29 setembro 2011

A agulha, o palheiro, o camelo e o reino dos céus


1
MM decidiu-se por uma semana na América do Sul, coisa de férias ao Sol. Setembro é também mês de tufões nas Caraíbas mas, mesmo sabendo disso, optou por ir. Não podia ser pior, suspirava ela, do que os oito meses de rotina sem pausa na multinacional onde trabalha.
“Só me apetecia sol e estupidez, sabes como é? Estender o braço e ter alguém que me meta na mão um mojito...”
Resoluta, arrastou a imensa mala lilás pelos subterrâneos de Campanhã, partiu com uma antecedência mais do que razoável para estar em Lisboa ao princípio da noite e cumprir as quase três horas de antecedência que um voo intercontinental aconselha.
Aproximava-se o comboio de Aveiro quando MM, ao remexer a carteira para atender uma chamada que já estava a ser gravada no voicemail, se deu conta que não tinha consigo o passaporte, documento sem o qual é assaz complicado conseguir entrar num avião e, ainda mais, hospedar-se num país estrangeiro que, ainda por cima, exige um visto cheio de condicionalismos nas datas.
Alvoroçada, arrastou a mala lilás pela plataforma da estação de Aveiro e, tardando o próximo comboio para o Porto, apanhou um táxi de volta a casa. No apartamento, o passaporte esmorecia no mesmíssimo sítio óbvio onde o deixara para que não o esquecesse, mas sobre o qual tinha pousado um páreo que, à última hora, decidira retirar da mala.
Agora, ao volante do carro, trincando o lábio inferior numa VCI que se arrastava para a Ponte da Arrábida, MM amaldiçoava mentalmente a delicada peça de vestuário, mas, ainda mais, a sua amiga Carlota, que a convencera ser adereço imprescindível nas praias das Caraíbas! Mas MM retirara a peça da mala ao pensar melhor e concluir que: primeiro, não tencionava sair da piscina do hotel; segundo, tinha umas coxas bastante menos grossas do que as da amiga.
Nas imediações de Aveiras, ao consultar o relógio do tablier, MM constatou sobrar-lhe apenas o tempo suficiente para chegar a Lisboa e correr para os guichets de check-in do aeroporto onde, em pouco mais de três-quartos-de-hora, as vozes enjoadas dos altifalantes começariam a anunciar o last call para os passengers to ...
“Se, ao menos...”. MM pegou no telemóvel, viajando no assento ao lado do seu sem cinto de segurança, e rezou para que ele atendesse.
“Filipe...? Oh, graças a Deus! Ouve, ainda estás em Entrecampos? Tens de me fazer um grande favor, a minha vida está nas tuas mãos...”
Filipe era um dos primos lisboetas de MM e trabalhava na PT, ali perto da segunda-circular e do aeroporto. O que MM lhe queria era simples e exigia apenas uma meia-dose de boa-vontade: que estivesse à sua espera nas portas das partidas internacionais, pegasse no carro, o arrumasse numa rua tranquila e sem parcómetros de Lisboa e guardasse a chave até ao seu regresso de férias. É que os parques de estacionamento do aeroporto mais perto dos balcões do check-in praticavam preços incomportáveis para uma soma de quase dez dias de estadia! Isso ficar-lhe-ia quase tão caro como as férias!
Ainda com o estômago feito num lenço de assoar amarrotado, mas com um grande sorriso nos lábios, MM conseguiu ser a penúltima passageira a desfilar pelo corredor central do Airbus gigantesco que já ronronava na pista do aeroporto pronto para rumar ao Paraíso.
2
Num soalheiro princípio de tarde do fim de Setembro, numa esplanada perto de S. Sebastião da Pedreira, preparava-me para pedir a sobremesa ao meu almoço, quando o telemóvel tocou. Olhei o visor e atendi com prazer. Era uma amiga do Porto que, de passagem por Lisboa, perguntava-me se teria uma meia-hora livre para nos vermos.
“Não tenho muito tempo”, disse ela do lado de lá, “cheguei agora mesmo ao aeroporto – ainda estou à espera da mala – tenho de pegar o carro, que deixei cá enquanto estive fora, e arranco para o Porto. Se soubesses o que me aconteceu...”
A minha tarde estava razoavelmente desafogada, pelo que combinei esperar por ela na esplanada onde almoçava; conversaríamos enquanto ela comia qualquer coisa. Assim foi, vi-a saltar, morena e sorridente, de um táxi, enquanto o motorista se afadigava a desencravar do porta-bagagens uma gigantesca mala lilás. Nos intervalos das trincadelas na sanduíche que encomendou, dos goles no sumo de laranja natural, ela foi-me contando dos dias que passara num resort das Caraíbas e de como quase perdera o avião, razão pela qual se encontrava em Lisboa, pois o seu automóvel ficara à guarda de um primo que trabalhava ali perto.
