24 agosto 2011

ROUBARAM OS MARMELOS À MUSA!


Não sei se algum dos meus ouvintes viu um filme espanhol chamado O Sol do Marmeleiro. Eu, vi-o um dia por completo acaso, já ele começara, naquela cena de a gente ligar a TV, ficar a olhar sentado na borda do sofá de controlo apontado ao ecrã, e, quando nos damos conta, passaram duas horas e nós ali na ponta do sofá com as costas como pedras e o braço do controlo um tanto remoto.
Mas este filme é muito especial, nunca temos bem a certeza se vemos ficção ou documentário, e consiste apenas num pintor que, enquanto lhe remodelam a casa, põe os artefactos de pintura no quintal e desata a pintar um marmeleiro que lá tem. Nada mais do que isto, a musa é o marmeleiro e os efeitos que a luz do sol desencanta nos marmelos.
Este preâmbulo vem ao sabor de, nunca como este ano, a minha compreensão pelos marmelos, o seu maravilhoso amarelo-aveludado de ouro antigo, ter atingido o seu expoente e o referido filme me estar constantemente a vir à cabeça cada vez que, sentado aqui ao computador, virava a cabeça à esquerda e os via, do lado de lá da vidraça, mudando o brilho e a ofuscação consoante as horas do dia.
Aqui, onde moro agora, usam muito como sebe entre terrenos os canaviais ou os marmeleiros e em minha casa tenho uma barreira de marmeleiros a separar o meu quintal da visão do quintal do vizinho a leste. No passado, foi uma sebe quase completa, mas, com o passar dos anos, algumas árvores foram envelhecendo, tornaram-se estéreis e de troncos roídos, ramos quebradiços. Tiveram de ser arrancadas e restaram cinco árvores que, a partir do meio da Primavera, ostentam, quase no cume, umas arredondadas dilatações de um verde-bolorento. Depois, chega o Verão, e o fruto aproxima-se da sua plenitude em finais de Agosto – está pronto a ser colhido, a transformar-se numa natureza-morta num açafate de verga, enquanto aguarda ser transformado em marmelada e geleia ou, tão só, a ser cozido em gomos.
Os meus tinham precisamente atingido esse estado e num deles aparecera, até, uma mancha castanho-banana-madura-de-mais, pelo que na minha mente já tomara forma o pensamento “tenho de os apanhar ainda esta semana”. E se a ideia não se transformara ainda em acto, não fora por preguiça mas, precisamente, para, por mais um instante, apreciar a luz tornando-se divina ao ser reflectida na sua pele aveludada.
Pois não é que houve um filho da puta, mais pragmático e não tão contemplativo, que pensou o mesmo que eu em relação ao facto de terem de ser colhidos antes que apodrecessem?! E, hoje, quando cheguei a casa, alguém desconhecido entrara no quintal e tinha roubado os meus marmelos! Todos, com excepção daqueles em que as manchas castanhas ocupavam mais de metade do fruto, que esses jaziam no chão. Agora, os marmeleiros são simplesmente uma sebe, igual a todas as outras, e o Verão acabou.
Ao menos que os fotografei e, para que se perceba o milagre desta luz, informo que todas as fotos foram colhidas por volta das oito, oito e meia do entardecer.

Nota: O Sol do Marmeleiro (El Sol del Membrillo), de Victor Erice, 1992 (133 minutos).



© Fotografias de Pedro Serrano, fins de Agosto 2011.

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