“Agora é que eu desgracei a vida,
Pedro”, disse, tão pronto atendi e percebeu que lhe reconhecera a voz.
“Tenha calma, de certeza que não pode
ser assim tão mau...”, respondi, habituado aos superlativos com que enfeita o
que lhe sucede. Margarida traz à lembrança, seja pelos alaranjados do penteado,
o excesso de rímel nas pestanas ou a gama XXL dos gestos e das emoções, um
personagem de Almodóvar, realizador por quem nutre grande estima e de quem, um
Natal, me ofereceu um CD com uma antologia das bandas sonoras das suas
películas.
“Desta vez é, Pedro, desta vez não
tenho safa...”
Tentei indagar os contornos do
problema, para poder injectar uns toques atenuantes, mas ela informou:
“Não lhe posso contar ao telefone, é
demasiado grave; demasiado perigoso...”
Encontrei-me com ela dois dias depois,
pela hora do almoço, no Colombo, perto da entrada da FNAC; sentámo-nos num
banco ali perto, a conversa desenrolando-se ao nível dos joelhos de quem
passava.
“Ai, Pedro, dei cabo da minha
vida...”, desabafou, virada para mim, a carteira pousada no colo.
“Margarida...”,
censurei com brandura, “quantas vezes já não esteve metida em alhadas? Lembra-se
daquela vez em que me telefonou à uma da manhã...? E, diga, não se resolveram
todas?”
“Estive presa três dias, Pedro, e não
tardará muito que volte para Tires a cumprir três ou quatro anos...”
Mantive a boca fechada, a fachada
impassível. Saiu-me, estrangulado, um:
“Mas acusada de quê?!”
“Incendiária...”, respondeu
prontamente, como se já se tivesse habituado ao estigma.
Olhei para ela, esgazeado, sem
conseguir ver na excelente pessoa que conhecia há mais de vinte anos uma
bombista ou alguém que anda por aí a atear fogo a matas. E então, desfiando
entre os dedos a pega da carteira, na impessoalidade da multidão, ela
contou-me:
Apaixonara-se por um tipo, fora o que
fora, durante muito tempo tudo correra
bem, talvez demasiado bem... Ele era um bom bocado mais novo, mas o que interessam
essas coisas quando saltamos para os domínios do sonho? Passaram a morar juntos,
em casa dela; estabelecera-se um elo de confiança suficiente para que lhe passasse
para as mãos códigos de cartões, pormenores da conta bancária; escorregava-lhe
dinheiro quando ele precisava, que a profissão dele era incerta, cheia de
azares até à data, mas o que interessava? Quem tem tino para se dar conta desses
detalhes quando se vive uma paixão, acesa como uma fornalha? Um ser humano assemelha-se
mais a uma epidemia do que a uma folha Excel! Mas depois o cardápio foi-se
modificando, insidiosamente, parecia-lhe; as meiguices e a proximidade – ela
era inteligente, foi estabelecendo nexos de causalidade com o coração a
desfazer-se em cinzas no peito – relacionavam-se com os períodos de aguda
necessidade de dinheiro por parte dele... Quando era abastecido, o príncipe
tornava-se distante, desaparecia temporadas, evitava até atender-lhe chamadas,
respondia aos SMS de forma evasiva... E ela, com o coração a retumbar nos
tímpanos, o pesadelo a fazê-la sentir-se mais irreal do que o sonho quebrado,
começou a memorizar desconfianças, a acumular indícios que se foram
transformando em quase certezas. Um dia seguiu o carro dele no carro dela,
viu-o estacionar entre outros automóveis num bairro desconhecido, entrar para
um prédio; era noite e uma luz acendeu-se numa janela, cá de fora via o que se
passava, implodida num horror de traição e abandono. E a preencher aquele
buraco subiu-lhe uma onda carmim de raiva que a empurrou para a acção. Sendo profissional
de saúde, trazia no carro um frasco de álcool a 90 graus, esguichou todo o
conteúdo no tejadilho do carro do filho da puta, Pedro, eu não estava em mim,
via-me a fazer aquilo como se estivesse de fora, chegou-lhe um fósforo, fugiu,
quase se ia espatifando ao volante sobre quem vinha em sentido contrário,
encadeada por faróis que noutras noites seriam pacatos como luas num céu de
Verão...
Mas, engaiolada no apartamento,
Margarida não se aguentara muitas horas com aquilo entre mãos, foi, sem que
ninguém lho pedisse ou aconselhasse, apresentar-se na polícia local, confessou
o que tinha feito... o polícia atrás do balcão, que a conhecia e respeitava,
atrapalhado com o que ouvia, a esferográfica a hesitar no registo como quem
pergunta “tem a certeza do que está a dizer?”
E o problema não fora propriamente que
o carro dele ardera, a chatice foi que o fogo, etéreo e veloz, se pegara aos
carros entre os quais o outro estava estacionado: três automóveis pasto de
chamas, todo aquele plástico e borracha a fumegar na calma da noite... um crime
público.
“Dois a seis anos de prisão efectiva,
Pedro, para além de ter de pagar todos os prejuízos... Estou feita!”
