduo. Como se não fosse pouco, pagou-me uma cola Canada Dry ao balcão e rodando sobre o assento do banco alto, enquanto o olhar sabedor e lúbrico se passeava pela pista de dança, perguntou-me:

“Então, amigo Zé Pedro, agrada-lhe...?”

Limitei-me a acenar com a cabeça, enterrando a tromba no limão da cola.

Quem explorava a outra boîte mais famosa da cidade era o Hotel Eva, na altura um hotel novo, com piscina no rooftop e recheado de ingleses e nórdicos. A boîte deles chamava-se Xerazade, funcionava no rés-do-chão do hotel e, quem não fosse hóspede, podia tentar passar pelo escrutínio do porteiro através de uma porta que deitava para a rua, rasgada numa das fachadas laterais do hotel. 

Acho que só consegui entrar uma vez no Xerazade, pois mais do que a façanha de contornar o porteiro, atemorizava-me, dobrada essa tormenta, o confronto com aquela reserva de louras, umas angélicas outras distantes, que povoavam em brancos e dourados o local. Deus do céu, que poderia eu balbuciar a divindades daquelas e, sobretudo, em que língua e com que sotaque! Não, mais valia a pena ir refocilar a minha ansiedade no rosado corrediço da melancia.

Há umas semanas estive em Faro, hospedado no hotel Eva. Na ruela onde eram a entrada traseira do que foi o Café Aliança não se nota sequer o desnível onde ficava a entrada do Kontiki e a porta para a Xerezade, embora ainda lá esteja, é agora uma triste

e esconsa porta de serviço.

 

 

65. A cidade branca

 

            Alain Tanner, um realizador suíço votado ao sucesso nos anos 70, estreou em 1983 uma história filmada em Lisboa a que entendeu dar o título de A Cidade Branca. Lembro de, na altura, ter ficado um tanto chocado com a escolha da cor, pois Lisboa é cidade de amarelos e rosas – nada tem de branco! Depois, com o passar do tempo absolvi o homem: para quem chegava de onde ele vinha, paragens cinzentas com claridades mortiças, é natural que Lisboa, com a sua luz generosa, pareça branca... 

Em Portugal, Faro, sim, essa é que era a cidade branca, os copos verdes em cima do frigorífico.

            Para um tipo que pouco mais vira do que cidades do norte, chegar a Faro pela primeira vez foi como ter atravessado o estreito mar sem se dar conta e acordar numa localidade da África árabe: Marrocos, Tunísia, Argélia, eu sei lá. O Alentejo, esse, era percorrido numa pressa de deixar as planuras chamuscada por Agosto e chegar à borda de água do litoral algarvio. Quem iria, derretido no banco de trás de um automóvel sem ar condicionado, reparar nas tonalidades de Grândola ou Mértola? A sul, a sul, que na rua Conselheiro Bivar o apartamento já esperava por nós, as chaves prontas para entrega no escritório do Sr. Fagulha.

            Às vezes, para evitar atravessar o Alentejo às horas de maior torreira, saíamos do Porto à noite, de modo a chegar ao Algarve às primeiras horas da manhã, a tempo de tomar um pequeno almoço desentorpecente na serra do Caldeirão, por entre o odor da esteva o pão de centeio acabado de fatiar.

Em Faro, durante o dia, as portas abriam-se para a cal incendiada, impiedosa como um cautério, os nossos olhos cerrados como frecheiras; mesmo à noite a superfície macia dos edifícios parecia reflectir, agora na textura doce de pétalas de jasmim, a brancura caiada da cidade, debruada pelas escamas reptilíneas dos telhados.

Os apartamentos Garantia tinham o recheio parcimonioso, contado, dos apartamentos mobilados e a meia-dúzia de copos de vidro grosso verde-garrafa esperava, militarmente alinhada, em cima do frigorífico – beber era uma coisa que devia estar à mão.

 

 

66. Uma boa horinha

 

            Rezam os actuais itinerários da internet que Ribeira de Pena, um concelho do distrito de Vila Real ainda encostado ao Minho, dista do Porto 106 km e que esses km se percorrem em uma hora e seis minutos.

Pois em 1980, ano em que fui viver por lá, Ribeira de Pena, um lugarejo perdido no nordeste, distava cerca de 130 km do Porto e em dias simpáticos um automóvel demorava duas horas e meia a chegar, tal as curvas serpenteavam do Porto até lá. Nessa altura, Ribeira de Pena era, literalmente, um beco sem saída: entrados na vila e querendo continuar para outras paragens era forçoso dar a meia volta e regressar à estrada por onde tínhamos chegado. Dali, a não ser penantes, não se podia furar noutra direcção e Vila Real, a capital do distrito, nos seus cinquenta km de distância, ficava a uma hora de nós.

No final de Outubro de 1980 Ribeira de Pena inaugurou um Centro de Saúde novinho em folha, pago na sua totalidade por coroas norueguesas. Apesar da bandeja, as peripécias que rondaram a construção, o equipamento e a abertura deste serviço de saúde (feito a pensar numa população que nada tinha) davam para escrever um livro, tendo-se as atribulações passeado pela falência e fuga do empreiteiro, pela construção de estufas de esterilização de material médico feita por fabricantes de fogões de cozinha reconvertidos e, claro está, o todo temperado pelo ingrediente clássico da panela lusitana: a pasmada ineficiência das autoridades de saúde do nível distrital.

Quer pelo isolamento nas serranias, quer pela distância a outros estabelecimentos de saúde mais sofisticados (Vila Real e, sobretudo, o Porto) foi decidido que o Centro de Saúde disporia de um pequeno internamento, o qual incluiria uma sala de partos e respectivas acomodações.

Tendo o Centro de Saúde sido inaugurado à pressa, sob a pressão política do costume, ainda sem o equipamento de que necessitava (abrimos ao público, por exemplo, sem um único medicamento no serviço que ostentava uma tabuleta iluminada a dizer URGÊNCIA), ficou acordado entre mim (o jovem director da coisa), o patronato distrital e os sensatos noruegueses, supervisores do andamento do projecto, que a maternidade só seria aberta uma meia dúzia de meses depois, dando tempo a que se terminassem as obras ainda em curso no sector do internamento, a que o equipamento em falta chegasse e as restantes valências prioritárias (consultas, seguimento de grávidas e crianças, vacinação, urgência) estivessem estabilizadas e a rolar a velocidade de cruzeiro.

Chegou o inverno, um daqueles invernos gelados como só Trás-os-Montes os concebe, e o aquecimento do Centro de Saúde mudo como um mármore: o esquecimento dos construtores em adicionar anticongelante fizera gelar a água na tubagem dos painéis solares que cobriam o telhado e rebentara, para todo o sempre, com o moderníssimo aquecimento sustentável. Sim, é certo que havia a possibilidade de remendar o inconveniente recorrendo ao aquecimento a gás, pois o Centro estava equipado com um enorme reservatório, resguardado numa cerca das traseiras. Mas a enorme botija ecoava de vazia: faltava-lhe o contrato com a firma fornecedora, ninguém tratara disso e eu não tinha nem dinheiro nem autonomia para o poder assinar – era mais um daqueles papéis que ganhavam pó nos sepulcros de Vila Real. 

Numa dessas manhãs geladas, em que percorríamos os corredores batendo os pés para os manter minimamente quentes, a Graça, a nossa energética e competente enfermeira-parteira, sapateou da consulta de Saúde Materna até ao meu gabinete, que franqueou afogueada:

“Doutor Pedro, temos uma mulher em trabalho de parto na consulta...”

Saltei da cadeira, fui dizendo, enquanto corria ao lado dela:

“Temos de dizer ao Albano para ligar aos bombeiras: chamar uma ambulância, mandá-la já para Vila Real...”

“Não vai dar tempo, está em dilatação máxima, é expulsão para menos de meia-hora...”

“Mas por que é que ela não apareceu antes!?”, dirigi toda a minha raiva sobre a cliente, “não andava a ser seguida na consulta?”

Ela abanou a cabeça:

“É um prematuro, pelas minhas contas à volta de sete meses e pouco. A mãe não fez uma única consulta de seguimento, não está sequer vacinada, nada!”

“Então parece que só nos resta inaugurar a maternidade, Graça...”

Num ambiente gelado, na sala sombria e quase nua, a marquesa foi preparada à pressa e o menino (era um rapaz) caiu-nos nos braços quase em silêncio, sem o choro que num momento destes é bom de ouvir. Sim, era um prematuro e pesava 1.600 gramas, um kg abaixo do que deveria pesar um recém-nascido normal! E estava roxo de frio, calado de entupimentos, evidenciando sinais nítidos de quem não se ia safar sem cuidados especiais, um dos quais seria ser enfiado de imediato numa incubadora que o aquecesse, arejasse e resguardasse do mundo exterior. Incubadora que não tínhamos, pois todo o nosso equipamento a vir estava pensado para gravidezes e partos normais. Olha a porra!

“Ai, doutor Pedro, temos de o por andar daqui para fora depressa, que senão ele vai-se-nos!”

“Eu sei, Graça, mas como vamos remeter o embrulho até ao Porto?!”

Não sei se foi a palavra embrulho que despoletou o caminho a tomar, o certo é que a Graça era uma profissional prática e eu um tipo com imaginação. Foi por aí que o nosso olhar caiu sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama onde gemia a parturiente, ainda dorida de um esforço prestes a volver-se inútil.

E assim construímos a nossa incubadora: mandámos o pessoal da cozinha ferver água, encher duas botijas; e que nos trouxessem um rolo de papel de alumínio, daquele de embrulhar a comida que vai ao forno. Depois entalámos as botijas na gaveta, uma daquelas gavetas de metal de mesinha de cabeceira de hospital, e atulhámo-la com rolos de algodão, de modo a parecer-se com um ninho. Finalmente, enrolámos o presente em papel de alumínio, só os olhos e o nariz ficaram de fora, e enfiámo-lo na gaveta com a nossa bênção. A ambulância já ronronava à porta da urgência, as traseiras muito encostadas de molde a diminuir a distância a percorrer pelo bebé sob o gélido ar exterior. A Graça também saltou lá para dentro, para fazer uma entrega mais esclarecida da encomenda aos atónitos olhos do pessoal da Neonatalogia do Hospital de Santo António. 

Uns meses volvidos, já a primavera ia adiantada, a Graça e eu fomos padrinhos de baptismo do menino e tudo acabou em bem. Mau padrinho como sou, nunca mais soube nada dele, mas calculo que ainda circule por aí – deve andar pelos seus 35 anos, agora. Nem ele imagina a boa horinha que teve quando aterrou neste mundo.     