Eu estava sem carro, de modo que o melhor que pude fazer, para que prolongássemos o nosso encontro, foi propor-me fazer-lhe companhia no empreendimento que ela ia fazer a seguir, tarefa simples e relativamente pouco demorada: passar em Entrecampos para buscar a chave do automóvel e, em seguida, dar um salto a Benfica, onde o primo morava e deixara o automóvel dela estacionado.
Levantei-me da cadeira, ajudei a empurrar a mala lilás para a borda do passeio e fiz sinal a um táxi que descia a avenida.
Entretanto, MM telefonara ao primo, que aproveitara a hora do almoço para ir ao ginásio, mas que dentro de minutos estaria em Entrecampos e desceria para lhe entregar a chave.
“Afinal, depois de Entrecampos vamos a Carnide...”, informou o chauffeur de táxi com quem tínhamos ajustado uma corrida sequencial Entrecampos-Benfica; e virando-se para mim:
“O Filipe resolveu deixá-lo antes à beira do Metro da estação de Carnide, pensou que era mais fácil para mim se, por acaso, fosse, de Metro, buscar o carro...”
Tal como o chauffeur, acenei que sim, de táxi tanto me fazia ir a Carnide ou a Benfica, ambos são sítios que frequento pouco e onde me movo mal. Enquanto MM subia as escadas para a entrada do prédio da PT, o motorista aproveitava a pausa para desligar o motor e fazer uma chamada telefónica, eu fiquei a matutar sobre Carnide. Tinha uma remota lembrança de lá ter ido jantar uma vez com amigos, um canto urbano, como há tantos em Lisboa, em que uma zona antiga é cercada e abafada por prédios e mais prédios, gaiolas onde as pessoas voltam à noite para dormir. Mas, depois, no meio do sufoco, há aqueles pedacinhos de ruas estreitas que parecem de vila, salpicados por restaurantes onde se come lindamente, instalados em casas antigas e servidos por mesas com guardanapos de pano imaculado.
MM regressou com a chave, arrancámos para Carnide. O taxista, um tipo a rondar os quarenta, relativamente silencioso e com uma atitude cortês, pediu à minha amiga, à medida que nos aproximávamos da zona-alvo, mais indicações, designadamente o nome da rua em que estaria o carro que íamos buscar. MM pareceu algo embaraçada:
“A indicação que me deram é que está bastante perto da boca de Metro de Carnide...”
“De qual delas?”, quis o homem saber, “é que há três bocas de Metro em Carnide. Duas do mesmo lado da avenida, uma terceira do lado de lá...”
MM, uma genuína rapariga do Porto, embatucou; depois atalhou:
“Penso que é do lado de cá da avenida, pelo menos não me disseram que fosse do lado de lá; se calhar podíamos começar pela primeira boca de Metro e, se não o encontrarmos, íamos então à segunda...”
Foi por esta altura que comecei a prestar mais atenção ao motorista de táxi que a Sorte nos tinha mandado, pois o tipo, em vez de começar a rosnar impropérios ou insinuar que nos despejava na boca de Metro e a gente que se arranjasse, aderiu tranquilamente ao tom vago da orientação.
“Olhe, a boca está ali à frente, vê? E agora, o que fazemos?”
MM lembrava-se que o primo lhe dissera que se virava na segunda rua à direita a seguir à entrada para o Metro, se subia um pouco e que o carro estaria por ali. Assim fizemos e o táxi começou a deslizar vagarosamente para que pudéssemos verificar os automóveis parqueados.
“A senhora sabe de que marca é o veículo?”, perguntou o taxista.
MM, quase ofendida, informou que era um “Polo, preto, dos antigos...”
“Será este?”, perguntou o chauffeur ao passarmos por um automóvel estacionado.
“Não”, respondeu MM.
“Será aquele?”, perguntou ele uns metros adiante, ao mesmo tempo que eu me ia admirando com a popularidade do carro e do modelo, pois, de repente, a rua parecia infestada de Polos e um em cada cinco carros parecia ser daquela marca e da tonalidade pretendida!
“Não”; “não é este”; “não, também não é aquele”, ia respondendo MM, o desalento murchando-lhe a voz.
Tínhamos já percorrido a rua toda, virado à direita numa transversal e ido dar a um beco sem saída, onde o motorista foi obrigado a fazer inversão de marcha.
