1
MM
decidiu-se por uma semana na América do Sul, coisa de férias ao Sol. Setembro é
também mês de tufões nas Caraíbas mas, mesmo sabendo disso, optou por ir. Não
podia ser pior, suspirava ela, do que os oito meses de rotina sem pausa na multinacional
onde trabalha.
“Só
me apetecia sol e estupidez, sabes como é? Estender o braço e ter alguém que me
meta na mão um mojito...”
Resoluta,
arrastou a imensa mala lilás pelos subterrâneos de Campanhã, partiu com uma
antecedência mais do que razoável para estar em Lisboa ao princípio da noite e
cumprir as quase três horas de antecedência que um voo intercontinental
aconselha.
Aproximava-se
o comboio de Aveiro quando MM, ao remexer a carteira para atender uma chamada que
já estava a ser gravada no voicemail,
se deu conta que não tinha consigo o passaporte, documento sem o qual é assaz complicado
conseguir entrar num avião e, ainda mais, hospedar-se num país estrangeiro que,
ainda por cima, exige um visto cheio de condicionalismos nas datas.
Alvoroçada,
arrastou a mala lilás pela plataforma da estação de Aveiro e, tardando o
próximo comboio para o Porto, apanhou um táxi de volta a casa. No apartamento,
o passaporte esmorecia no mesmíssimo sítio óbvio onde o deixara para que não o
esquecesse, mas sobre o qual tinha pousado um páreo que, à última hora,
decidira retirar da mala.
Agora,
ao volante do carro, trincando o lábio inferior numa VCI que se arrastava para
a Ponte da Arrábida, MM amaldiçoava mentalmente a delicada peça de vestuário,
mas, ainda mais, a sua amiga Carlota, que a convencera ser adereço
imprescindível nas praias das Caraíbas! Mas MM retirara a peça da mala ao
pensar melhor e concluir que: primeiro, não tencionava sair da piscina do hotel;
segundo, tinha umas coxas bastante menos
grossas do que as da amiga.
Nas
imediações de Aveiras, ao consultar o relógio do tablier, MM constatou sobrar-lhe
apenas o tempo suficiente para chegar a Lisboa e correr para os guichets de check-in do aeroporto onde, em pouco
mais de três-quartos-de-hora, as vozes enjoadas dos altifalantes começariam a
anunciar o last call para os passengers to ...
“Se,
ao menos...”. MM pegou no telemóvel, viajando no assento ao lado do seu sem
cinto de segurança, e rezou para que ele atendesse.
“Filipe...?
Oh, graças a Deus! Ouve, ainda estás em Entrecampos? Tens de me fazer um grande
favor, a minha vida está nas tuas mãos...”
Filipe
era um dos primos lisboetas de MM e trabalhava na PT, ali perto da segunda-circular
e do aeroporto. O que MM lhe queria era simples e exigia apenas uma meia-dose
de boa-vontade: que estivesse à sua espera nas portas das partidas
internacionais, pegasse no carro, o arrumasse numa rua tranquila e sem
parcómetros de Lisboa e guardasse a chave até ao seu regresso de férias. É que
os parques de estacionamento do aeroporto mais perto dos balcões do check-in praticavam preços
incomportáveis para uma soma de quase dez dias de estadia! Isso ficar-lhe-ia
quase tão caro como as férias!
Ainda
com o estômago feito num lenço de assoar amarrotado, mas com um grande sorriso
nos lábios, MM conseguiu ser a penúltima passageira a desfilar pelo corredor
central do Airbus gigantesco que já ronronava na pista do aeroporto pronto para
rumar ao Paraíso.
2
Num soalheiro princípio de tarde do fim de
Setembro, numa esplanada perto de S. Sebastião da Pedreira, preparava-me para pedir
a sobremesa ao meu almoço, quando o telemóvel tocou. Olhei o visor e atendi com
prazer. Era uma amiga do Porto que, de passagem por Lisboa, perguntava-me se teria
uma meia-hora livre para nos vermos.
“Não tenho muito tempo”, disse ela do lado de
lá, “cheguei agora mesmo ao aeroporto – ainda estou à espera da mala – tenho de
pegar o carro, que deixei cá enquanto estive fora, e arranco para o Porto. Se
soubesses o que me aconteceu...”
A minha tarde estava razoavelmente desafogada, pelo
que combinei esperar por ela na esplanada onde almoçava; conversaríamos
enquanto ela comia qualquer coisa. Assim foi, vi-a saltar, morena e sorridente,
de um táxi, enquanto o motorista se afadigava a desencravar do porta-bagagens
uma gigantesca mala lilás. Nos intervalos das trincadelas na sanduíche que encomendou,
dos goles no sumo de laranja natural, ela foi-me contando dos dias que passara
num resort das Caraíbas e de como
quase perdera o avião, razão pela qual se encontrava em Lisboa, pois o seu automóvel
ficara à guarda de um primo que trabalhava ali perto.
