I’s four in the morning,
the end of December...
"Famous Blue Raincoat", Leonard Cohen (1971)
A primeira vez que entrou cá em casa foi num caixote de papelão, transportado pelo Zé João que, no caminho de volta da escola primária, a encontrara na valeta da rua.
Era uma gatita tigrada e parecia perdida no fundo do caixote, trémula de fome e abandono, o ar desgraçado que nem as pulgas poupam. Devia andar pelos seus três ou quatro meses, a idade em que as mães as sacodem das mamas e agora desenrasca-te.
Demos-lhe um banho de banheira, carinhosa água morna com shampô, baptizámo-la Tangerina, levámo-la ao veterinário para uma geral e, em total naturalidade, tornou-se o quarto elemento da família.
Tangerina era uma gata de temperamento dócil, ao contrário da Mia, sua sucessora, que aprecia companhia mas não contacto físico em demasia, e gostava de se vir enroscar ao nosso lado no sofá. Quando, a meio do Verão de 1999, regressei a casa, com movimentos hesitantes e uma costura no peito ainda fresca por ter sido operado ao coração, recordo que ela me procurava e se aninhava sobre mim, o coração batendo em sincronia contra o meu, naquela posição de esfinge que os gatos adoptam para se ensimesmar. Ali ficávamos os dois, no sofá, eu sentindo amolecer a minha mortalidade à medida que o ronronar dela se ia espaçando e a paz do silêncio tomava conta dos dois.
Dois mil e um foi um ano terrível para todos nós, suponho. Quando o Outono chegou, já estava razoavelmente recuperado da minha doença cardíaca, provocada por um excesso de radioterapia e que não me matara por um triz. Foi por esses dias que Tangerina, uma gata que, tal como eu, apenas começava a meia-idade, apareceu doente, uns sintomas estranhíssimos que a conduziam a crises de agressividade não dirigidas a ninguém em particular ou a ter o que pareciam crises de pânico sem estímulo aparente. O veterinário torceu o nariz, aquilo era a tradução neurológica de uma insuficiência renal, doença comum nos gatos, e nada havia a fazer, iria progredir... Assim foi, o comportamento da gata foi-se agravando a cada semana: deixou de nos reconhecer, acossada por seres invisíveis escondia-se nos cantos, às vezes procurava as poças de sol nos tapetes, no chão de madeira das salas, ali ficava, imóvel, imersa em tristeza, presa do lado de lá de uma névoa qualquer. E quando se arrastava pela casa partia-nos o coração assistir àquilo que fora e aquilo em que se transformara, pois algo se quebrara nela e perdera, de todo, a elasticidade e o pisar leve dos gatos, progredia pelo corredor em movimentos espásticos, assimétricos, como se alguém tivesse feito a maldade de a embebedar.
No fim de Dezembro fui para cima, passar a noite de 24 em casa do meu pai, mensageiro solitário da novidade de que a minha mulher não mais iria descer as escadas para as ceias de Natal do Porto, a nossa separação definitiva concretizara-se havia escassas semanas. Dei-lhe a notícia no quarto de hóspedes que se tornara o meu na sua casa, lembro o gesto em que se deixou sentar pesadamente na cadeira que estava à mão, a antiga cadeira da secretária do meu quarto de adolescente, uma cadeira de braços, madeira clara forrada a rosa-velho.
No dia seguinte, ao princípio da tarde, guiei para Sul, para passar, como era tradição, a noite de Consoada em casa dos, ainda, meus sogros, onde estariam o meu filho e a mãe, inconsciente de que seria mais acertado não aparecer, pois há coisas que perecem em instantes.
Assim se passou, essa noite. Desde que entrei a porta daquela casa, uma casa que se me entranhara na pele como aquelas outras em que vivi feliz, percebi que era um estranho numa terra familiar. Não que alguém me tratasse de modo diferente do habitual, o novo modo de sentir fora decretado por mim próprio mas a velha harmonia tinha-se esgaçado, tal qual a graciosidade no andar da Tangerina. Lavei as mãos no lavabo da entrada, como se já não me fosse lícito galgar as escadas até ao andar de cima.
Tão logo no fim da ceia, ainda antes das onze, sob despedidas de uns “já vais?” constrangidos, dei comigo ao volante de uma noite estrelada, a percorrer a centena de km que me separavam de casa.
Estacionei o carro, olhei a casa imersa na escuridão. Entrei, acendi as luzes de todas as divisões, encolhido no frio de túmulo de um espaço que, fechado há três dias, absorvera e cristalizara o gelo de Dezembro.
“Vou acender a lareira”, comuniquei a mim próprio, enquanto inspecionava o cesto da lenha e verificava que devia ir à garagem buscar umas achas, umas pinhas, uns ramos de pinheiro que crepitassem no fogo e me fizessem companhia até que o sono ou o torpor me levassem à cama.
Ao cruzar a porta da garagem dei com Tangerina tombada no chão de cimento, aninhada num canto entre a lenha e a parede. O corpo parecia maior do que o seu tamanho natural, teso pelo frio da morte, como percebi quando me baixei para a tocar, a frieza e a dureza do chão onde morrera tinham-na contagiado. Voltei para dentro, apaguei as luzes, subi as escadas, deitei-me. O tempo teria de passar.
O dia seguinte amanheceu gelado e cinzento, uma bruma tornava os contornos da casa, da rua, do quintal, indecisos. No jardim da frente, no canteiro em forma de losango, nu, pois as plantas esperavam, imóveis, a Primavera distante para reverdecer, cavei um buraco fundo, alinhado entre os dois troncos de roseira dos vértices mais aguçados do losango. Depois, acocorado, limpei o buraco dos restos esbranquiçados de raízes decepadas, de pedregulhos, de cascas velhas de caracol, esboroei entre os dedos a terra negra acumulada nas bordas até que se tornasse macia. Na garagem, o corpo da gata esperava, menos gelado que na véspera, talvez menos rígido, acomodando-se a caber numa cova.
Deitei-a no fundo do buraco, agachado comecei a empurrar punhados de terra sobre o corpo e, então, sem aviso de que tal estivesse para acontecer, chorei sobre aqueles gestos tudo o que aguardava ser carpido.
Uns dias mais tarde, já em Janeiro, comprei dois ou três sacos de sementes de roseira, de cores loucas que nem sabia existirem: negras, azuis. Depois, pedi ao jardineiro que, logo que fosse conveniente, as semeasse no centro do canteiro em forma de losango, pois é no Inverno, quando nada acontece em volta, que as roseiras se moldam à terra onde florescerão.
© Fotografias: Pedro Serrano, Dezembro 2001.
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