“Bem, parece que não está por aqui”, disse ele, “a senhora quer ir experimentar a outra boca de Metro?”
Fomos, e também havia uma rua que subia, pululada de Pólos estacionados, nenhum dos quais era o almejado carrinho de MM. Delicadamente, o taxista perguntou:
“Por acaso a senhora sabe qual é a matrícula do carro...?”
“Sei, retorquiu MM, articulando a combinação de letras e números, e tentando extrair à voz a indignação quando acrescentou: “é o meu carro...”
Sugeri que, se calhar, o melhor era telefonar de novo ao primo, tentar precisar o local onde o carro estaria estacionado. Ele não saberia o nome da rua? Outras referências que sublinhassem o local?
“Filipe, não damos com o carro”, MM falava agora para uma audiência suspensa que seguia o diálogo com toda a atenção, “não sabes o nome da rua onde ele está?”
“Ele não sabe”, informou-nos quando desligou. “Só disse que temos de nos posicionar com a boca de Metro à nossa esquerda e, depois, virámos à direita. Diz que o carro está ao lado de uns prédios amarelos, debaixo de uma árvore...”
“Prédios amarelos, debaixo de uma árvore...”, repetiu o chauffeur com toda a calma, como se estivesse a introduzir coordenadas num GPS; “ora vamos lá começar de novo...”
E repetiu todo o percurso inicial, dizendo:
“Neste momento estamos com a boca de Metro à nossa esquerda, está a vê-la ali?”
MM acenava que sim, que agora era virar na segunda à direita a seguir aos semáforos. Virámos.
“Está ali um prédio amarelo...”, apontou o taxista. Olhei, vi um prédio amarelo e, logo a seguir, vários outros prédios da mesma cor que, pontuados por árvores, se multiplicavam à nossa vista, rua acima.
Vagarosamente, as janelas do táxi escancaradas ao sol das quatro da tarde, os três, de pescoço estendido para a direita, íamos esquadrinhando sofregamente os carros por que passávamos.
“Está ali uma árvore!”, exclamei.
“Sim, mas o carro é azul-escuro, informou o taxista, desanimado.
Finalmente, à terceira volta por aquelas ruas, no fundo inesperado de uma alameda sem saída, debaixo de uma árvore, um prédio amarelo  perpendicular ao nosso trajecto, MM quase gritou:
“Está ali, está ali!”
Coberto pela poalha de dez dias ao abandono, o Pólo preto aguardava resignado, encurralado, a traseira barrada por um automóvel estacionado em segunda fila. Saímos os três do táxi e fomos espreitar, enquanto eu sugeria à minha amiga:
“Vai ver se ele pega...”
Debruçado, o taxista estudava atentamente o para-brisas do carro estacionado em segunda fila; exclamou contente:
“Está aqui um papel com uma morada: número 56, primeiro direito! A senhora quer que eu vá lá pedir ao dono para o tirar daqui?”
MM não quis, achou de mais, afirmou que trataria ela de tudo, que nos fôssemos embora, por favor; já andávamos naquilo há muito mais de uma hora!
Despedimo-nos de MM; perguntei ao chauffeur:
“O senhor tem para onde ir agora ou acha que me poderia deixar onde nos apanhou?”
Ele suspendeu a mão sobre a bandeirola, abanou a cabeça afirmativamente. Depois, olhou pelo retrovisor, sorriu-se, disse:
“O senhor vai ter que me recordar de onde é que viemos; sabe, com estas voltas todas...”
“António Augusto de Aguiar, ali quase ao lado da igreja de S. Sebastião...”
“Claro, claro... Já estou a ver.”
Pelo caminho, conversámos pausadamente, irmanados na satisfação de uma aventura que tivera um fim a contento. Ele era dali, de Carnide, falou-me do tempo em que todos aqueles prédios eram quintas verdes, dos restaurantezinhos onde se comia tão bem, de quando ia com o avô ver o Sporting jogar. Depois quis saber um ou outro detalhe sobre mim, começando pela pronúncia, de que se dera conta:
“O senhor é do Norte, não é?”
Quando, no fim da viagem, me debrucei sobre o taxímetro, juntei um generoso acrescento à quantia indicada pelos números fosforescentes. Ele agradeceu a “atenção” e eu, já com a mão no manípulo da porta, agradeci “a sua ajuda nisto tudo”. Tal como os eleitos e os sobreviventes de um naufrágio, as testemunhas de um milagre devem manifestar a sua gratidão. 

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) A17, 2010; (2) e (3) Lisboa, 2010.

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