 

67. Paz doméstica

 

            Quem parece estar mais apetrechada para, a qualquer momento, levantar voo e desaparecer por entre as nuvens de estúdio que fazem o fundo do retrato é a minha avó Zaida, propulsionada pelo seu laçarote, imenso como uma hélice, e estabilizada na rota pelas duas pequenas ventoinhas penduradas ao pescoço. Mas, de momento, as três senhoras estão imóveis e o silêncio palpita na fotografia, instantâneo que, a julgar pelas texturas, idades e parentesco de quem ali posa, deve ter sido tirado ainda no século XIX, embora já nos anos de mil oitocentos e noventa e muitos, nas redondezas da última epidemia de peste no Porto, praga que estarreceu a cidade nos idos de 1899. Para onde terá o fotógrafo aconselhado que olhassem, já que nenhuma fixa a objectiva ou um horizonte comum?

A dama do centro, a de peito canoro e bem estofado, é a minha bisavó materna, Emília,Figueirinhas por matrimónio, e a minha tia-avó, Fernanda, apoia-se nela com a moleza de um marinheiro a um mastro. Aquele olhar – de sobrolho um pouco levantado, com ecos de pio de coruja – manteve-o pela vida fora, recordo-o bem, e se aqui lhe dá um ar levemente misterioso, de facto pouco o era e na família próxima sugeria-se a sua pouca sagacidade na narrativa dos deslizes compatíveis a quem não se apercebia com grande acuidade do mundo em que se movia. Dela se contava uma história em que contracenava também o dono de um talho perto da casa dela, um sujeito bronco e intratável conhecido à boca pequena pelo “Caraças”. Pois a minha tia Fernanda, um dia em que a criada não o pôde, foi comprar carne e o tempo todo que esteve ao balcão a encomendar tratou repetidamente o açougueiro por “e queria também que me embrulhasse meia-dúzia de fêveras Sr. Caraças, das do cachaço” não se apercebendo do riso dos outros clientes nem do fumegar do homem! Em casa, a minha tia controlava os acontecimentos como só uma mulher sem filhos e com uma imaginação monolítica o consegue fazer e, dizia a minha mordaz mãe, que o meu tio Domingos, o definhante cônjuge, jazia tão à míngua de confortos gastronómicos que se refugiava no açúcar do xarope da tosse como consolo de sobremesa. Sim, lembro-me dele a tossicar ao canto das salas, a esfregar as mãos e sempre pronto para se levantar e seguir a minha tia no final das visitas.

“Domingos, veste o sobretudo e traz-me o casaco...”, dizia ela levantando o sobrolho em sua intenção.  

Já a adolescente, delicada e de traços finos, do laçarote viria a ter outro tipo de paixões. A minha avó Zaida tinha absoluto terror à água canalizada, que achava tão perigosa de ingerir como se fosse um veneno patenteado, pavor que provavelmente lhe vinha dos tempos pré-clorados em que a água transmitia perigosas doenças, como a cólera ou a febre tifoide. Se estivesse por perto nunca nos deixava beber água e, se forçada a admitir que estávamos demasiado esbaforidos, só da morna, da aquecida, e depois de passada no filtro de porcelana que existia na copa. Ah, o mundo, que lugar tão perigoso, assombrando a paz doméstica com bactérias invisíveis e coristas rechonchudas...
Quem diria, olhando apenas...? Duas rapariguinhas de olhares tão sonhadores, tão desprendidos, nelas podiam pousar as aves na segurança de quem dormita em mármores... E, ao centro, a minha bisavó naquele olhar alçado, entre o rendido e o revelado, de quem vê passar arcanjos.

 

 

68. O broche e o seu contexto


Não quer dizer que não aparecessem de vez em quando a visitar o irmão que morava no Porto, mas o mais frequente era sermos nós a ir lá, a Viseu e aos arredores de Viseu onde elas moravam que, para a maioria, a diáspora foi de raio curto. 
Agora, as cinco ao mesmo tempo no Porto, na escadaria recente da casa do meu pai e todas de broche ao peito? Aquilo foi um acontecimento qualquer, o que seria? A própria inauguração da casa; o casamento da minha irmã mais velha; um aniversário em números redondos do meu pai? Sei lá, falta uma data no verso da fotografia, o meu pai às vezes identificava lugares e datas... Só ali não está a minha tia Ilda, mas essa estava em Angola, no Lobito – tinha bom pretexto para faltar à chamada – o que quer dizer que aquilo é pré 1974, antes da debandada.... e foto a preto e branco condiz com esses dias. 
De resto, estão as outras cinco: de cima para baixo e da esquerda para a direita Clara, Amélia Céu; Celeste e Otília na primeira fila. A minha tia Céu (em último plano, encostada à parede) era a mais velha, foi uma espécie de mãe para o meu pai, tomou conta dele que era órfão como ela, estava sempre atenta e entregava-lhe umas notas amarfanhadas quando o sentia mais apertado com as despesas dos estudos, o meu pai tinha uma enorme admiração e afeição por ela; nós também, porque víamos que era assim e não tínhamos nada que indicasse o contrário.
Por baixo dela, de óculos fumados, está a tia Otília, a tia de bigode como é próprio de uma tia solteirona. Mantinha o buço rapado curto, picante, e deixou-nos tudo quando morreu, ainda andamos a dividir cadeiras de palhinha, louças e cobertores de papa em lotes de cinco; a casa dela vai agora à praça, a parede da sala onde passávamos a passagem de ano tem uma brecha com vista para as silvas do quintal. A mais bem-humorada, embora não se note, é a de olhar arregalado, no meio da segunda fila, a minha tia Amelinha, uma brincalhona gozona, e uma alma doce; casada com um homem também doce e que percebia imenso de alambiques; não tiveram filhos, deixaram pinheirais e matas como quem deixa esquecido um monte de lenços de assoar.
E de tias daquele lado – paterno – estaria tudo, não fora o meu tio Zé, que o outro tio homem que restava seguiu a igreja e, que a gente saiba, não teve filhos das muitas freiras que a gente via esvoaçar em torno dele. O tio Zé partiu ainda adolescente para o Brasil, nunca mais ninguém o viu, nunca escreveu uma linha para Portugal, como é possível desligar assim? Suponho que terá pisado o convés aborrecido, nunca soube com o quê, ninguém falava nisso, havia quem dissesse que o tinham envenenado com assuntos de partilhas e heranças. O meu pai, a quem a ausência fazia mossa, não desistiu de o procurar, mantinha em permanência contactos acesos nos consulados, sempre que alguém dos seus conhecimentos ia ao Brasil encomendava informações como se o Brasil fosse assim a aldeia onde todos tinham nascido. E o que é certo é que um dia teve sorte, recordo a excitação, e não tardou um fósforo que não se pusesse a caminho com a minha mãe, levantaram voo assim que tiveram a certeza que não seriam mal recebidos, que a visita não era indesejada: o meu tio Zé deixara-se descobrir, morava em São Paulo, tinha casado, também não era pai de filhos.

Os meus pais regressaram contentes do Brasil, a minha mãe muito impressionada com as adivinhações e premonições que se praticavam em casa deles, o meu pai impressionado com a mulher dele, uma mulata – como a da canção - chamada Leonor, requintada, professora na faculdade de letras. E assim se fez a minha sexta tia paterna, na foto a cores com a minha mãe e o tio que nunca vi em carne e osso, uma tia mais dada a emoldurar-se com colares do que com broches; talvez a coisa tenha a ver com os descobrimentos e o clima.




© Fotografias; de cima para baixo: (1) Porto, data e fotógrafo desconhecidos, (2) São Paulo, Brasil, fotografia de Eduardo Serrano, 1972.

 



69. Filosofia de alcofa 

 

          Agora funciona lá a Universidade, mas, no primeiro ano da década de 70, era o liceu quem ocupava aquelas paredes, que beneficiava do claustro e da fonte ornamental. Fiz lá as provas finais de três disciplinas – Desenho, Filosofia, Físico-Químicas – na segunda época, isto é Setembro, do então exame de sétimo ano.

Nesses dias havia um exame final à saída do liceu e, imediatamente depois, outro para ingresso na Universidade. Os exames de sétimo ano faziam-se às cinco disciplinas principais e eu chumbei a três delas na primeira época. Inimaginável que pudesse ultrapassar o falhanço ainda esse ano e a tempo de entrar em Medicina, ainda por cima quando só se podiam repetir simultaneamente duas disciplinas; para a terceira era preciso requerer uma autorização especial a uma qualquer Direcção-geral do Ministério da Educação, seria também necessário que um liceu nos aceitasse em candidatura autónoma... E repetir a coisa no meu liceu de sempre (o D. Manuel II, hoje em dia regressado à designação original de Rodrigues de Freitas) era impensável, entre outros senãos menos administrativos porque me pegara com a professora de Filosofia durante a prova. A examinadora era uma solteirona rosnante, de mentalidade disciplinar, e não conseguira ainda sobrevoar dos enquadramentos da lógica socrática, encarando toda a filosofia do século dezoito em diante – a que mais me atraía – com mal-disfarçado desdém. Assim, quando, em plena prova, me ordenou:

“Olha pela janela e diz-me o que vês...”; eu respondi:

“Vejo o céu azul e uma árvore...”; e ela contrapôs:

“E como tens a certeza que é uma árvore?”

“Porque a estou a ver...”

E por aí fora, até ao caldo estar completamente entornado; ela numa de silogismos e eu numa existencial. A coisa acabou mal com ela a chumbar-me e a anunciar que, se dependesse dela eu nunca terminaria Filosofia naquele liceu ou em liceu do Porto e arredores. Acresce que naquele liceu, naquele ano, havia duas professoras de Filosofia escaladas para exames: a outra era irmã dela, uma solteirona tirada a papiro químico...

De algum modo, a que desconheço detalhes, o meu pai conseguiu-me o deferimento da tal autorização para fazer três cadeiras em Setembro e o liceu de Évora aceitou-me como aluno externo para repetir os exames em falta. Assim, num dia de calor abrasador do princípio de Setembro, eu, ele e a minha mãe rumámos a sul. O meu pai voltou para cima logo no final do fim-de-semana, mas a minha mãe ficou comigo, a fazer-me companhia e a vigiar os meus progressos nos estudos, que eu não era de total confiança, como já se tinha visto.

Ficámos instalados na Pensão Residencial Policarpo, em pleno centro, não muito longe da Praça do Giraldo, não muito longe do liceu; cada um no seu quarto e em regime de pensão completa.

Por energias interiores a que ignoro a génese todo aquele enquadramento quase monástico me estimulou e passei as três semanas que vivemos em Évora a estudar como um cão, ainda no outro dia encontrei num armário atacado pelo bolor e pela melancolia os velhos livros desses tempos: um tratado de Filosofia desirmanado pelo manuseio; um compêndio de Química sublinhado com esferográficas de cores diferentes, como se fossem camadas geológicas de repetidas leituras, as margens repletas de anotações alusivas às leis da termodinâmica e à Tabela Periódica de Mendeleev.

