14 setembro 2011

SEM EIRA NEM BEIRA


Chama-se Nixon, anda pelos dezasseis anos e quando o conheci morava num Nissan abandonado na rua Andrade Corvo, mesmo em frente à porta da confeitaria-padaria Pão Quente.
Isto de o conhecer passou-se em Abril e nessa altura ele usava um daquelas casacos de pai Natal, vermelho-vivo, com debrum de pelinho branco e tudo. Embora o clima seja invariavelmente quente em Cabo Verde, as noites podem arrefecer e as manhãs fazer estremecer quem dorme num carro abandonado que foi sendo defenestrado de vidros e pneus.
Apesar disso, morar ali tinha algumas vantagens para ele, pois estava mesmo à porta do trabalho e podia saltar directamente do carro para competir com os outros dois pedintes que param por ali, um deles com uma capacidade de amolecer porta-moedas superior à do Nixon, pois falta-lhe metade de uma perna e arrasta-se sobre canadianas.
De facto, apesar de trabalhar em casa, o rapaz tem a desvantagem de ser novo, mas, infelizmente, não tão novo que possa ser olhado pelo caleidoscópio da criancinha ramelosa e faminta que estende os dedinhos à caridade. O Nixon não era rameloso, ranhoso, nem tinha um ar famélico, mostrava até um ar bem tratado, alegre e um tanto provocador, qualidades fatais num pedinte!
Nas proximidades não gostavam dele, as empregadas do Pão Quente vinham cá fora com frequência descompô-lo, pois batia nos vidros da montra para chamar a atenção de alguém, empurrava a porta para dizer uma piada e fugia; pegava-se com a concorrência, mas escapava com grande rapidez da canadiana em riste do manquinho...
Bem, foi no princípio de Abril que conheci o Nixon e, para quem estiver interessado em mais detalhes, descrevo esse começo de relação num texto a que chamei Natal em pleno Verão, texto que fez algum sucesso entre os meus ouvintes que, de vez em quando e sobretudo se regressava de um salto a África, me perguntavam por ele como se o conhecessem!
Em Junho voltei a Cabo Verde, o Nissan continuava assapado sobre as jantes no mesmo sítio, mas de Nixon nem sinal nas consecutivas manhãs em que, antes de ir trabalhar, fui tomar o pequeno-almoço ao Pão Quente. E, assim, regressei a Portugal sem hipótese de informar os curiosos e algo apreensivo pelo que poderia ter acontecido ao rapaz, o que, face ao contexto, poderia não ter sido nada de bom. Na realidade, nesta realidade, que futuro espreita um rapazito de quinze anos vivendo à solta no meio de uma cidade, sem família ou escola que o amparem e ajudem minimamente a formatar?
Agora, anteontem, voltei à rua Andrade Corvo e ao meu pequeno almoço no Pão Quente, o manco a coleccionar as moedas que dantes costumava dar ao Nixon. Para além do mais, o Nissan desaparecera da zona, o seu local preenchido por um jeep de rodas altas, com ar de novo em folha. Rais parta, Nixon, o que te terá sucedido?
Ontem, às oito da manhã, tinha já empurrado a porta do café para entrar quando ouvi um berro atirado às minhas costas:
“Amigo, amigo...”
Não olhei para trás, mas entrei no café com um sorriso e subi até ao primeiro andar onde me sentei numa das mesas que permitem uma vista ampla da rua. E lá andava o Nixon, a fintar os outros pedintes, a atirar pedidos a quem entrava no café, escorropichando um pacote de sumo e mancando, arrastando desgraçadamente uma perna quando se movia.
Antes de sair, no fim do pequeno-almoço, acrescentei à conta um pacote de Compal Tutti-frutti e saí para o tremendo calor matinal. Claro que ele estava à minha espera, um tremendo sorriso de orelha a orelha, um teclado inteiro de piano faiscando na manhã.
“Amigo, ao tempo que não te via! Nunca mais apareceste!”
“Eu? Eu apareci, tu é que te sumiste...”,
dei por mim em explicações, estendendo-lhe o pacote do sumo.
Acompanhou-me rua fora. Cresceu, em seis meses ficou mais alto do que eu, tornou-se um rapaz bonito, de olhos grandes e vivos, orelhas bem destacadas da cabeça, mas que lhe dão personalidade ao perfil. Este tipo não passa fome, é nítido; é suficientemente habilidoso e competitivo para cuidar dessa parte sozinho.
“Que te aconteceu?”, perguntei, apontando o andar arrastado.
“Fui apunhalado...”
“O quê?!”, a minha expressão deve ter manifestado uma tão grande incredulidade que ele, prontamente, baixou as minhas já conhecidas calças de fato de treino e mostrou, a meio da coxa esquerda, uma ferida, buraco fino com a espessura de um prego, mas fundo e onde o rosado da carne e de uma ferida ainda longe de fechar era bem nítido.
“Apunhalaram-te como? Quem te apunhalou?”
“Uns gajos, com um arame, enfiaram-mo aqui!”
“Mas porquê...?”
Encolheu os ombros, como se o motivo não interessasse para nada, era coisa já deitada para trás das costas.
“E foste ao hospital tratar disso?”
“Sim, fui logo...”
“E que te fizeram lá?”, tentei perceber, avaliar o risco que ele ainda poderia correr por causa daquilo.
“Trataram a ferida, deram-me uma injecção contra a infecção...”
“Há quanto tempo foi isso?”, perguntei ainda, para aquilatar se o incidente teria já ultrapassado a zona de risco de um tétano ou a ferida poder estar ainda em risco de outra infecção severa.
“Há mais de quinze dias, já estou quase bom, só me falta andar normal...”
E como se achasse que a conversa, o interesse em torno dele, estava a ser em demasia, olhou para mim, que media os meus passos pelos seus, e quis saber:
“E você, como está? Está tudo bem consigo, amigo? Agora vai trabalhar ali, não é?”
“Tudo bem comigo”, disse, estendendo a mão.
E por ali ficámos um momento a balançar as mãos num daqueles bacalhaus à africana, longos, demorados, em que se vai chocalhando e se mantém presa na nossa a mão do outro durante todo o tempo que dura a despedida, um sinal de apreço pela pessoa que encontrámos ou de quem nos vamos separar.
“Eu encontro-te por aí”, rematou ele virando as costas e, na sua ética muito pessoal, não  pedindo nada, pois eu já lhe oferecera um presente nesse dia.
Sim, continuo apreensivo em relação ao futuro daquele rapaz sem eira nem beira, acho que não tem onde cair morto, afinal ele é um malandro. Mas, definitivamente, não um malandro como outro qualquer.


© Fotografias de Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde): (1) Abril 2011; (2) Junho 2011.



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