13 outubro 2011

PERDIDOS & ACHADOS


A ideia, combinada no dia anterior, no final do casamento, era tomarmos o pequeno-almoço juntos antes de cada um debandar para seu lado.
“Ó, pá, qualquer coisa leve, tipo tosta mista ou assim; não me quero empanturrar com almoçaradas…”, fui avisando eu, ainda cheio do desvario de comida da véspera e gato-escaldado das boas mesas que abundam por Viseu.
“Eu quero sair cedo”, alertou outro, “para não chegarmos de noite…”
Toda a gente achou bem. Na véspera, quero eu dizer.
Aquele último Domingo de Setembro amanheceu em azul e dourados e, por volta do meio-dia, encontrámo-nos os seis nas escadas do hotel, olhando com deleite a luz coada através dos grandiosos plátanos que sombreiam o parque de estacionamento do Grão Vasco.
Sem rumo, na busca de uma esplanada aprazível para o tal pequeno-almoço tardio, fomos deambulando pelas ruas mornas e pacatas de Viseu e quando dei por mim estava abancado à protecção de uma das muralhas da zona da Sé a comer morcela assada com grelos…
“Vamos só ali espreitar o claustro da Sé...?”, propôs, no fim do almoço, um de nós que nunca lá entrara.
Duas horas depois, sentados noutra esplanada do centro da cidade, tomámos café enquanto mirávamos com satisfação de proprietário os sacos com o pão-de-azeite, as empadas de galinha, o pão-com-erva-doce, a bôla de sardinha e outras raridades que só se encontram em Viseu e que com tínhamos tido a dita de topar.
Saí da cidade era já tarde avançada e a luz do sol declinante, batendo de chofre no para-brisas e encandeando-me os olhos, mais as sucessivas rotundas em que tropeçava fez com que perdesse a ligação à A25 e me confundisse por uma estrada secundária, guiando sem indicação alguma para onde me dirigia.
Entretanto o disco do sol desaparecera e a paisagem por onde me movia, uma estrada estreita ladeada por pinheiros, castanheiros e matas de carvalhos, banhava-se na calmaria silenciosa que antecede o crepúsculo. Mais ao longe, acima do nível imediato dos meus olhos, uma crista de serrania assumia um contorno uniforme, nos tons azul-lilás de um réptil que se prepara para dormir. A música que, distraidamente, vinha a ouvir, fez-se notar por ter findado e seguiu-se o silêncio que, a partir do porta-CD aparafusado na mala do carro, precede a escolha e entrada em funcionamento do CD seguinte. Acolhi a coincidência sonora com um sorriso ao reconhecer as notas de piano iniciais do primeiro andamento do Nocturno n.º 1 (opus 9) de Chopin.
Sim, serpenteava ao sabor de uma estradita cheia de curvas na qual era raro cruzar-me com alguém, onde o entardecer vestira as árvores de um manto reflexivo e a minha banda sonora não podia ser mais apropriada, pois também a música propiciava um ambiente em que pouco mais sobrava do que eu e a natureza lá fora. Uma paisagem que sempre estivera ali, como se esperasse, imutável e longe do ruído do mundo, que me desse conta dela e que, só pela presença, me ia demonstrando a cada curva do caminho que “nada resta para além disto, viajante, tudo o mais, cedo ou tarde, se tornará longínquo e imponderável”.
Tocava-se agora o larghetto do opus 15 e, à esquerda da berma, vi surgir uma pequena placa; finalmente iria saber onde estava, pensei. Embora, à escala lógica, a sequência de coincidências se estivesse a tornar cada vez mais improvável, foi quase sem surpresa que dei a informação como adquirida: a placa que ficara para trás indicava um acesso desconhecido a Queirã, a aldeia perdida nas faldas do Caramulo onde nasceu o meu pai e onde, anos a fio, passei os Setembros da infância e adolescência.
Continuei a guiar e, sentindo-me  bem na minha pele como quem acaba de sair de um spa com massagem, desaguei em S. Pedro do Sul, localidade em que, após aquelas duas dezenas de km sem rumo, encontrei a primeira placa que indicava o meu destino mais imediato. Em Vouzela, já noite cerrada, entrei na IP5 e misturei-me às sombras rápidas que, guiadas pelo farejar dor faróis, demandavam com urgência o litoral.

© Fotografia de Pedro Serrano, Viseu, 2011.

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