03 agosto 2011

O BOMBO DA FESTA

Sim, de certeza que também li algo como isso em escritores definitivos, mas a referência que lembro mais vividamente é a de um livro construído em torno de uma entrevista com o cineasta Pedro Almodóvar (Conversas com Pedro Almodóvar, de Frédéric Strauss, editora 90º, 2006). Um livro espantoso, deixem que o diga, onde se descobre o que já se poderia suspeitar vendo os filmes do realizador espanhol: Almodóvar é um tipo muito inteligente e culto, um conhecimento de largo espectro que chama continuamente à colação literatura, a história do cinema, a música; nada nos seus filmes é gratuito ou produto do acaso, incluindo o kitsch.
Uma das coisas que ele, a páginas tantas, diz é que “a linguagem cinematográfica é feita de imagens que caminham para o futuro, mesmo que as histórias que contamos mergulhem no passado”. Bem, esta frase é o começo de uma ideia que desenvolve e que termina afirmando:
“E por vezes, prefiro não pensar demasiado nisso, as imagens condenam os seus criadores a suportar a dor que destinaram às suas criaturas.”
Ou seja, ele acredita, como supersticioso que é, que a ficção corre grande risco de se tornar em realidade e irromper na vida de quem a criou, é só uma questão de deixar passar uma quantidade de água suficiente debaixo da ponte onde nos debruçamos a sonhar e a cuspir na água. Já acreditei muito mais que isto era um disparate do que nos dias de hoje...
Entre 2002 e 2004 escrevi um romance que andei a imaginar nos dez anos precedentes. Chamei-lhe No Verão Fico Sempre Mais Nova e é a história de uma banda de música que anima festas populares e bailes xungosos, numa cidade do Porto ambientada no começo dos anos 70. Os músicos, personagens centrais da trama, são em número de seis e costumam ensaiar na cripta que existe por baixo de uma igreja e que uns franciscanos simpáticos lhes emprestam, juntamente com algum do equipamento musical.É óbvio que não imaginei esta cripta do nada, eu próprio, durante a minha infância e adolescência, morei em frente a um convento destes, frequentava os festejos pios, de Natal e outros que por lá se realizavam, nessa cave tive sinistras aulas de catequese, uma vez, sem exemplo, cheguei mesmo a harpejar timidamente um violão em cima daquele palco, acompanhado ao acordeão por um ruivo chamado Alfredo, que hoje é médico nas redondezas... Mas isso é uma coisa, outra muito diferente é receber, na caixa de correio de minha casa, uma carta manuscrita de um gajo que se introduz com um “Amigo Pedro”, que aconteceu ler o romance e, a propósito da banda que, na minha imaginação, ensaiava nessa cripta, me envia uma antiquada fotografia onde aparece um conjunto que ensaiava nessa cave sob a igreja, o mesmíssimo palco de tábuas por aparelhar que descrevo na minha história.
A foto celebra o primeiro concerto que deram, o meu correspondente é o que está sentado à bateria e, no penúltimo parágrafo, aproveita para confessar que esta foi emprestada pelo conjunto de Tony Hernandez, na altura o agrupamento musical mais famoso do Porto. Suponho que estamos a falar de factos, não acham, queridos ouvintes? É que, se olharmos bem a frente do bombo, lá estão um T e um H convenientemente entrelaçados, como só o tempo e uma história conseguem entretecer. 

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