Eu estava sem carro, de modo que o melhor que
pude fazer, para que prolongássemos o nosso encontro, foi propor-me fazer-lhe
companhia no empreendimento que ela ia fazer a seguir, tarefa simples e
relativamente pouco demorada: passar em Entrecampos para buscar a chave do
automóvel e, em seguida, dar um salto a Benfica, onde o primo morava e deixara
o automóvel dela estacionado.
Levantei-me da cadeira, ajudei a empurrar a
mala lilás para a borda do passeio e fiz sinal a um táxi que descia a avenida.
Entretanto, MM telefonara ao primo, que
aproveitara a hora do almoço para ir ao ginásio, mas que dentro de minutos
estaria em Entrecampos e desceria para lhe entregar a chave.
“Afinal, depois de Entrecampos vamos a Carnide...”,
informou o chauffeur de táxi com quem tínhamos ajustado uma corrida sequencial
Entrecampos-Benfica; e virando-se para mim:
“O Filipe resolveu deixá-lo antes à beira do Metro
da estação de Carnide, pensou que era mais fácil para mim se, por acaso, fosse,
de Metro, buscar o carro...”
Tal como o chauffeur, acenei que sim, de táxi tanto
me fazia ir a Carnide ou a Benfica, ambos são sítios que frequento pouco e onde
me movo mal. Enquanto MM subia as escadas para a entrada do prédio da PT, o
motorista aproveitava a pausa para desligar o motor e fazer uma chamada
telefónica, eu fiquei a matutar sobre Carnide. Tinha uma remota lembrança de lá
ter ido jantar uma vez com amigos, um canto urbano, como há tantos em Lisboa,
em que uma zona antiga é cercada e abafada por prédios e mais prédios, gaiolas
onde as pessoas voltam à noite para dormir. Mas, depois, no meio do sufoco, há
aqueles pedacinhos de ruas estreitas que parecem de vila, salpicados por
restaurantes onde se come lindamente, instalados em casas antigas e servidos
por mesas com guardanapos de pano imaculado.
MM regressou com a chave, arrancámos para
Carnide. O taxista, um tipo a rondar os quarenta, relativamente silencioso e
com uma atitude cortês, pediu à minha amiga, à medida que nos aproximávamos da
zona-alvo, mais indicações, designadamente o nome da rua em que estaria o carro
que íamos buscar. MM pareceu algo embaraçada:
“A indicação que me deram é que está bastante
perto da boca de Metro de Carnide...”
“De qual delas?”, quis o homem saber, “é que há
três bocas de Metro em Carnide. Duas do mesmo lado da avenida, uma terceira do
lado de lá...”
MM, uma genuína rapariga do Porto, embatucou;
depois atalhou:
“Penso que é do lado de cá da avenida, pelo
menos não me disseram que fosse do lado de lá; se calhar podíamos começar pela
primeira boca de Metro e, se não o encontrarmos, íamos então à segunda...”
Foi por esta altura que comecei a prestar mais
atenção ao motorista de táxi que a Sorte nos tinha mandado, pois o tipo, em vez
de começar a rosnar impropérios ou insinuar que nos despejava na boca de Metro
e a gente que se arranjasse, aderiu tranquilamente ao tom vago da orientação.
“Olhe, a boca está ali à frente, vê? E agora, o
que fazemos?”
MM lembrava-se que o primo lhe dissera que se
virava na segunda rua à direita a seguir à entrada para o Metro, se subia um
pouco e que o carro estaria por ali. Assim fizemos e o táxi começou a deslizar
vagarosamente para que pudéssemos verificar os automóveis parqueados.
“A senhora sabe de que marca é o veículo?”,
perguntou o taxista.
MM, quase ofendida, informou que era um “Polo,
preto, dos antigos...”
“Será este?”, perguntou o chauffeur ao
passarmos por um automóvel estacionado.
“Não”, respondeu MM.
“Será aquele?”, perguntou ele uns metros adiante,
ao mesmo tempo que eu me ia admirando com a popularidade do carro e do modelo,
pois, de repente, a rua parecia infestada de Polos e um em cada cinco carros
parecia ser daquela marca e da tonalidade pretendida!
“Não”; “não é este”; “não, também não é aquele”,
ia respondendo MM, o desalento murchando-lhe a voz.
Tínhamos já percorrido a rua toda, virado à
direita numa transversal e ido dar a um beco sem saída, onde o motorista foi
obrigado a fazer inversão de marcha.