Fazíamos as nossas refeições na pensão, mas depois do almoço concediamo-nos um passeio até ao centro, ao Café Arcada, um estabelecimento enorme e sombrio onde a minha mãe e eu tomávamos café sob o olhar severo dos outros clientes, pois a minha mãe – então com 43 anos – era a única mulher no local. As senhoras, na capital do Alentejo, não frequentavam estabelecimentos públicos nesses dias, estavam condenadas a espreitar das janelas como se já estivéssemos em Marrocos.

Bem, aquelas tardes e noites de estudo, sentado na minha secretariazinha estreita da pensão, cismando – como pausa entre capítulos – as tílias e os ciprestes que avistava da janela, deram o seu resultado e fiz as três disciplinas sem grande alarde e magníficas notas, tendo alcançado um 18 a Filosofia, única classificação de que me lembro por ter sido assim uma espécie de estandarte vitorioso espetado no cadáver simbólico da solteirona silogística do Porto.  

 

 

70. Aprendendo o ABC

 

            Meio século depois ainda me interrogo por que raio chamaríamos nós caramileiro ao homem? Seria por causa da bata branca que sempre usava? Nesses anos 60 de que falo havia à porta das escolas e dos liceus uns carrinhos de madeira que vendiam chupa-chupas e outras guloseimas cujo denominador comum eram as cores fortes (vermelho strawberry-fields-forever; verde-papagaio; amarelo goodbye-yellow-brick-road) e a uniformidade minimalista da composição: açúcar e corantes. Minto, alguns deles, uns em forma de guarda-chuva gordinho, eram revestidos de hóstia, a primeira coisa a derreter-se quando, pensativamente, os rodávamos dentro da boca. Divago: frequentemente os vendedores desses carrinhos usavam uma bata para se distinguir, às vezes azul outras vezes branca. Seria por isso que chamávamos caramileiro ao homem? É claro que esta alcunha, embora do domínio universal, não podia ser pronunciada em voz alta, sob grande risco de reguadas, que o caramileiro tinha um feitio algo emotivo. Quando nos lhe dirigíamos era pelo seu verdadeiro nome, isto é: Sr. Araújo, que todos nós, em afinada imitação, pronunciávamos como Seraújo. 

Tudo isto se passou numa zona do Porto conhecida como Amial e, nesses dias, eu morava na Rua Nova do Tronco, uma rua que me parecia a uns 200 km do Bairro da Azenha, onde ficava a escola. Essa distância mítica (a real percorre-se, a pé, em dez minutos) resulta possivelmente de este trajecto casa-escola ter representado o meu primeiro contacto com o mundo exterior, longe das saias da minha mãe e dos muros da minha casa na Rua dos Padres Capuchinhos, como era popularmente conhecida.

Rapidamente me viciei naquela liberdade, nas infinitas possibilidades do trajecto: não é que a gente podia chegar à escola virando na Rua do Amial e subindo a rua da Azenha, mas regressar dela descendo a Rua da Ribeira Grande até à Rua do Amial?! (Demorei também quase meio século a dar-me conta da pressuposta abundância em água do ambiente em que morava: azenha, amial, ribeira grande, arca de água...).

Ao cimo da rua da Azenha, escassos metros antes de se virar para a rua que nos fazia desaguar na escola, havia uma mercearia onde, usando a  semanada ou as moedas surripiadas de sobre as cómodas, comprava todas as caixas de chicletes Adams que conseguia; caixas das pequenas, quero eu dizer, daquelas que traziam apenas dois encantadores quadradinhos cor de neve, polidos e reluzentes como os dentes da frente da Adelina, a minha primeira paixão antes dos onze anos. É que havia duas modalidades de caixas à venda: uma delas – tipo familiar, suponho – continha uma dúzia de chicletes, um empreendimento que não estava ao alcance de qualquer bolsa! Mas as pequeninas desempenhavam bem o seu papel de me fazer sentir rico pela quantidade chocalhante com que me enfunava os bolsos, riqueza que usava quer para uso próprio quer como suborno para vários tipos de favores, como o de conseguir que alguém me mostrasse as cartas com mulheres nuas nas costas das espadas e das damas do baralho, ou me fizesse os deveres do dia seguinte, que eu, andando a escavar um subterrâneo no quintal de casa, tinha mais o que fazer.

Ah, mas o caramileiro, para além de ter olhos nas costas, parece que detinha poderes extrassensoriais! Ficou rubro de raiva quando descobriu que fora o Alvarinho a alinhavar os números da minha tabuada e ainda mais vermelho-apoplexia quando descobriu o meu ritual de trabalho à base de chicletes. Avisou logo que o meu pai ia ser convocado à escola para ser posto a par da bela peça que era o filho, mas, antes, para eu ir reflectindo no assunto, chamou-me lá à frente, perto da sua secretária, e mandou-me estender a mão. Apresentei a direita, pois sou canhoto, e não desconhecia, de experiências anteriores, como ia ficar a palma da mão: vermelha, quente, anestesiada e imprópria durante uma boa meia-hora. Mesmo sem se dar ao incómodo de se levantar, o Seraújo aplicou-me então uma boa dezena de reguadas, que o crime era grande, emitindo durante o processo uns pequenos silvos de esforço e satisfação (não inferiores aos que emite, nos dias de hoje, a tenista Maria Sharapova), para gáudio de todos os outros rapazes da sala, felizes pelo entretenimento e por não ser esta a vez deles.

Calculo que alguns dos que me leem, formatados já por estes tempos de metodologias de educação pacifistas, estejam horrorizados com a violência infantil que descrevo. Nada disso, caros leitores, tudo aquilo era justo e merecido e nenhum de nós o sentia de outro modo: nunca o caramileiro me deu mais do que eu necessitava e nunca o fez por motivos outros que não fossem os da minha irrepreensível educação. Tal como todos os outros que passaram pelas suas mãos junto-me ao reconhecimento público de que era um bom professor e nos deixou bem preparados para o que vinha a seguir.

Na continuação do canto à letra A – a que este texto parece estar condenado: Adams, Amial, Azenha – deixem-me, antes de regressar ao presente, que diga algumas palavras sobre nomes que invoquei em linhas anteriores: Álvaro e Adelina.

O Álvaro era meu vizinho de carteira e todos o tratávamos por Alvarinho ou Varinho. A esta última variação não achava ele grande graça, pois vinha geralmente associada a uma cantilena de rima perfeita com que, em grupo e nas nossas vozes de anjo, o assediávamos. Rezava assim:

 

             Varinho coqueiro, Varinho totó

             Arrebita o cu e faz cocó.

 

            Quanto à Adelina, que poderei dizer que faça justiça à luz com que iluminou os meus dias na quarta-classe? Como que caída do Céu, apareceu de repente na metade da escola onde andavam as meninas e, mal a vi pela cerca à hora do recreio, fiquei fascinado pelo seu cabelo liso e castanho, pelos grandes olhos a condizer, pelos faiscantes dentes da frente. Tinha chegado há pouco tempo ao Amial e morava numa casa moderna e sem telhado que é agora uma escola de condução. No caminho até lá, descendo a Rua da Azenha o mais devagar que conseguiam os meus pés, gastei resmas de caixinhas Adams para conseguir que, por uma brevíssima eternidade e antes de dobrarmos a esquina, me concedesse a felicidade de lhe dar a mão.    

 

 

71. Nos idos de Março

 

            A fotografia foi tirada em Leiria a 17 de Março de 1970, tinha 16 anos. Andava no sétimo ano do liceu e, nesse mesmo ano, em Outubro, entraria para a Faculdade de Medicina.

            Já nesses dias era usual, por altura da Páscoa, os liceus organizarem aquilo que se chamava viagem de finalistas, o que, então, representava, no máximo, quatro ou cinco dias passados não mais longe do que o Algarve. Mas o liceu em que eu andava (D. Manuel II, que voltou ao seu antigo nome de Rodrigues de Freitas) ou não organizou nada nesse ano ou, se o fez, foi uma saída de tal modo desinteressante (talvez ida a Alcobaça ver os túmulos de Pedro e Inês) ou tão açaimada de regras (estávamos no tempo em que tudo era interdito) que alguns dos alunos do 7ºD, a minha turma, resolveram tomar a cargo a organização privada de uma viagem de finalistas.

            Iríamos a Lisboa, essa capital distante e depravada, dois ou três dias, e o planeamento prévio que fizemos resumiu-se a calcular o dinheiro que íamos gastar no aluguer de uma camioneta que nos levasse e trouxesse. Algum de nós, que não recordo qual mas que já deveria ter feito os 18 anos legais, tratou do aluguer do transporte e todos os outros (não mais do que uma dúzia) foram para casa apetrechados com a cantilena comum de que a excursão era organizada pelo liceu e que é claro que iriam professores connosco.

De manhã cedo, num largo não demasiado próximo do liceu para não dar nas vistas, lá apareceu o nosso veículo: uma pequena camioneta que já vira melhores km, o escape vomitando fumo negro e a estertorosa parte dianteira, onde morava o motor, prolongando-se por um nariz a fazer lembrar um jacaré. Partimos, cheios de emoção e vontade de aventura, sem sonharmos onde ficaríamos alojados em Lisboa ou como iríamos entreter as nossas horas. Logo se veria!

Lisboa, nesses tempos, era longíssimo do Porto, a viagem demorava quase meio-dia, a autoestrada desaparecia entre os dedos logo ao sul de Gaia para apenas se voltar a reencontrar já após Vila Franca de Xira; o resto do tempo vogava-se por um país de maravilhas, cheio de meandros bucólicos e contracurvas.

Nova pausa em Leiria para arrefecer o motor, desentorpecer e bater umas fotos em que demos azo cénico ao cunho libertário que nos incendiava; na foto de grupo pode ver-se em primeiro plano, na pose aparentemente mais controversa, o João Fonseca (também conhecido como “o Mexicano”), um tipo muito escuro e feio como um filhote de coruja, mas atraentemente expedito, o suficiente para ter granjeado a admiração comum. Ao lado, enquadrando o meu perfil escuro na sua dança, baila com ele o “Batata” (também conhecido por “Batatinha”), um gordito de quem não recordo o nome usado pelos professores durante a chamada nas aulas. Dos outros todos, só consigo apontar o nome ao Jorge Polónia, hoje professor catedrático na Universidade para onde iríamos entrar seis meses mais tarde.

À saída de Leiria, quando retomávamos a estrada estreita que, como um fio de colar preguiçoso, ia enfiando as terrinhas até à capital, quis a sorte que aparecesse à nossa frente uma camioneta, um veículo de dimensões avultadas e atulhado exclusivamente por elementos do sexo feminino, como muito rapidamente nos demos conta. Deus fosse louvado! Era uma excursão de finalistas, das verdadeiras, com professoras e tudo! Escassos Km foram percorridos até que no grande painel envidraçado das traseiras da camionete desconhecida se juntasse um cacho de raparigas que nos dizia adeus e mandava recados mudos e que, na nossa, para desespero vão do motorista, se amontoasse no para-brisas, em granel, a totalidade dos passageiros, trocando atrevidas saudações que incluíam beijos soprados da palma da mão até além dos vidros e declarações de afecto ousadas a coberto da distância. E um de nós, já não recordo quem, teve a luminosa lembrança de ordenar ao motorista, desgraçadamente à nossa inteira disposição:

“Chauffeur, siga aquela camioneta...”

