Chama-se Nixon, anda pelos dezasseis
anos e quando o conheci morava num Nissan abandonado na rua Andrade Corvo,
mesmo em frente à porta da confeitaria-padaria Pão Quente.
Isto de o conhecer passou-se em Abril
e nessa altura ele usava um daquelas casacos de pai Natal, vermelho-vivo, com
debrum de pelinho branco e tudo. Embora o clima seja invariavelmente quente em
Cabo Verde, as noites podem arrefecer e as manhãs fazer estremecer quem dorme
num carro abandonado que foi sendo defenestrado de vidros e pneus.
Apesar disso, morar ali tinha algumas
vantagens para ele, pois estava mesmo à porta do trabalho e podia saltar directamente
do carro para competir com os outros dois pedintes que param por
ali, um deles com uma capacidade de amolecer porta-moedas superior à
do Nixon, pois falta-lhe metade de uma perna e arrasta-se sobre canadianas.
De facto, apesar de trabalhar em casa,
o rapaz tem a desvantagem de ser novo, mas, infelizmente, não tão novo que possa ser
olhado pelo caleidoscópio da criancinha ramelosa e faminta que estende os
dedinhos à caridade. O Nixon não era rameloso, ranhoso, nem tinha um ar famélico,
mostrava até um ar bem tratado, alegre e um tanto provocador, qualidades fatais
num pedinte!
Nas proximidades não gostavam dele, as
empregadas do Pão Quente vinham cá
fora com frequência descompô-lo, pois batia nos vidros da montra para
chamar a atenção de alguém, empurrava a porta para dizer uma piada e fugia;
pegava-se com a concorrência, mas escapava com grande rapidez da canadiana em
riste do manquinho...
Bem, foi no princípio de Abril que
conheci o Nixon e, para quem estiver interessado em mais detalhes, descrevo
esse começo de relação num texto a que chamei Natal em pleno Verão, texto que fez
algum sucesso entre os meus ouvintes que, de vez em quando e sobretudo se
regressava de um salto a África, me perguntavam por ele como se o conhecessem!
Em Junho voltei a Cabo Verde, o Nissan
continuava assapado sobre as jantes no mesmo sítio, mas de Nixon nem sinal nas
consecutivas manhãs em que, antes de ir trabalhar, fui tomar o pequeno-almoço
ao Pão Quente. E, assim, regressei a Portugal sem hipótese de informar os
curiosos e algo apreensivo pelo que poderia ter acontecido ao rapaz, o que,
face ao contexto, poderia não ter sido nada de bom. Na realidade, nesta
realidade, que futuro espreita um rapazito de quinze anos vivendo à solta no
meio de uma cidade, sem família ou escola que o amparem e ajudem minimamente a
formatar?
Agora, anteontem, voltei à rua Andrade
Corvo e ao meu pequeno almoço no Pão
Quente, o manco a coleccionar as moedas que dantes costumava dar ao Nixon. Para
além do mais, o Nissan desaparecera da zona, o seu local preenchido por
um jeep de rodas altas, com ar de novo em folha. Rais parta, Nixon, o que te terá
sucedido?
Ontem, às oito da manhã, tinha já
empurrado a porta do café para entrar quando ouvi um berro atirado às minhas costas:
“Amigo, amigo...”
Não olhei para trás, mas entrei no café
com um sorriso e subi até ao primeiro andar onde me sentei numa das mesas que
permitem uma vista ampla da rua. E lá andava o Nixon, a fintar os outros
pedintes, a atirar pedidos a quem entrava no café, escorropichando um pacote de
sumo e mancando, arrastando desgraçadamente uma perna quando se movia.
Antes de sair, no fim do
pequeno-almoço, acrescentei à conta um pacote de Compal Tutti-frutti e saí para
o tremendo calor matinal. Claro que ele estava à minha espera, um tremendo sorriso de
orelha a orelha, um teclado inteiro de piano faiscando na manhã.
“Amigo, ao tempo que não te via! Nunca
mais apareceste!”
“Eu? Eu apareci, tu é que te sumiste...”,
dei por mim em explicações,
estendendo-lhe o pacote do sumo.
Acompanhou-me rua fora. Cresceu,
em seis meses ficou mais alto do que eu, tornou-se um rapaz bonito, de olhos
grandes e vivos, orelhas bem destacadas da cabeça, mas que lhe dão personalidade
ao perfil. Este tipo não passa fome, é nítido; é suficientemente habilidoso e
competitivo para cuidar dessa parte sozinho.
“Que te aconteceu?”, perguntei,
apontando o andar arrastado.
“Fui apunhalado...”
“O quê?!”, a minha expressão deve ter
manifestado uma tão grande incredulidade que ele, prontamente, baixou as minhas
já conhecidas calças de fato de treino e mostrou, a meio da coxa esquerda, uma
ferida, buraco fino com a espessura de um prego, mas fundo e onde o rosado da
carne e de uma ferida ainda longe de fechar era bem nítido.
“Apunhalaram-te como? Quem te
apunhalou?”
“Uns gajos, com um arame, enfiaram-mo
aqui!”
“Mas porquê...?”
Encolheu os ombros, como se o
motivo não interessasse para nada, era coisa já deitada para trás das costas.
“E foste ao hospital tratar disso?”
“Sim, fui logo...”
“E que te fizeram lá?”, tentei
perceber, avaliar o risco que ele ainda poderia correr por causa daquilo.
“Trataram a ferida, deram-me uma
injecção contra a infecção...”
“Há quanto tempo foi isso?”, perguntei
ainda, para aquilatar se o incidente teria já ultrapassado a zona de risco de um tétano ou
a ferida poder estar ainda em risco de outra infecção severa.
“Há mais de quinze dias, já estou
quase bom, só me falta andar normal...”
E como se achasse que a conversa, o
interesse em torno dele, estava a ser em demasia, olhou para mim, que media os
meus passos pelos seus, e quis saber:
“E você, como está? Está tudo bem
consigo, amigo? Agora vai trabalhar ali, não é?”
“Tudo bem comigo”, disse, estendendo a mão.
E por ali ficámos um momento a
balançar as mãos num daqueles bacalhaus à africana, longos, demorados, em que se
vai chocalhando e se mantém presa na nossa a mão do outro durante todo o tempo
que dura a despedida, um sinal de apreço pela pessoa que encontrámos ou de quem
nos vamos separar.
“Eu encontro-te por aí”, rematou ele virando as costas e, na sua ética muito pessoal, não pedindo nada, pois eu
já lhe oferecera um presente nesse dia.
Sim, continuo apreensivo em relação ao futuro daquele
rapaz sem eira nem beira, acho que não tem onde cair morto, afinal ele é um
malandro. Mas, definitivamente, não um malandro como outro qualquer.
© Fotografias de Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde): (1) Abril 2011; (2) Junho 2011.
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