Primeiro, eras uma miudinha, uma morenita gordalhufa, e não ocupavas tempo ou espaço no meu espírito. Oh, sim, lembro-me do Verão de 1990, mas não pelo teu surgimento no mundo, embora, tudo leva a crer, tenha telefonado aos teus pais a dar os parabéns e fingido grande entusiasmo pelo evento.
Bebés, detesto bebés, são uns seres que têm algo de nojento e viscoso associado, um cheiro adocicado e azedo, sempre a babar fluidos orgânicos por todos os orifícios, só mesmo mulheres se derretem com tais trouxas ruidosas! Pessoalmente, só lhes começo a achar graça quando andam por si e olham como se já fossem capazes de nos focar, quando balbuciam uma prá caixa, como se costuma dizer. Nesse aspecto, tal como outras princesas que conheço (a Sofia, filha da Paula, a minha sobrinha luso-belgo-dinamarquesa Domi) tu foste extraordinariamente precoce, exprimias-te com uma precisão e riqueza de vocabulário todo adulto, como se tivesses passado os três primeiros anos da existência só a espiar e ouvir, até fazeres uma ideia do mundo e começares a desbobinar.
Sim, desde cedo me dei conta que eras outra das especiais, há, até, uma cena particular que me ficou marcada...
Nesse tempo, a tua casa em Braga, melhor, a casa dos teus pais, que acabas de deixar, agora que és grande e o mundo se prepara para te engolir ou ser engolido por Tee, essa casa ainda não tinha portão de correr eléctrico, com controlo-remoto. A gente chegava, subia pela rampa até à porta. Um dia cheguei, dia de Verão, fui entrando rampa acima. Toquei à porta e ninguém atendeu, de modo que dei a volta por trás, em direcção às portas-janela da sala de estar. E aí encontrei-te, vinhas a sair, ao meu encontro.
“Olá, Teresinha”, saudei.
“Olá, Pedro. Olha, a minha mãe não está, mas deve estar a chegar. Entra um bocadinho para a sala, faço-te companhia…”
As persianas, talvez por ser tarde de sol aberto, braseado, estavam meio-corridas e tive de me dobrar, quase em dois, para passar sob elas ao entrar. Mas tu não, seguiste em frente, certinha de altura por baixo delas: imagina como eras tão pequena e isso permite-me calcular os anos que terias, uns quatro ou cinco. E eu espantadíssimo com o teu ar de dona de casa perfeita, do desempenho na situação, o à vontade para ficares ali a fazer-me companhia enquanto a tua mãe não chegava.
De modo que era essa a minha impressão de Tee, uma miúda especial, de vivíssimos olhos quase negros, um poço de que só se vê o reflexo, não o fundo. Há pessoas banais, outras não.
Por tique herdado do meu pai, as minhas agendas, onde em cada dia vou registando estenograficamente encontros, afazeres, datas a relembrar, não têm absolutamente nada sobre ti, mesmo as de data tão recente como as de há curtos anos atrás, quando já te equilibravas em saltos altos e comentavas comigo filmes do Almodóvar e os personagens da série Sete Palmos de Terra. As suas páginas não registam, por exemplo: “Pina Bausch + Teresinha”, dizem apenas “Pina Bausch”. Nada, o teu nome nunca surge, apesar de a iniciativa para a ir ver ao Teatro Camões tenha sido tua, pois, cortesia da tua professora de ballet do colégio, tinhas um bilhete a mais e escolheste-me como par para essa sortida a Lisboa.
Ah!, como são tremendas as coisas que se instalam em nós de forma insidiosa, sejam canções ou pessoas; nesse aspecto o chamado ‘amor à primeira-vista’ não passa da forma mais insonsa e banal de se gostar de alguém, um capricho de criancinhas.
Depois foste crescendo, o teu quarto, cheio de ursinhos de peluche e estrelas fosforescentes coladas ao tecto, ganhou um poster da Audrey Hepburn, agarrada ao Gregory Peck, a andar de lambreta em Roma; apareceu a foto de um príncipe inglês presa por pins numa cortiça; com caligrafia perfeita, a imitar letra de escola primária, borraste a meia parede por cima do aquecedor com a letra do “Leãozinho” do Caetano Veloso.
E, paralelamente, investias na minha direcção! Mal tiveste idade para arrastar uma mala com rodinhas, sempre com a maior das latas, convidavas-te para vir passar férias a minha casa, adoravas aqui estar, os passeios que dávamos, os jantares que cozinhávamos, as músicas que ouvíamos e trauteávamos; os filmes e as séries à lareira, as razias vespertinas sobre Lisboa: compras, restaurantes japoneses, cinema. Acho que, de todas as perspectivas que consigo rever, os caracóis do teu cabelo de chinesa foram felizes nesta casa à beira-mar.
E agora, a tua mãe escreve um mail a convidar-me para ir ao teu jantar de aniversário, um dia todo especial! Em 2010 foi porque fizeste 20 anos, número redondo, este porque fazes 21, número simbólico... Foda-se, Tee, acho que, tal como ano passado, não vou aparecer; sabes como detesto festas de anos, quase tanto como bebés gordalhufos, um dia crescidos e metamorfoseados em morenas sofisticadas que, ainda algo incrédulos, damos conta fazerem parte da nossa vida como a linha de costa de uma tatuagem.
PS: Depois, quando for ao Porto ou vieres tu a Lisboa, jantamos por aí.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Braga, 2010; (2) Lisboa, 2006; (3) Praia Areia Branca, 2007.
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