Em Lisboa, as nossas novas amigas foram despejadas num lar de freiras que havia no exacto local onde a Avenida António Augusto de Aguiar desemboca na Fontes Pereira de Melo, um sítio onde hoje, ocupando o velho edifício a que apenas foi mantida a fachada, se espeta um banco com centro comercial.

Pois muito retornámos àquele cruzamento (logo acima do Marquês) durante a nossa estadia em Lisboa. Em frente, do outro lado da rua, havia um café com esplanada e nós por ali nos demorávamos tentando entrever as nossas beldades. Mas, ai de nós, o contacto era praticamente nulo, pois elas estavam severamente guardadas e o máximo que nos aproximámos foi numa visita de estudo que fizeram à Lisnave, do lado de lá do rio, destino que nos tinha sido soprado clandestinamente por uma delas e nos levou a correr ao Campo das Cebolas, onde o nosso motorista estacionava a camioneta durante aqueles dias e local de encontro oficial para o que desse e viesse.

Da permanência em Lisboa nesses dias pré-primaveris pouco recordo, para além da ida ao estaleiro e das vigílias no café fronteiro ao Lar. Lembro que dormimos numa pensão, barata e terrível, da baixa de Lisboa, um edifício degradado e escuro cujos quartos cheiravam a cediço e a percevejo esmagado. Só depois de os termos alugado (dormimos aos quatro ou cinco por quarto) me apercebi da conotação que então se associava ao Intendente, a zona de Lisboa onde tínhamos ido parar por ser financeiramente acessível, perto do Rossio e do tal Campo das Cebolas onde ruminava o nosso jacaré sobre rodas.

Das fugidias trocas de palavras trocadas com as raparigas da excursão fiquei com o conhecimento de que eram alunas do liceu de Oliveira de Azeméis (ou seria S. João da Madeira?) e guardei o papelinho onde assentara o nome e o telefone de uma com quem chegara mais à fala: era morena, chamava-se Miriam e morava em Cucujães, uma combinação de nome e endereço que tinham para mim um travo exótico, como se ela, com aquele nome pouco comum à época, pudesse ser Americana e residente num qualquer canto da América do Sul, que aquele Cu-cu-jães era onomatopaicamente mais aparentado com um longínquo Cu-cu-ru-cu-cu Paloma do que com uma localidade pacata dos arredores de Oliveira de Azeméis.

Nos meses seguintes visitei amiúde S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis, fui também a Cucujães. É engraçado constatar – e só agora o faço – que, tendo arrastado amigos comigo até esse novo polo de interesses, nenhum foi um dos colegas da excursão a Lisboa. Dá a sensação que o entusiasmo deles pelo aprofundar dos conhecimentos que tínhamos feito na capital com as jovens das margens do Vouga, morrera ali, no meio da estrada. 

E, no entanto, nesse sul tão próximo havia festas de anos, bailes, aos fins-de-semana, mas ao contrário da clandestinidade improvisada dos bailes de garagem do Porto, aquelas festas eram ricas e espraiavam-se por toda a casa, dava comigo, de prato na mão, numa sala de jantar preparada para o efeito, a conhecer os familiares da festejada, a puxar dos meus modos mais educados. 

Depois, sem aviso, ao de leve, os contactos com Miriam e Cucujães esfumaram-se e cada um se perdeu no desenho ao vivo do seu próprio percurso. Sim, lembro-me de manter alguma correspondência com ela, mas dessas cartas não guardo nenhuma nem sei onde se perderam; recordo vagamente que ia passar férias ao Algarve como todos nós fazíamos, a Olhão se a memória... Penso que cheguei a ir lá visitá-la um Verão qualquer... 

E, neste mês de Março, mais ou menos pela data em que a conheci, por uma inesperada simpatia do acaso, eis que chega um truz-truz ao Facebook, alguém que se me dirige porque encontrou o meu rasto na net. 

“Miriam etc. e tal?”, interroguei-me ao ver o nome completo, pois não me fazia soar nenhuma campainha. “Miriam”, voltei a olhar, isolando o nome dos apelidos de família... E, então, tudo o que aqui conto veio à tona na sua clareza de um dia sem nuvens.    

 

 

72. Notícias de outro país

 

            Quando éramos mesmo pequenos, a minha irmã e eu costumávamos ficar em casa dos meus avós maternos sempre que os nossos pais iam de férias a qualquer lado estrangeiro. Significava mudar de país para todos nós: por eles, que iam até Itália ou França ou ilhas, e por nós, filhos, que atravessávamos a rua e entrávamos o portão em frente para dormir em camas estranhas, sentir portas que rangiam de modo diverso das da nossa casa e ouvir vozes que, embora familiares, não eram as que no habitual se iam despedir antes do adormecer. De manhã, na sala onde a minha avó e a minha tia passavam as horas e onde a Dina vinha saber o que ia ser o almoço, podia ir até à janela e espreitar a casa em frente: dali via a janela do meu quarto, o quintal onde costumava brincar, mas não era a mesma coisa como se estivesse lá. Estava separado de tudo aquilo pela ausência dos meus pais, a própria imagem da casa escapara-se aos contornos de um lar... Habituava-me, agora que estava noutra possessão, procurava uma continuação qualquer para os meus dias e se, porventura, os meus pais, ao fim do dia, conseguiam uma chamada lá do país onde estavam, não me mexia para ir engrossar a gente que cacarejava em torno da mesinha do telefone e continuava, dobrado no tapete do andar de cima, a desenhar castelos e aviões e barcos, sem responder ao esganiço do “Pedro anda ao telefone”, como se nada fosse comigo, pois nada comigo era.

Disso mesmo se queixava a minha mãe no postal que me foi endereçado de Palma de Maiorca na primavera de 1959, tinha eu cinco anos. Alguém mo terá lido, uma vez que ainda não sabia juntar palavras e mesmo que o soubesse não haveria de decifrar a letra da minha mãe ou a do meu pai na metade de baixo do postal. Conseguia sim perceber que eram diferentes e enquanto a da minha mãe se desenrolava em curvas como as flâmulas na torre de menagem dos meus castelos de papel costaneira, a caligrafia acerada do meu pai ia deixando marca na paliçada que ornava as margens do fosso do castelo e protegia o acesso à ponte levadiça. A minha mãe perguntava também – para além de estar desconsolada por não ter podido falar comigo – se me andava a portar bem, e dizia que a Emilinha mandava saudades como se isso me interessasse alguma coisa. O meu pai tinha um amigo chamado Dr. Gonzaga, médico como ele, um homem parecido com o Groucho Marx e com uma engraçada voz, simultaneamente rouca e cana rachada, e às vezes ele e a mulher dele iam passar férias com os meus pais a um sítio. Levavam sempre com eles a filha, Emilinha, uma menina, um pouco mais idosa do que a minha irmã de oito anos, que tocava acordeão e vestiam de espanhola à hora do jantar. Os meus pais, ao regressar e contar os acepipes – digo, as peripécias – das viagens referiam sempre que a Emilinha tinha sido posta a tocar acordeão para toda a gente que estava no hotel ou que ia no barco do cruzeiro e parecia-me que contavam isso como se fosse um assunto que teria sido mais sensato não ter acontecido. Acho que a minha irmã Clarinha ficava mais impressionada com a Emilinha, a sua travessa de espanhola espetada no cabelo e o seu acordeão do que eu.  

A metade de baixo do postal começava com o meu pai a dizer “nada de coscuvilhices”, a perguntar como iam os meus castelos e a dizer que tinham vistos muitos “por aqui” onde quer que isso tivesse sido. Talvez me trouxesse alguns, dizia ele, e era tudo antes dos “beijos” já atravancados pela falta de espaço e a invadir a divisória do postal onde se lia impresso: ESPAÑA – Modelo patenteado n.º 55.464. 
Mas o que me tinha impressionado mais naquilo tudo fora a parte da frente do postal e todas as noites – antes de me apagarem a luz – olhava com terror os dedos retorcidos e enganchados da mulher de chapéu que se podia transformar a qualquer momento num monstro ou assim. O postal, ao contrário dos postais que conhecia, não era uma fotografia e conseguia-se mesmo mexer e passar o dedo pela roupa que ela usava para baixo do pescoço tisnado e para cima dos tornozelos. As saias eram de pano verdadeiro e o corpete um género de tricot rematado com laços brancos, de onde saiam os braços – esses sim desenhados no cartão do postal – que se retorciam para trás. O que quereria ela dizer com aquilo? Parecia poder estar a tocar um acordeão invisível que tivesse atrás das costas... Com cuidado, e quando ninguém estava a ver, tentava levantar-lhe a orla da saia, mas por baixo não havia corpo nem nada, só cola a prender uma ponta de renda branca, ali pendurada como as de papel recortado que punham na ponta das prateleiras da despensa.

 


73. A freira vermelha

 

            

Em casa dos meus avós maternos a sala de visitas era um local interdito a crianças não acompanhadas e isso era-nos tão insistentemente repetido que mal detectávamos uma aberta na vigilância dos adultos eramos atraídos para a sua porta como insectos para a luz. Esta porta irradiava já algo de premonitório do mistério e do tempero mágico do interior, pois possuía painéis de vidro martelado que permitiam aperceber uma claridade vinda do interior e, muito facilmente, adivinhar movimento do lado de dentro, como se algum ser com propriedades de mosca ou de réptil andasse a passear-se por lá num deambular que abarcava o chão e a própria altura das paredes. Mas quem poderia andar por ali se a sala não era aberta senão em dias especiais, de festa, ou quando sucedia chegar uma visita de cerimónia que era forçoso manter afastada do coração íntimo da casa?

            Assim, com estas dúvidas a crepitar na mente, era com extremada prudência que um de nós rodava o puxador – não tinha lugar na nossa coragem ir lá sozinhos – e empurrava a porta ao ralenti para verificar que as sombras movediças que pressentíramos através do vidro martelado não tinham tradução em algo palpável ou do domínio do visível. A sala estava vazia e revelava-se-nos, mais uma vez, constante e fria. Mas essa confirmação nunca era suficiente nem definitiva e tornava-se necessário retornar.