“Bem, parece que não está por aqui”, disse ele,
“a senhora quer ir experimentar a outra boca de Metro?”
Fomos, e também havia uma rua que subia, pululada
de Pólos estacionados, nenhum dos quais era o almejado carrinho de MM.
Delicadamente, o taxista perguntou:
“Por acaso a senhora sabe qual é a matrícula do
carro...?”
“Sei, retorquiu MM, articulando a combinação de
letras e números, e tentando extrair à voz a indignação quando acrescentou: “é
o meu carro...”
Sugeri que, se calhar, o melhor era telefonar
de novo ao primo, tentar precisar o local onde o carro estaria estacionado. Ele
não saberia o nome da rua? Outras referências que sublinhassem o local?
“Filipe, não damos com o carro”, MM falava
agora para uma audiência suspensa que seguia o diálogo com toda a atenção, “não
sabes o nome da rua onde ele está?”
“Ele não sabe”, informou-nos quando desligou. “Só
disse que temos de nos posicionar com a boca de Metro à nossa esquerda e,
depois, virámos à direita. Diz que o carro está ao lado de uns prédios
amarelos, debaixo de uma árvore...”
“Prédios amarelos, debaixo de uma árvore...”,
repetiu o chauffeur com toda a calma, como se estivesse a introduzir
coordenadas num GPS; “ora vamos lá começar de novo...”
E repetiu todo o percurso inicial, dizendo:
“Neste momento estamos com a boca de Metro à
nossa esquerda, está a vê-la ali?”
MM acenava que sim, que agora era virar na
segunda à direita a seguir aos semáforos. Virámos.
“Está ali um prédio amarelo...”, apontou o
taxista. Olhei, vi um prédio amarelo e, logo a seguir, vários outros prédios da
mesma cor que, pontuados por árvores, se multiplicavam à nossa vista, rua
acima.
Vagarosamente, as janelas do táxi escancaradas
ao sol das quatro da tarde, os três, de pescoço estendido para a direita, íamos
esquadrinhando sofregamente os carros por que passávamos.
“Está ali uma árvore!”, exclamei.
“Sim, mas o carro é azul-escuro, informou o
taxista, desanimado.
Finalmente, à terceira volta por aquelas ruas,
no fundo inesperado de uma alameda sem saída, debaixo de uma árvore, um prédio
amarelo perpendicular ao nosso trajecto,
MM quase gritou:
“Está ali, está ali!”
Coberto pela poalha de dez dias ao abandono, o
Pólo preto aguardava resignado, encurralado, a traseira barrada por um
automóvel estacionado em segunda fila. Saímos os três do táxi e fomos
espreitar, enquanto eu sugeria à minha amiga:
“Vai ver se ele pega...”
Debruçado, o taxista estudava atentamente o
para-brisas do carro estacionado em segunda fila; exclamou contente:
“Está aqui um papel com uma morada: número 56,
primeiro direito! A senhora quer que eu vá lá pedir ao dono para o tirar daqui?”
MM não quis, achou de mais, afirmou que
trataria ela de tudo, que nos fôssemos embora, por favor; já andávamos naquilo
há muito mais de uma hora!
Despedimo-nos de MM; perguntei ao chauffeur:
“O senhor tem para onde ir agora ou acha que me
poderia deixar onde nos apanhou?”
Ele suspendeu a mão sobre a bandeirola, abanou
a cabeça afirmativamente. Depois, olhou pelo retrovisor, sorriu-se, disse:
“O senhor vai ter que me recordar de onde é que
viemos; sabe, com estas voltas todas...”
“António Augusto de Aguiar, ali quase ao lado
da igreja de S. Sebastião...”
“Claro, claro... Já estou a ver.”
Pelo caminho, conversámos pausadamente,
irmanados na satisfação de uma aventura que tivera um fim a contento. Ele era
dali, de Carnide, falou-me do tempo em que todos aqueles prédios eram quintas
verdes, dos restaurantezinhos onde se comia tão bem, de quando ia com o avô ver
o Sporting jogar. Depois quis saber um ou outro detalhe sobre mim, começando
pela pronúncia, de que se dera conta:
“O senhor é do Norte, não é?”
Quando, no fim da viagem, me debrucei sobre o
taxímetro, juntei um generoso acrescento à quantia indicada pelos números
fosforescentes. Ele agradeceu a “atenção” e eu, já com a mão no manípulo da
porta, agradeci “a sua ajuda nisto tudo”. Tal como os eleitos e os sobreviventes
de um naufrágio, as testemunhas de um milagre devem manifestar a sua gratidão.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) A17, 2010; (2) e (3) Lisboa, 2010.
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