03 maio 2014

PRIMAVERA

Por uma razão concreta, a Primavera faz-me recordar o meu pai. Esta lembrança está directamente relacionada com um acontecimento doméstico que ele presenciou e sobre o qual, daí em diante, queria sempre saber o ponto da situação.
Na parede mais protegida e ensolarada do alpendre de minha casa, numa latitude já vizinha do tecto, uma andorinha estrangeira construiu um dia – são passados bons anos sobre esse dia – um ninho, um daqueles abrigos arquitectados com rodriguinhos de lama justapostos que mais fazem lembrar uma colmeia do que um ninho. Após a postura e a migração para outras paragens nunca mais a andorinha retornou e o ninho quedou-se vazio no alpendre.
Anos passados, numa outra primavera, surpreendi um pequeno pássaro, de um castanho-fulvo que ganha brilhos canela quando a luz do sol lhe incide em pleno voo, peito generoso e bico fino e comprido de quem catrapisca insectos, numa actividade de sub-aluga, atarefado a acrescentar os rebordos terrosos do ninho com pequenos fragmentos de vegetação. Uns dias mais tarde, espreitava do ninho a cabeça de uma avezita que, plausivelmente, chocava ovos – pois que dali não arredava asa – e um parceiro fazia cautelosas trajectórias entre o quintal e o ninho por sobre o pescoço da Mia que, cá em baixo, vigiava atentamente a azáfama.
Foi a essa fase de instalação que o meu pai, passando uns dias aqui em casa, assistiu com prazer, prazer que se transformou em deleite quando quatro ou cinco bocas piantes eclodiram no ninho, reclamando o dia inteiro por sustento. E os pais não mais tiveram sossego, batendo as redondezas em busca de vermes e pequenos insectos para alimentar aquela corja uivante que me pejava a tijoleira de abundante merda fresca, despojos que a Carlota, no seu amor por animais, mangueirava sem se queixar.
A partir desse ano, de cada vez que ia ao Porto por Abril ou Maio, o meu pai, da sua poltrona na sala de estar, perguntava:

“Então, já tens inquilinos no ninho este ano?”
E agora, mesmo nos anos em que nenhum pássaro vem chocar no velho ninho, a primavera me faz lembrar o meu pai.


© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Maio 2014.

  

1 comentário:

  1. És muito riquinho...uma ternurinha...muito fácil de se gostar, um dom!

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