            Logo à entrada havia uma mesinha baixa, um tampo de vidro embutido em metal dourado, e em torno dela agrupavam-se um sofá e dois maples, tornados unos não só pela cor verde seco do seu estofado, mas também no modo como encurralavam a mesinha num cheque mate. Neles era proibido sentarmo-nos e apenas o faríamos durante alguns segundos para confirmar a fundura dos assentos e a dificuldade em estender os braços sobre os apoios laterais com o relaxe com que víamos os adultos fazê-lo após terem pousado a chávena do chá. Do sofá, olhando em frente, encostado à outra parede estava um piano vertical e a sua coluna preta – que sabíamos conter as cordas e os martelinhos almofadados – parecia uma chaminé por onde subiriam notas se as pudéssemos tocar. Mas era infinitamente interdito mexer no piano, abrir sequer a tampa que ocultava o teclado e nos cairia sobre os dedos, directa como a justiça divina. Proibição maior, naquela sala, só mesmo a de ousar premir as teclas nacaradas que manobravam o radio-gira-discos, um móvel de madeira severamente envernizado cuja base era preenchida por sucessivos escaninhos secretos onde se arrumavam os discos. Ao fundo da sala, lá longe, havia uma janela virada a sul, mas não a víamos senão de portadas cerradas, porque era virada a sul e a luz do sol, a penetrar livremente, comeria a cor dos tapetes, desvaneceria o forro dos estofos, desbotaria os cortinados. Entre a janela e a parede, uma consola alta em madeira dourada e tampo de mármore recobria a tubagem do aquecimento a água, e sobre esta um relógio com feitio de escultura representava o tempo, como este se deveria contar em Versalhes ou numa qualquer outra capital civilizada. E presidindo acima, nessa parede mais distante da sala, estava pendurado o quadro que fazia fruste a minha estadia no local, tal era o terror que despertava em mim a sua presença. Dentro de uma moldura dourada, de perfil, uma freira torcia-se para olhar quem entrara duns olhos pardos, parados mas vigilantes, sem uma expressão que conseguíssemos interpretar ou da qual se pudesse alcançar aprovação. Era uma freira atípica e embora usasse aquelas toucas rígidas que as freiras usam, na dela só a parte que lhe assentava no topo da cabeça era negra, pois as abas laterais eram de um escarlate sanguinolento, como se o sangue fosse a divisa da sua Ordem. E a estranheza da religiosa não se ficava por ali: os lábios, tinha-os pintados do mesmo vermelho das abas da touca e por entre eles brilhava uma fiada de dentes desdenhosos que – apesar do repousado falsário da expressão – eu achava estarem prontos a morder a qualquer momento. Aquela mulher era, para mim, a terrível guardiã da sala de visitas dos meus avós e, nas tardes em que me era dado olhá-la, seria prolongadamente castigado pela fosforescência maligna da sua lembrança à hora do adormecer, uma vez que era impossível obter alívio do assunto com quem acudia ao quarto a tranquilizar a minha insónia. Como poderia queixar-me da freira vermelha se, antes de tudo o mais, eu não deveria, sequer, ter podido vê-la?

            O tempo correu, passaram anos e décadas sobre a sala de visitas e a casa dos meus avós foi fechada, o recheio distribuído pelos herdeiros e quis a sorte que, entre outros móveis, louças e pinturas, o quadro da freira viesse parar a casa dos meus pais, onde eu, agora adolescente maduro, ainda morava. Um dia, ao descer as escadas do piso de cima, dou com a freira vermelha suspensa numa parede do hall, longe do seu santuário de sempre e exposta num local banhado de luz, cruzado constantemente por gente. E, desassombrado, percebi então que a freira não era freira nenhuma: não passava duma rapariga do povo com um chapéu preto, de copa redonda e aba curta, em que as supostas asas laterais da touca resultavam de um lenço vermelho que usava sob o chapéu, como tanto sucede com as ceifeiras. Mas, apesar da revelação, o meu alívio não foi completo e a qualidade sinistra do retrato manteve-se-me agarrada – não olhava nunca com prazer ou neutralidade naquela direcção, como acontecia se o fazia com outras pinturas que se penduravam por ali. 

            Rodou de novo o tempo, ou a consciência que fui tendo dele, e caiu a casa dos meus pais, como acaba por suceder sempre que as pessoas as deixam e se perdem pela morte e pelo mundo. Por uma questão de segurança, os valores principais da casa foram sendo guardados em arcas e gavetas, mas, tendo em consideração as dimensões, dois quadros foram envolvidos em panos e escondidos na cave atrás da porta da garrafeira, um compartimento esconso, sem janelas ou ventilação: um deles (apeado de degrau em degrau desde os seus dias áureos) era o quadro da ex-freira vermelha. Ali estiveram, os dois quadros, dez longos anos esquecidos, longe da luz e das vistas.

            Um dia coube-me ir resgatá-los e ao desembrulhá-los com cautela do seu sudário ouvi o ruído de algo a tombar. Acontece que o rebordo interior da moldura dourada do quadro da freira vermelha, que eu supunha da mais nobre madeira, era de gesso pintado e, com o tempo e a humidade, esboroara-se. Solta de amarras, uma tábua humilde caiu nas minhas mãos: afinal, o retrato da freira-ceifeira fora pintado sobre madeira, como tanto acontecia às pinturas da Idade Média e da Renascença! Peguei no retábulo e levei-o até à janela mais próxima, examinei-o de perto. Sim, era uma pobre tábua, pinho barato e nem sequer muito espesso. No verso, uma anotação manuscrita indicava a data da pintura (1930) e o seu título. Afinal a freira vermelha, o horror altivo da minha infância, não era mais do que A Micas do Couto, porventura a filha de algum lavrador dentre Douro e Minho por quem, fingindo-se naturalista, se encantara o pintor.

 

 

74. Room Service

 

Na última quinzena de Dezembro do ano que findou, mas sobretudo ao longo das primeiras três semanas de Janeiro de 2021, desloquei-me ao Porto com uma periocidade razoavelmente semanal com a finalidade de proceder ao esvaziamento da casa que fora a dos meus pais e, em tempos, a minha.

Apesar de se encontrar fechada desde 2007, ano da morte do meu pai, que sobreviveu à minha mãe, a casa, com três andares, mantinha intacto o seu recheio e dizer isto não é dizer apenas que conservava o mobiliário nas várias divisões, mas, também, que esses móveis mantinham o seu conteúdo: livros, molduras com fotografias, roupas, caixas de costura com linhas, dedais e tesouras; pratos e talheres; peças ornamentais de madeira, cerâmica e bronze... Havia também espelhos e quadros pendurados pelas paredes; a lenha que sobrou da que era usada na lareira; pneus velhos na garagem, e até alfaias de jardim e mangueiras enroladas no quintal. Tudo, praticamente tudo, do que ali sempre existiu quando lá morávamos todos: os meus pais, as duas minhas irmãs, uma empregada que ali viveu com o marido; vestígios dos anos de universidade em que o meu filho procurou o Porto e a casa do avô para residência.

"Deus abençoe este lar", constava num prato, redondo, de faiança azul, pendurado sobre a ombreira que separava a cozinha do hall.

Mas, ao fim de um longo estágio no mercado imobiliário, a casa fora finalmente vendida e o articulado do contrato de compra e venda, já assinado, fixava que deveria ser entregue, ao novo proprietário, devoluta (ou seja: vazia, desocupada) no dia da escritura, formalidade prevista para meados de Janeiro.

Assim, antevendo que seria empresa árdua e demorada, pus-me a caminho ainda antes do Natal e, juntamente com a minha irmã mais velha e o marido de uma das empregadas da minha sobrinha, cavalheiro que revelara óptimas qualidades na manutenção do quintal da casa quando este se transformou na selva costumeira dos locais desabitados, juntamente com essa ajuda, dizia, demos começo à imensa, interminável e, à posteriori, dolorosa, tarefa de a esvaziar e decidir sobre o que fazer ao muito que ali restava. 

Às cinco da tarde do primeiro dia dedicado a esse empreendimento, o anoitecer de inverno expulsou-nos dali. Em muitas das divisões, as lâmpadas dos candeeiros tinham fundido e, noutras, estouravam mal se dava ao interruptor: a humidade acumulada numa casa fechada é omnipresente e nada lhe resiste, a água é o primeiro corruptor, o ferro que o diga. De modo que, não se podendo contar com a luz artificial, as sombras cresciam como cogumelos e eu sentia-me já arrasado de tanto subir e descer escadas, de tomar consciência sobre o quase nada que fizéramos nessas primeiras oito horas de trabalho.

"Isto vai ter de ficar para outra vez", desabafei, desanimado, ao Sr. Serafim, que regressava dos contentores do lixo com o carrinho de mão vazio e um cigarro pendurado sobre a máscara descaída. Nada que não soubesse desde sempre que iria suceder, mas, nesse dia, pouco mais iniciáramos do que o esvaziamento de arrumos sob escadas e o empurrar para o lixo da papelada sem préstimo evidente, dos objectos avariados ou destruídos pelo tempo há que estavam enclausurados.

As visitas seguintes encadearam-se a um ritmo progressivamente mais intenso, com menores intervalos entre as minhas viagens de meio milhar de quilómetros, pois Janeiro rompera o calendário com o seu primeiro dente e a escritura fora finalmente agendada para o fim do mês.

Cada um vindo do seu sítio, encontrávamo-nos habitualmente na casa por volta das nove da manhã e eu, que ia dormir ao Porto de véspera, era o primeiro a chegar, a abrir cadeados e portões, a subir estores e escancarar janelas; a tentar expulsar a tristeza, a humidade e o intenso odor a mofo e, sobretudo, a tentar fomentar uma corrente de ar que atenuasse, apesar de todos usarmos máscaras, o risco de contágio por Covid19, caso algum de nós estivesse infectado sem o saber. É que, planeadamente, muita gente se cruzava entreparedes em cada uma daquelas sessões: o tipo que vinha ver os livros; o antiquário; a rapariga das velharias; os primos que gostariam de ficar com alguns dos móveis, os operários que vinham substituir um vidro partido; e, amiúde, de surpresa e surpreso com a actividade frenética, o futuro dono, um homem ainda jovem, de atitude e sorriso benevolamente contidos, que surgia para conferir a altura dos degraus da escada para o primeiro andar - a que pensava substituir a alcatifa por piso em madeira - ou, acompanhado de um carpinteiro, para estudar as característica das tábuas de madeira exótica escondidas sob o verniz das portas dos quartos. 

E sempre, sempre, nós os três, os crónicos: a minha irmã Clara, o Sr. Serafim e eu próprio; cabendo-me, o dia inteiro, o ter de responder aos milhentos "o que se faz a isto?". "Lixo", respondia, cerrando os dentes, arfando atrás da máscara. E ao fim da jornada — as tais cinco da tarde em que o crepúsculo e o cansaço nos expulsavam —, ao ligar o alarme e fechar as portas, tentávamos animar-nos reafirmando que já "se notava qualquer coisa". Um qualquer coisa que era o inverso do que fora o encher — alegre, premeditado ou espontâneo — daquela casa, feito a pouco e pouco, ao longo de quarenta anos, ruminava, já metido dentro do carro, enfiando-me no trânsito em direcção à saída da cidade e à noite.