Eu concordava que era pesado, mas, que
diabo, não ia ser tratada como um angariador de madeireiro, como um pirómano
que se mija nas cuecas enquanto tira o isqueiro do bolso, os juízes haviam de
estabelecer a diferença...
“Ai, não sei, Pedro, não sei... Olhe,
sabe, quem me deu força e foi impecável comigo este tempo todo? As minhas
colegas de cela em Tires – não diga nunca isto a ninguém, que vão julgar que
estou louca – mas até que não foi uma experiência má de todo... Aprendi muito
estes dias.
Quando nos despedimos, a luz já se
tornara débil nas claraboias do centro comercial, abracei-a com força, pus-me à
disposição para qualquer coisa em que pudesse ajudar.
“Se calhar até vou abusar de si: o
advogado diz que vai ser bom apresentar algumas testemunhas abonatórias em
tribunal...”
E assim sucedeu. Uns bons meses mais
tarde, naquela calmaria com que a Justiça cobre de poeira e objectividade as
atribulações humanas, recebi uma convocatória para me apresentar no tribunal de
X, um dia, ao fim da manhã. Fui com o meu melhor ar de amigo de incendiária:
casaco, calça com vinco, gravata. À entrada, nas escadas, fumando nervosamente,
encontrei um grupo de gente que rodeava carinhosamente a arguida.
“Ai, Pedro”, saudou ela, “hoje é que
vai ser, é hoje que se vai decidir tudo: a minha vida, se vou dentro ou não...”
Entrámos, fomo-nos aproximando da sala
de audiência. O julgamento ia ser à porta fechada e o colectivo seria
constituído por três juízes! E então, sem que ninguém mo indicasse, apercebi a
presença encafuada do móbil do crime, que se encostava a um canto, olhando de soslaio
o grupo ruidoso que acompanhava a sua paixão fraudulenta... Paixão! Bastou-me
um olhar para perceber que Margarida fora vítima de um chuleco de subúrbio, um
tipo novo, de ar sonso, daqueles para quem a vida será sempre um expediente, e que
aguardava a vez de prestar declarações na companhia do papá e se mantinha o
mais distante de nós que podia, pois a cobardia não o impedia de intuir que não
seria bem recebido nem enganaria nunca ninguém, a não ser uma Margarida apaixonada.
As testemunhas começaram a ser
chamadas e primeiro entrou o psiquiatra que a ré tinha arranjado, pois uma
moldura do contexto psicológico fica sempre bem e nada como a ciência para
vaselinar as gretas das falhas humanas. Logo a seguir chamaram por mim, talvez
por consideração a ser o único a vir de tão longe.
A sala de audiências era sem janelas e
as paredes eram forradas de madeira clara, pelo que a meia-dúzia de magistrados
de negro contrastava ali como um bando de corvos num milheiral. Corteses, frios
e atentos quiseram saber a minha relação com a arguida, há quanto tempo a
conhecia, o que pensava de tudo aquilo, se achava que o acto em julgamento fora
premeditado ou não... Respondi com o meu ar mais sensato, pausado, entre o
profissional e o humanitário:
Sim, conhecia a arguida há mais de
vinte anos, trabalhara amiúde com ela, era uma profissional cuidadosa, diligente,
sensata; tínhamo-nos tornado amigos no decorrer disso tudo. Não, não sabia da
história daquela paixão nem conhecia o senhor que fora o motivo próximo de
tudo. Quanto à premeditação... claro que não, senhores doutores juízes, aquilo
fora um momento puramente passional, daqueles em que uma pessoa vê tudo
vermelho e quando se deu conta já espetou a faca no meio das costelas do filho
da..., quero dizer, da vítima. E fazendo um gesto de mãos discreto e inclusivo
afirmei para os autos com a sinceridade à flor da pele:
“Todos temos um limite e quando esse
limite é excedido pelas condições a que nos sujeitam, todos nós reagimos como
seres humanos feridos, não importa se somos médicos, engenheiros ou juízes...”
Margarida saiu de tudo aquilo como de
um conto de fadas com um final feliz: pena suspensa por um ano, nada dos seus
erros ficaria registado em lado nenhum (inclusive no seu perfil profissional)
se não reincidisse durante o período de vigência da sentença. E é claro que ela
não reincidiu: uma paixão tão incendiária não surge assim por dá cá aquela
palha, durante longo tempo o terreno vai ficar coberto de cinza fria. E, depois,
ao preço a que está o álcool etílico a 90 graus, os fósforos, as acendalhas...

“Sabe, Pedro, queria que soubesse que o
meu luto está concluído: foi dos lutos mais bem resolvidos da minha vida! Não
ficou ódio nem rancor, apenas uma aprendizagem e boas memórias de quem esteve
comigo, inclusive das colegas dos três dias em Tires... Coitadas, algumas delas
provavelmente ainda por lá penam...”
Fiquei a vê-la entrar na carruagem.
Depois ela virou-se e, notando que eu ainda me conservava no cais, ergueu a mão
e um sorriso num perfeito adeus.
© Primeira fotografia (de cima para baixo): Pedro Serrano, Grécia, 2014.
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