Quando eu era pequeno, o meu pai, nos
intervalos da sua intensa actividade como cirurgião, parecia apreciar a minha
companhia.
Para grande contrariedade minha, sacudia-me
da cama para intermináveis manhãs de caça ao coelho e às perdizes; arrastava-me
a errar por km para avaliar se os vasos de recolha de resina, suspensos nos
pinheiros, tinham atingido um bom nível de seiva e, ainda, por outras
actividades igualmente secantes para um miúdo de dez anos, mas que, para ele,
eram elixir de alegria e o faziam exclamar, a sublinhar uma qualquer plenitude,
a enigmática e descontextualizada interjeição:
“Vive la France!”
Depois, quando já penava pelos bancos
do liceu e o meu desempenho em botânica se revelava assustadoramente fraco, o
meu pai – mais entusiasmado do que o filho com as páginas do compêndio –
estudava comigo as nuances da seiva bruta e da seiva elaborada e forçava-me a
aulas práticas usando como laboratório o jardim lá de casa onde, para grande horror
meu, pululavam monocotiledóneas, corolas, estames, anteras falciformes com
deiscência poricida e outros atropelos ao bom nome...
Uns
anos passados, já aluno de Medicina, desafiava-me por vezes para o acompanhar nas
consultas domiciliárias que deixava para o fim do dia e com o fito de esmiuçar
ao vivo algum telefonema de um cliente que o deixara preocupado ou com uma
dúvida médica por satisfazer. Ainda a estacionar o carro, antes de entrarmos na
casa do doente, recomendava-me que não abrisse o bico durante a visita e
explicava-me o contexto clínico e familiar do que talvez nos esperasse lá
dentro. À entrada, pedia delicadamente autorização ao visitado para que eu
estivesse presente – apresentando-me como um quase colega – e, regressados ao automóvel,
resumia-me o entendimento a que chegara, não apenas a clínica envolvida ou o
tratamento prescrito, mas também as consequências que o prognóstico sombrio
daquele doente iam ter sobre o sorriso daquela senhora tão simpática que nos
abrira a porta e, no fim, nos convidara a jantar...
Hoje,
passados estes anos, lamento um pouco não ter dado mais atenção a todos esses
momentos, o não ter respondido com mais entusiasmo e menos ar de enfado ao
prazer que o meu pai parecia ter na minha companhia, em participar da minha
vida nascente e associar-me à dele. Não posso emprateleirar este sentimento no
negrume dos remorsos, é mais uma nostalgia que sobra da consciência do tempo
fugido e que paira por aí, dizem os físicos, misturado à poeira cósmica, essa mistura
de recordação e perda que fez o Proust escrever mais de 3.000 páginas sobre o
assunto nos sete volumes do À la
Recherche du Temps Perdu.
Nas
ruelas transversais à sua intensa actividade profissional, o meu pai encontrava
por vezes uns amigos muito diferentes dos médicos que iam jantar a nossa casa,
que às vezes passavam férias connosco na mesma praia do Algarve.
Eram os
pintores. O meu pai parava a falar com um punhado de tipos com um ar um pouco
estranho, que tratava com respeitosa atenção e a quem, a crer pela quantidade
de quadros amontoados no seu escritório, servia de guia para os males do corpo
já que, é sabido, os artistas, embora desligados, evidenciam tendência para se
afligiram muito e tem pouco dinheiro vivo para gastar em médicos. Recordo
caminhar na baixa do Porto e cruzarmo-nos com esses sujeitos de aspecto despenteado,
de vestes esquecidas do ferro de engomar e lenços de seda a resguardar o
pescoço. O meu pai por ali se quedava em conversa, enquanto eu, calado,
interiormente fascinado e divertido, absorvia a presença excessiva daqueles seres.
Quando
a casa nova foi construída, a espaçosa e alta parede que acompanha a escadaria
para o andar de cima, iluminada por um boa luz do norte, ficou pontuada por
quadros dessa gente, sendo da nossa especial predileção uma pintura de um tal
Cid que representava um D. Quixote aos tropeços na impressionista e descomunal
asa de um moinho. E nos mais de dez anos que morei naquela casa era para mim
quase automático pousar os olhos naquele quadro sempre que subia ou descia as
escadas e que, mesmo já não estando lá, ficou associado àquela curva da escada.
Havia um
outro, chamado Pedro Olaio, um pintor que morava em Valadares e tinha um
estranho modo de nos desejar Feliz Natal. Todos os Dezembros chegava a casa do
meu pai – apesar de o homem amputar o nome da rua e não escrever o número da
porta! – um bilhete postal dos Correios em que a face onde as pessoas garatujavam
as palavras festivas de circunstância, estava unicamente preenchida por uma
aguarela, espanejada numa gama em pretos e cinzentos. “Que estranho motivo para
um postal de Natal”, pensava eu olhando os motivos e os tons sistematicamente
sombrios da pequena pintura e esquecendo a intenção que por ali morava.
© (1) Pedro Olaio, 1969; (2) Pedro Serrano, Porto, 2010.
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