A última sessão, a que esvaziou mesmo a casa e a deixou só paredes e sombras, arrastou-se por dois dias: no primeiro, a associação benemérita que iria levar consigo os móveis e objectos sobrantes, escolheria e carregaria o que lhe poderia render ou servir para alguma coisa, e o dia posterior seria gasto a recolher o que consideravam inútil, os monos imprestáveis, e esse tempo e transporte restantes seriam pagos por nós. Tinha lógica. Havia um frigorífico quase podre, uma arca congeladora roída pela ferrugem que pesava toneladas e jazia na cave; camas e armários que só conseguiriam atravessar portas desmontados. Mas, para além desses, havia escolhos:

"Estes três vão ter de sair daqui à machadada", apontava, empedernido, um dos tipos da tal associação benemérita.

"À machadada, como?"; eu não compreendia como seria possível referir desse modo os dois enormes móveis-estante da sala-de-estar, o louceiro da sala-de-jantar. Um desses armários, onde estivera a TV, concentrara, concorrendo com a lareira, todos os olhares presentes na sala durante décadas; o outro, os livros mais nobres da casa. Quanto ao louceiro, atrás da suas portas de vidro, expusera porcelanas, cristais, tudo quanto havia de mais comemorativo, frágil, colorido e tilintante.

"À machadada, feitos em tábuas! Quem é que você acha que vai querer isto?", perguntava ele, irado de imaginar o trabalho futuro, apontando o imenso móvel da TV, que fora concebido e construído para ocupar precisamente todos aqueles metros entre o chão e o tecto, a lareira e a porta-janela que dava para o terraço.

"O que é que você acha que se pode fazer com uma coisa deste tamanho? Quem é que hoje tem uma casa para isto? Nem dado, alguém o quer! Vai directo para o ecoponto e, antes disso, vamo-nos ver gregos para o arrancar dali!"

Nenhum daqueles três era grego: o que me falava assim - o mentor, o líder da equipa - era português e afeiçoado à entoação de uma rixa de rua; um dos outros ucraniano e o terceiro brasileiro. Unia-os o serem todos ex-toxicodependentes e trabalharem como cães, sem parar nem pestanejar.

"Você é que sabe...", ouvi-me dizer.

"O Pedro, amanhã, não deveria assistir a isso", sugeria a Elisa, que ouvia a conversa e, após regatear um pouco (já tratara de assuntos semelhantes), desistira também de elencar soluções alternativas. O seu aparte piedoso era o que se poderia considerar, pensei, um conselho de merda: atento, bem-intencionado, irrealizável. Como dizer a um morto que não deve assistir à sua autópsia!

O último dia foi 21 de Janeiro, uma quinta-feira, e começou à hora do costume. Nesse dia, como na véspera, estive sem a companhia ou o auxílio da minha irmã Clara e do Sr. Serafim, ambos fechados em casa com Covid19, tal como o meu cunhado e a mulher do Sr. Serafim, a tal que era empregada da minha sobrinha, vejam só a cadeia de contactos! Já vogávamos naquela fase da pandemia em que ninguém fazia a mínima ideia com quem apanhara a doença e eu próprio deixara de estar seguro do meu estado viral! Como companhia, para além dos três carrejões da associação, voltou a aparecer a Elisa, amiga que levou alguns móveis e reposteiros para si, alguns livros, alguma roupa e ajudou onde pôde, como se fizesse parte daquele filme, onde apenas entrara para o último capítulo. O que é o destino, e, é claro que o destino fez de tudo para que nesse dia chovesse a potes e a humidade fosse tão intensa fora como dentro de casa, onde até os espelhos dos interruptores brilhavam de água e estes escorregavam sob os dedos.

Pela hora do almoço a casa estava praticamente esvaziada: restavam os ferros de uma cama por desatarraxar no andar de cima; um armário na cave para desirmanar; e uns sofás pela sala-de-estar, para além de uns caixotes no hall da entrada. Mas era hora de almoço: os homens tinham de o ir fazer à cantina da Associação, e a Elisa tinha de ir preparar o almoço à mãe.

"Eu gostava de o poder convidar", dizia, prevendo o meu destino imediato. É que tudo, fora daquelas paredes, estava já fechado pelo confinamento e não havia restaurante, café ou fosse o que fosse onde se pudesse entrar, sentar, ir.

"Não se aflija, fico por aqui; trouxe umas bolachas e tenho uma garrafa de água ali na mochila."

Solidária, ela deixou-me uma pera e uma banana, antes de arrancar:

"Estou aqui por volta das três", o que era a hora a que os outros três homens tinham combinado regressar para terminar o serviço. E com a saída dela entrou o silêncio.

Depois de lavar a pera na banca vazia da cozinha, levei tudo para o peitoril da lareira e arrastei um nada a antiga poltrona do meu pai para o meio vazio da espaçosa sala de estar, para mais perto da luz frouxa do exterior. Dali a escassas horas aquela poltrona, de morno veludo vermelho, iria ser exilada para sempre, designada aos adereços de um teatro, fazendo companhia à roupa que ainda sobrara pendurada no guarda-vestidos do quarto dos meus pais. Que fim reconfortante, apesar de tudo, quando a alternativa era o lixo ou os contentores de roupa para sem-abrigo. 

"Darão uns belos trajes de época", ajuizava Elisa.

Sentei-me no cadeirão, trinquei a pera, com casca e tudo: já não restava um prato, uma faca naquela casa. Lá fora, a chuva continuava a cair e, como conservava as portas-janelas da sala abertas, o som chegava-me, claro, monótono, aqui e ali travado na queda pelas folhas das plantas do jardim. Olhei o relógio: era uma e um quarto, teria mais ou menos, uma hora para estar ali, sozinho. Por volta das duas e meia iria aparecer o meu sobrinho João, filho da minha irmã Clara, para recolher uns pacotes para a mãe, emparedada em casa pela quarentena covídica.

Foi por aí, entre o cascabulho da pera e o puxar pelas abas da banana, que me chegou o zumbir da campainha. Soube, de imediato, que era proveniente de uma campainha interior, pois as das portas exteriores estavam avariadas e inactivas há séculos; já ninguém, sequer, as pressionava por erro ou esquecimento! 

Acontece que em várias divisões da casa, sobretudo nos quartos de dormir do andar de cima, existia, à cabeceira da cama, gémeos dos usados para acender e apagar a luz principal do quarto, um fio longo, terminando-se por um interruptor na ponta, um manípulo oblongo a que se chamava, precisamente, "a pera". Em baixo, numa das paredes da cozinha, num pequeno quadro com números, era resumida a informação sobre quem chamava: a cada divisão correspondia um algarismo e, quando a pera respectiva era pressionada, uma pestana com esse algarismo, descaía e tornava visível a origem da chamada. Como o zumbido, vindo da cozinha, continuasse, levantei-me e fui ver. Sem grande surpresa, constatei que o algarismo cuja ficha caíra e vibrava era o correspondente ao quarto dos meus pais. Carreguei no botão, existente sob o quadro, que anulava o toque e fazia regressar os algarismos à posição de espera. Nada aconteceu, o número 6 continuou ali, vibrando levemente.

Subi as escadas e entrei no quarto. Como nos outros, os fios da luz e das campainhas jaziam agora ao longo do soalho, como tripas abandonadas e inúteis. Acocorei-me e premi o interruptor da pera: o zumbido cessou. Olhei o quarto vazio e silencioso e voltei à sala e à minha banana. Lá fora, a chuva acalmara um pouco, a luz aproveitava para tentar atravessar os vidros embaciados, mas o interior da sala continuava sombrio, a lareira parecia agora um enorme estaleiro abandonado e ao lado, na parede, havia uma imensa cicatriz rectangular no local onde o móvel da TV fora arrancado. Sentei-me no cadeirão vermelho. Seria a última vez que ali estaria e esse ali, onde estava, já não era bem nada, embora ainda fosse alguma coisa...

O zunido fez-se ouvir de novo na cozinha. Levantei-me e fui verificar. Era a mesma coisa de há pouco e o botão de desligar sob o quadro voltou a não funcionar. Voltei a subir as escadas, voltei a agachar-me no interior do quadrado onde outrora estivera a cama dos meus pais. Carreguei no interruptor da pera, mas, desta vez, não resultou: o zunido continuou a chegar-me lá de baixo. Desatarraxei as duas metades da pera, reconstruí-a, voltei a tentar o interruptor. Nada. Desisti e, depois de ficar um pouco na cozinha, a olhar a pequena placa onde o 6 vibrava, regressei à sala. O som ficou, em fundo, a balir, um balido eléctrico, enrouquecido, até que se terá cansado e parou. Não voltou a tocar.

Às três chegaram todos, primeiro os homens da Associação. Achei-os agora mais cordatos, o mentor já não latia resmungos com a mesma intensidade, o ucraniano dizia piadas tímidas sobre os parafusos que restavam pelo chão e o brasileiro, um tipo dos seus quarenta anos, considerava que era uma bela casa, apreciava a extensão das janelas, aquela parede quase coberta de vidros que dava continuidade à sala de estar e à de jantar.

"Você passou aqui a sua infância?"

"A infância, não; a juventude, saí para ir trabalhar..."

"Deve ter sido bom morar aqui...", alvitrou.

"Sim, sim; imagine isto num dia de sol..."

"Até hoje...", contentava-se ele.

Depois chegou a Elisa, com o ar apressado com que chega sempre a qualquer lugar, um ar decidido, preparado para resolver, dar instruções. Agora os homens da Associação iam ficar por sua conta, tinha-os contratado para irem levar as coisas, das que agora eram dela, a outro destino. 

            "Mas para que quer ela tantas cadeiras?", perguntava o carrejão mentor, apontando a fiada empilhada na sala.

            "É que ela tem um teatro", expliquei, "e num teatro gastam muitas cadeiras..."

Ele encolheu os ombros, suspirou.

"Já mal temos espaço no camião e ainda vamos ter de meter esta merda toda! E o sofá vermelho, também é para ir?"

No final, despediram-se de mim com cotoveladas amistosas, um deles de punho contrapunho e desejámo-nos tudo de bom, que a vida podia ser agreste! Eles saltaram para a cabina do camião, fui ajudá-los na manobra de entrar na estrada.

"Não precisa mais de mim?", perguntou a Elisa, "é que fiquei de ir à frente deles, apontar-lhes o caminho."

"Não, vá, vá; obrigado por tudo. Vou só ligar o alarme, fechar as portas e também me vou pôr a andar..."

"Hoje ainda vai chegar a casa a horas de jantar."

Antes de fechar a porta, olhei para dentro. Da posição onde estava, e com a casa vazia, conseguia ver de uma parede à outra, uma perspectiva que não recordava nunca ter tido. Havia a porta em cuja soleira eu estava, a seguir a porta aberta do vestíbulo, depois o hall, depois a porta corrida que dava acesso à sala de estar e, mais ao fundo, os estores descidos das porta-janelas, por onde se insinuava um fio ténue de luminosidade exterior. Meti a chave na fechadura, olhei outra vez o interior e puxei a porta sobre mim. O alarme iniciou os pios intermitentes de que fora activado.  



