Viajávamos para sul, para Alcáçovas,
parece-me, mas devíamos esperar por boleia num ermo a meio do caminho pois só
tínhamos transporte a partir de metade do caminho.
Seguíamos os dois numa carrinha comercial,
A. ao volante, eu no assento ao lado tamborilando com os dedos o vidro frio
lambido por gotas de chuva, uma canção na cabeça e por fundo sonoro o bater do
chassis metálico do furgão contra o pavimento da estrada não asfaltada.
Apesar de cair uma morrinha que transformara
aquela manhã de verão numa paisagem grisalha e molhada de inverno, estacionámos
o furgão, saímos e esperámos pelo próximo transporte sob a intempérie. Longe,
ao fundo, por entre o batido de água e névoa, conseguia aperceber um barracão
enorme e, em redor dos portões escancarados, um grupo de trabalhadores que
cantava uma música cujo eco me chegava envolto em familiaridade. Quando o vento
me trouxe, mais distinto, o verso “esvai-se o tropical sentido na lapela...” foi
que percebi ser o “Foi Por Ela” do Fausto.
“Que engraçado”, gritei a A., “tenho
vindo o caminho todo a trautear esta canção na cabeça!”
Em Évora, onde chegámos sem memória do
transporte ou do percurso que nos levou até lá, esperamos ainda pela boleia
para Alcáçovas ou Alcácer e estamos os dois no patamar largo de uma escadaria
de madeira onde se acumula um magote de gente contra o corrimão de retorcidos. Eis
que chega um tipo de cabelo acamado a água e sobretudo de gola levantada,
acompanhado por uma rapariga, também agasalhada por casaco comprido de gola
levantada. A esta, no entanto, não consigo recordar as feições, não porque não
as tivesse, mas mais por a cara lhe ser lisa por não conseguir impregnar-me a
memória de modo duradouro. O tipo, fazendo o silêncio no ruído da turba, clama:
“Quem está à espera de boleia para Almodôvar?”
“Somos nós”, responde A.
“Hmmm, gosto...”, comentou o tipo
dardejando um olhar apreciador sobre a minha companhia. Não fiquei contente, nem
com o comentário nem com o sorriso satisfeito de A. (que lhe arrepanhou o lábio
superior e lhe mostrou dois dentes), e uma nuvem de amuo fechou-se sobre mim.
Mas a nossa boleia e sua companheira teriam
ainda algo a tratar em Évora e nós fomos procurar um posto de enfermagem, pois
ambos devíamos tomar uma injecção de adrenalina nesse dia. A. foi a primeira a
ser escolhida e estava receosa, sentia eu observando-lhe a face preocupada. A
enfermeira também não ajudava ao entrar em demasiadas explicações quando falhou
a veia e A. se sentiu mal... Uma novata, possivelmente, concluí enquanto a via ameaçar
com a agulha o outro antebraço.
“Deve ser uma crise hipotensiva...”,
continuava ela nas explicações, “é melhor deitar-se um pouco; vá eu ajudo-a a
despir-se...”
“Não quer dar-me primeiro a injecção a
mim?”, perguntei, estendendo o braço nu e tentando dar alguma paz a A.
“Deixe estar...”, respondeu, cobrindo
A. com um lençol.
Eu não estava a gostar nada daquilo!
Primeiro, uma enfermeira inexperiente que usava seringas de vidro e agulhas de
metal, daquelas de ferver que já não se usavam em lado nenhum, e depois – tanto
quanto sabia – a adrenalina costumava subir a tensão arterial, não baixá-la
daquele modo desastroso.
“Tem a mínima a 2,5”, comunicou a
enfermeira tirando o estetoscópio dos ouvidos, “não admira que se tenha sentido
enjoada...”
A., reclinada numa marquesa larga como
uma cama, apesar do seu estado esvaído, era uma figura sedutora na sua palidez,
nos cabelos desalinhados que lhe roçavam os ombros nus, nas mamas friorentas
que apercebia em recorte na luz fria da manhã.
O mesmo deve ter achado a nossa boleia
de cabelo penteado a água e lapela levantada que entrou nesse momento na sala
do posto de enfermagem.
“Estão prontos...?”, perguntou,
olhando A. com concupiscência.
Ao menos ela tinha tapado as mamas com
o lençol ao ouvir a voz, pensei, outra vez chateado.
Agora, outra vez sós, continuamos a
esperar por uma boleia noutra encruzilhada do caminho e, molhados da chuva,
cansados na ressaca da adrenalina, procuramos o abrigo de uma gruta. A.,
sentada e abraçando os joelhos com os braços, olha desolada o clima e eu,
usando um pau de giz, desenho no chão de areia fina que atapeta a gruta uma
frase inspirada: “puta que pariu as gajas”. Depois, mais aliviado, apaguei tudo
com uma mão rendida, começando por me desfazer da palavra “gajas”.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Praia da Areia Branca, 2011; (2) Lisboa, 2012.
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