              75. Deus abençoe os ausentes


Queirã?! Sim, Queirã, nunca ouviu falar? É natural, eu próprio nunca teria ouvido falar se não se tivesse dado o acaso de o meu pai ter por lá nascido.

Queirã é uma aldeia do concelho de Vouzela, distrito de Viseu, e dizer Vouzela é dizer já o bastante. Estive em Vouzela recentemente e comprovei a vila parada, pasmada. Imagine-se agora uma aldeia recôndita, satélite de Vouzela, sem outro horizonte do que o ficar deslumbrada com essa vila que é o centro do seu sistema solar. Potencie agora tudo isso colocando-se em 1947, quando se passou a história que lhe quero contar.

Junho de 1947, a 2.ª Guerra Mundial terminou há menos de dois anos e a Europa, o Mundo, está em ruínas, em crise profunda: fome, miséria por todo o lado, cidades e vilas são amontoados de destroços, e isto acontece desde a Espanha ao Japão, não esquecendo a Alemanha, que ficou em farrapos. Mas, mesmo num panorama destes, a vida continua para os vivos, é preciso tentar ser feliz, seguir a nossa vida. Posicionemo-nos, então, como se tudo estivesse a começar de novo e o mundo fosse uma tenra esperança.

O cenário mudou para a cidade do Porto, uma rua residencial, tranquila, de moradias abastadas. Um jardim muito cuidado - a exigir jardineiro residente -, cheio de canteiros e esquadrias, trepadeiras, verdes e flores e, pelas roupas leves de quem se passeia, pode inferir-se que estará um dia encantador, talvez de fim de Primavera, e que será já da parte de tarde, pois os corpos projectam sombras nas paredes e nos muros.

Várias pessoas movem-se pelo jardim, vão parando e tirando fotografias, é para elas que olho a tentar entender o que se me apresenta, pois sei que a minha existência, ao menos os seus fundamentos, começou algures ali. O que será aquilo? O que estará aquela gente a fazer e porque é que uma das mulheres parece estar tão tensa, as mãos persistentemente atadas uma na outra? Apesar de não aparentar ter ainda idade para isso (deverá rondar os quarenta), está vestida como uma viúva, e embora sorria e o sorriso seja bondoso, é um sorriso algo crispado, fabricado, de quem preferiria, talvez, estar noutro local. Mas não é viúva, aquela senhora discreta, a quem o saia-casaco só não assenta discretamente por contraste com os outros, pois o tempo é estival e os companheiros estão trajados levemente. Aliás, embora não apareça nas fotografias, o seu marido também anda por aqueles jardins, na companhia de um padre, ainda novo, alto e forte, de feição irónica e despachada. Esse padre é irmão da senhora embaraçada e, ambos, são irmãos de um outro homem, muito moreno, de fato escuro, em quem sobrenada a atitude de ser o elo entre aqueles dois mundos e parecendo preparar-se para continuar a frequentar aqueles jardins.

O que explica tudo aquilo? O que andarão aquelas almas, os que foram fotografados e os outros, fora do enquadramento, a divagar por ali, naquela tarde de 4 de Junho, uma quarta-feira?.

A cena retrata o pedido de casamento da minha mãe, que acabou de fazer 21 anos há escassos dias e é a rapariga de cabelo ondulado e ar um pouco aéreo, envergando um casaco ligeiro e claro, às riscas, praticamente igual ao da sorridente irmã mais nova, essa, sim, nas suas sete-quintas e aparentemente divertida com o acontecimento: um pedido de casamento deve ser coisa positiva e divertida, certo? O homem de fato escuro tem 31 anos feitos e é o meu pai, e uma outra dama, que também sorri contidamente à ponta de um banco, é a minha avó, mãe da noiva, a qual se deixa ver em apenas uma das fotografias, após o que desaparece, o que terá sido fácil pois está nos jardins bem tratados da sua casa, o que não sucede com metade da comitiva, vinda de Viseu, a mais de cem quilómetros e três horas de viagem. 

Pelas sobras da tarde, o jardim fica por conta dos visitantes, e o meu avô, o pai da noiva, não deu sequer abertura para descer e posar para a posteridade, como se esperaria de uma solenidade daquelas. Onde estará? Supõe-se que tenha estado nalgum momento anterior, uma vez que a mão de uma filha requer-se na presença de ambos os pais e a ele lhe competiria a palavra final. Mas esse momento já terá sido e o restante entretenimento fica por conta do mulherio, o mulherio que entretenha os visitantes, ele terá mais do que fazer e, bem vistas as coisas, tudo aquilo não lhe agrada sequer muito, não seria o que esperava como futuro para uma filha mais velha. Mas, enfim, os jovens são teimosos e a filha, embora obediente à superfície, tem uma ponta de personalidade; fôra dificultoso impedi-la de querer continuar os estudos e ir para a Universidade, convencê-la do que se esperava dela: que cumprisse o destino e ficasse em casa, entretida a ser uma senhora como as outras!  

O meu avô era, à data destes acontecimentos, um homem poderoso, gerente de um banco, como ocupação principal, e uma figura conhecida na cidade, capital do Norte, pelas costelas artísticas, as herdadas e as desenvolvidas: o homem escrevia, editava revistas, livros e almanaques; era sócio de uma livraria, de uma editora e de uma tipografia; escrevia e produzia peças de teatro e uma delas, A Costureirinha da Sé, estreada há um par de anos, fora um sucesso, não só regional mas também nacional, acabaria por dar um filme, as canções do enredo eram trauteadas pelo povo da cidade. Era esse o mundo em que se movia e agora a sua casa apalaçada, onde onze arcos de pedra embelezavam a arquitectura das fachadas, a sua vida via chegar, precipitadamente, um potencial genro de Queirã (uma aldeola atrás do sol-posto), dez anos mais velho do que a filha, mas licenciado em Medicina há pouco mais do que meses, pois desperdiçara grande parte da juventude num seminário!; um tipo sem nome, sem carreira, sem cheta.

Se deslocarmos a lupa para a perspectiva do meu pai, duplamente órfão há muitos anos, topamos rapidamente na razão que explicava ser a irmã mais velha a fazer as vezes de patrono no pedido de casamento. A Maria do Céu, oito anos mais velha, não restara outra saída senão a de fazer de mãe dos irmãos (dez, contando com ela); tivera de crescer depressa e o meu pai reconhecia-lhe o estatuto com naturalidade: era junto dela que se aconselhava, a quem pedia dinheiro emprestado se estava atrapalhado, era em casa dela, em Viseu, onde residia quando não estava na Universidade, era por lá que tinha quarto e uma cómoda onde guardava os esquálidos pertences. Nada mais natural e apropriado, então, do que pedir à irmã para assumir aquele papel, e o meu tio Vasco (o padre) garantiria um complemento lógico com o seu estatuto, a sua voz forte e o modo de ser assertivo.

Mas como raio, divago eu imiscuindo-me nos eventuais pensamentos do meu avô Heitor Campos Monteiro, fôra aquilo chegar a acontecer? Onde é que um tipo daqueles, escuro como um mouro e peludo como um macaco, teria conhecido a filha e como se pudera aproximar dela? O meu avô, de pele clara e louro nos tempos em que tinha cabelo, conhecia bem o círculo de amigos da minha mãe - a maior parte deles frequentava-lhe a casa -, teria uma ideia razoável dos pretendentes que, necessariamente, surgiriam na costa, dado que a minha mãe era viva, bonita e carismática, dotada de uma apreciável capacidade de manipular o ambiente e concentrar atenções. Com todas esses prendas, distinguia-se no Porto, em Espinho, pelas termas de Melgaço, em Santa Cruz da Trapa, em Oliveira de Frades e até, de passagem, em Vouzela, onde havia uns primos distantes e, imagine-se, se organizavam bailaricos! E surge o acaso a fazer das suas, a divertir-se com o improvável, e o meu pai terá visto a minha mãe, pela primeira vez, dentro das fronteiras do território natal, teria ela catorze anos e ele vinte e quatro. O mundo teria ainda de cumprir várias rotações em torno do eixo, passar por uma guerra generalizada, até que uma aproximação se desse, desta feita em Espinho, onde a família da minha mãe veraneava e, por lhes estar mais à mão quando se traçava a linha recta, as gentes da Beira-Alta procuravam o litoral. 

Nas décadas seguintes o futuro escreveria a história de ambos e, afinal, o meu pai não desiludiu. Mas quem consegue prever o futuro a partir do horizonte estreito de uma bela tarde de Junho?

 


 




 

Nota: O título deste texto está em dívida para com a canção "God Bless the Absentee", de Paul Simon, álbum One-Trick Poney, 1980.

 

  



                             76. Coincidências



Em um dia lastimosamente chuvoso do mês de Janeiro de 2021 olhei, por uma última vez, o interior da casa que acabara de esvaziar e fechei a porta sobre mim. Aos meus pés, no lado exterior da soleira, quedava o caixote de cartão onde fora enfiando aqueles pequenos objectos que, embora sem utilidade previsível, não consegui deixar no contentor de lixo mais próximo. Peguei o caixote, meti-o na mala do carro e virei costas ao local em que morara até abandonar o ninho paterno e onde, sem ter de me interrogar, entrara e saíra durante os últimos cinquenta anos.

Um dos despojos abrigados no caixote consistia em dois ou três maços, ainda cintados, de cartões de visita do meu pai, pequenos rectângulos de cartolina branca de 9 centímetros de comprimento por 5 de altura. Como deitar fora, assim, sem mais, algo tão tremendamente pessoal? E, arrastando-os comigo, olhando agora para eles entre as paredes da minha casa, como dar-lhes serventia sem vir a ser assaltado pela sensação de que o fazia indevidamente? Uma coisa é passarmos um traço de caneta sobre o nosso nome num cartão - pretendendo com esse gesto suspender ou atenuar a nossa persona - outra, muito diferente, é riscar o nome por outrem, por uma pessoa que não pertence já sequer ao mundo dos vivos, mas cuja lembrança permanece viva em nós. Seria o equivalente a negar-lhe a voz. Tendo decidido que os conservaria, resolvi então que os utilizaria como marcador de livros, para rabiscar notas pessoais ou memorandos, enfim, como algo prestável mas usado somente em circuito fechado e que só poderia ser prescindido após ter cumprido a sua função de mensageiro. Eram algumas centenas, chegar-me-iam para muitos meses, porventura alguns anos...

Passei a tê-los em profusão ao alcance dos olhos, sobre a secretária, a encontrá-los pousados em diferentes locais da casa, esquecidos em cima de uma mesinha acabado que fora o livro em que usara um deles para marcar páginas. Mas, um dia, dei comigo a olhar atentamente para um desses pequenos rectângulos, pois, por razões que ignoro, a sua individualidade descera sobre a minha consciência. Reparei então, e pela primeira vez, que no cartão constava apenas o nome nu do meu pai, sem o atributo prévio que costumava ilustrar o papel de receita ou cartões anteriores em que a sua profissão de médico era assinalada com um 'Dr.'. Observei também que na morada inscrita no rodapé constava já um código postal de sete dígitos e um número de telefone com nove algarismos, o que me permitiu concluir serem estes cartões relativamente recentes, pois datava de 1999 essa alteração na extensão dos números de telefone. Daí o pensamento saltou rapidamente para o meu pai, falecido em 2007, e para esses dias em que terá decidido mandar substituir os velhos cartões de visita por novos cartões em que toda a vida anterior, vincada sob traços de uma profissão, fora mandada apagar. Conhecendo-o, estou certo de que essa decisão terá sido longamente premeditada e o instante em que a tomou sentido como um degrau que se desce num caminho até pouco antes ascendente, pois que a existência passa depressa como um sopro. Mas o meu pai não era pessoa de se anunciar, de se queixar, de tudo isso restou apenas um vestígio e a minha interpretação.


Intrigado e impressionado pela revelação silenciosa, vasculhei os meus papeis na tentativa de encontrar um papel de receita dos seus dias activos como médico, queria comparar o que constava num e noutro desses documentos de uso tão exclusivamente pessoal e onde não havia lugar a manuseio de terceiros. Encontrei, quase perdida, uma única folha amarelada, em cujo cabeçalho está inscrito o nome, a actividade médica, e duas moradas, uma profissional e a outra pessoal. A primeira indica o seu consultório na Rua de Sá da Bandeira, no Porto, um prédio de esquina, de fachada arredondada, onde, em criança, fui levado frequentes vezes, pois no mesmo andar - o terceiro - ficava também o consultório do meu pediatra, do pediatra das minhas irmãs. Desses dias longínquos e desse local retinha imagens remotas e vagas, a necessitar que uma nova visita as refrescasse e cristalizasse com nitidez...  

Havia um elevador estreito, forrado a madeira escura, com uma porta de correr de malha de ferro que produzia, ao ser movimentada, o ruído de sabres entrechocando-se, armaduras de metal. Depois, à saída do elevador, erguia-se uma porta em cada lado do átrio, que na sua mudez expectante de ferragens e vidro martelado, quase gritava que a responsabilidade pelo mundo onde entraríamos seria totalmente de quem chegava e escolhia à esquerda ou à direita... Mas a nossa mãe sabia a campainha a que tocar e quando a porta se abrisse com um traquejo eléctrico estaríamos num vestíbulo onde, atrás de um balcão de madeira (tão escura como a do forro do elevador e a do painel da porta), se sentava uma senhora que, ruidosamente, nos saudava, envergonhando-nos perante as outras pessoas que esperavam consulta numa sala de porta aberta e, sem mais nada para fazer, se entretinham a ouvir quem chegava e qual o seu destino em termos dos quatro ou cinco médicos que ali prestavam serviço.

Mesmo se o fito da visita não fosse o nosso pai, mas, antes, consultar o médico de crianças, esta não aconteceria sem que, depois, ele fosse alertado da nossa presença, fosse pela recepcionista, fosse pelo próprio pediatra que, finda a consulta, atravessaria o espaço para ir bater à porta do nosso pai para o informar que ali estávamos e qual o resultado do nosso estado de saúde, informação que ficaria também na posse do doente sentado em frente ao meu pai e ressoaria no lençol da marquesa onde se deitavam, se enroscaria no tampo rotativo, para ajustamento da altura, do banco e, finalmente, pousaria numa das prateleiras do armário envidraçado onde eram guardados os instrumentos do ofício e as amostras dos medicamentos.

À saída, fechou-se a porta desse terceiro andar em Sá da Bandeira, bateu-se a porta do elevador, encostou-se a pesada porta de ferro forjado e vidro martelado da saída e uma dessas vezes, sem o saber, fora a última em que ali se entrara. Pela mesma última vez fechou-se depois a porta da casa onde eu morara e a tampa da bagageira após aí ter acondicionado o caixote com os cartões de visita do meu pai. 

Após a sua morte tornou-se necessário tratar de heranças e partilhas e quem melhor do que um advogado competente para desenrolar esse novelo, aliviar do algo doloroso que é olhar esses assuntos do ponto de vista legal? Saído do Porto há mais de trinta anos, eu não conhecia ninguém, mas o Vasco e a Margarida, filhos da minha irmã mais velha, sabia de um, a quem costumavam recorrer, excelente, segundo diziam de serviços que lhe tinham sido prestados. Marcou-se uma entrevista e um dos meus sobrinhos forneceu o nome e a morada aonde me dirigir. 

Era na Rua Sá da Bandeira e ao chegar ao local e confirmar o número da porta olhei com um misto de espanto, temor e expectativa o prédio arredondado, de esquina, onde ficara o consultório do meu pai, do pediatra... O andar do advogado, dizia o papel que eu guardara na carteira, ganhava agora uma luz de impossibilidade: era o terceiro, como só acontece nos filmes e nos contos.

E o elevador continuava a ter uma porta de correr, a ser forrado a madeira escura e, em cima, o átrio mantinha as mesmíssimas portas de vidro martelado e ferro forjado e até a campainha continuava a soar como um besouro sonolento. Mas tudo tinha um ar recente, classificado, cuidado: a decadência dos anos corridos não afectara nem entristecera o local, provavelmente fora tudo restaurado por alguém sabedor, atento e reverente ao que encontrou. 

A porta abriu-se com um trincolejo e, atrás de um balcão de madeira escura, uma menina sorria e, pela hora, adivinhava que eu seria fulano, à procura do Dr...

"O mundo é pequeno", disse o advogado quando, sem o conseguir evitar, lhe transmiti a incredulidade pela coincidência do local onde o encontrava.

"Tinha uma ideia que o consultório do avô ficava por aqui, mas não sabia que era neste prédio e, muito menos, neste andar", comentou a Margarida com naturalidade, rodando as páginas do seu Moleskine e preparando a esferográfica.

Muitos meses corridos sobre esta primeira consulta jurídica e na sequência dos seus frutos regressei à cidade para a escritura da venda da casa de onde levara os cartões de visita. Era inverno outra vez, chovia e rondava no ar aquela bruma espessa de que o Porto é pródigo. Ao contrário de outros tempos, em que os cartórios eram avaros e rígidos como repartições, agora eles abundam pela cidade, o advogado pôde escolher o mais conveniente e o local parecia-se mais com uma agência de viagens: tinha-nos calhado um vizinho do Mercado do Bom Sucesso, cuja existência eu ignorava de todo. No final, ao sair para o exterior, a bruma tinha-se dissipado um pouco e embora continuasse a chover era claro o pedaço de cidade perante mim. Do outro lado da rua, a escassas dezenas de metros, erguia-se um prédio onde nos andares mais baixos está instalado um centro comercial, espaço que se pode atravessar até sair por uma das portas das traseiras que deita para a Rua da Meditação, artéria curta e discreta cujo topo é constituído pelo muro do cemitério de Agra Monte. Ao contrário do que tudo faria crer, o meu pai não escolhera o jazigo de família do cemitério mais próximo da sua antiga casa, nem sequer o outro Prado do Repouso onde jaziam as cinzas da minha mãe, falecida uma dúzia de anos antes dele. Por razões que nunca revelou, optou por uma campa naquele cemitério cujos ciprestes e cimos de jazigo eu podia vislumbrar dali, à porta do cartório onde a sua casa, por mãos que ele conhecera bem, mudara para mãos que ele nunca conheceria. 

© Fotografias de pedro serrano, Porto 2018.







 





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Vou-te Contar (2010-2021), Pedro Serrano & Produções Variância


CRÉDITOS DAS IMAGENS

Capa: Desenho de José João Serrano.
Fotografias:
1.ª foto, Pedro Serrano (PS), Lisboa, 2009.
2.ª foto, PS, Lisboa, 2009.
3.ª foto, fotógrafo desconhecido, Oliveira Barreiros (Viseu), 1964.
4.ª foto, avós Virgínia e João, fotógrafo e local desconhecidos, [1910?].
5.ª foto, PS, Porto, Novembro 2010.
6.ª foto, PS, Porto, Julho 2010.
7.ª foto, Eduardo Serrano, Egipto, anos 80.
8.ª foto, PS, Porto, Dezembro 2009.
9.ª foto, fotógrafo desconhecido, Porto, anos 50.
10.ª foto, PS, 2010.
11.ª foto, PS, Viana do Castelo, 2008.
12.ª foto, PS, Braga, 2011.
13.ª foto, PS, Porto, 2008.
14.ª foto, fotografo desconhecido, Vizela, anos 30[?].
15.ª foto, Porto, Dezembro 2010.
16.ª foto, PS, Porto, Julho 2010.
17.ª foto, fotografo desconhecido, Índia, Julho 1976.
18.ª foto, Foto Beleza, Viseu/Porto, 1929/1939[?].
[em actualização]

5 comentários:

  1. Ficou bem o vou-te contar assim em compilação.
    bjs
    annie

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  2. @ Annie, Ainda não tá pronto e faltam as fotos, mas lá irá. Beijo

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  3. Boa tarde Drº Pedro por mero acaso entrei aqui no seu bloog e digo-lhe que estou a gostar muito.Nesta sua pagina chamou-me a atenção sobre a casa aonde morava pois eu tambem morei nessa rua 14 anos aliás nasci aí eu morava ao lado do café escreve aqui que é primo de uma Zaida pois eu andei na escola primaria com ela e gostaria de saber dela,tambem fala da Tomasia e dos filhos eu fui muito amiga deles e tambem perdi o rumo deles.Fez-me relembrar a minha infancia ,eu saí daí em 1970 fui para Angola agora estou na Ilha Terceira.Vou continuar a ler o que escreve e dou-lhe os Meus Parabens.Meus Cumprimentos. Ana Maria

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  4. @ Olá, Ana Maria. Muito obrigado pelos seus comentários e prazer em ouvi-la ao fim de tantos anos! Falei em si à minha prima Zi (Zaida) e ela pediu-me para eu lhe dar o mail dela. Será que me podia mandar o seu mail através do contacto de mail que tenho na página principal do blog? A Tomásia ainda continua na rua Nova do Tronco, tem uma tabacaria na esquina. Quanto aos filhos dela (Clara e Eduardo) não sei deles, mas penso que estão bem. Votos de felicidades para si aí nos Açores e na Terceira (trabalhei um ano como médico na ilha Graciosa!). O mundo é pequeno! Beijinhos e volte sempre aqui.

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  5. Bom dia Drº Pedro desde já agradeço a sua resposta ao meu comentario, na impossibilidade de enviar o meu email pela sua pagina principal, vou enviar por aqui teixeiraterceira@gmail.com.Meus Cumprimentos Ana Maria

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