13 fevereiro 2015

VOU-TE CONTAR: 68. O BROCHE E O SEU CONTEXTO

Não quer dizer que não aparecessem de vez em quando a visitar o irmão que morava no Porto, mas o mais frequente era sermos nós a ir lá, a Viseu e aos arredores de Viseu onde elas moravam que, para a maioria, a diáspora foi de raio curto.
Agora, as cinco ao mesmo tempo no Porto, na escadaria recente da casa do meu pai e todas de broche ao peito? Aquilo foi um acontecimento qualquer, o que seria? A própria inauguração da casa; o casamento da minha irmã mais velha; um aniversário em números redondos do meu pai? Sei lá, falta uma data no verso da fotografia, o meu pai às vezes identificava lugares e datas... Só ali não está a minha tia Ilda, mas essa estava em Angola, no Lobito – tinha bom pretexto para faltar à chamada – o que quer dizer que aquilo é pré 1974, antes da debandada.... e foto a preto e branco condiz com esses dias.
De resto, estão as outras cinco: de cima para baixo e da esquerda para a direita Clara, Amélia Céu; Celeste e Otília na primeira fila. A minha tia Céu (em último plano, encostada à parede) era a mais velha, foi uma espécie de mãe para o meu pai, tomou conta dele que era órfão como ela, estava sempre atenta e entregava-lhe umas notas amarfanhadas quando o sentia mais apertado com as despesas dos estudos, o meu pai tinha uma enorme admiração e afeição por ela; nós também, porque víamos que era assim e não tínhamos nada que indicasse o contrário.
Por baixo dela, de óculos fumados, está a tia Otília, a tia de bigode como é próprio de uma tia solteirona. Mantinha o buço rapado curto, picante, e deixou-nos tudo quando morreu, ainda andamos a dividir cadeiras de palhinha, louças e cobertores de papa em lotes de cinco; a casa dela vai agora à praça, a parede da sala onde passávamos a passagem de ano tem uma brecha com vista para as silvas do quintal. A mais bem-humorada, embora não se note, é a de olhar arregalado, no meio da segunda fila, a minha tia Amelinha, uma brincalhona gozona, e uma alma doce; casada com um homem também doce e que percebia imenso de alambiques; não tiveram filhos, deixaram pinheirais e matas como quem deixa esquecido um monte de lenços de assoar.
E de tias daquele lado – paterno – estaria tudo, não fora o meu tio Zé, que o outro tio homem que restava seguiu a igreja e, que a gente saiba, não teve filhos das muitas freiras que a gente via esvoaçar em torno dele. O tio Zé partiu ainda adolescente para o Brasil, nunca mais ninguém o viu, nunca escreveu uma linha para Portugal, como é possível desligar assim? Suponho que terá pisado o convés aborrecido, nunca soube com o quê, ninguém falava nisso, havia quem dissesse que o tinham envenenado com assuntos de partilhas e heranças. O meu pai, a quem a ausência fazia mossa, não desistiu de o procurar, mantinha em permanência contactos acesos nos consulados, sempre que alguém dos seus conhecimentos ia ao Brasil encomendava informações como se o Brasil fosse assim a aldeia onde todos tinham nascido. E o que é certo é que um dia teve sorte, recordo a excitação, e não tardou um fósforo que não se pusesse a caminho com a minha mãe, levantaram voo assim que tiveram a certeza que não seriam mal recebidos, que a visita não era indesejada: o meu tio Zé deixara-se descobrir, morava em São Paulo, tinha casado, também não era pai de filhos.
Os meus pais regressaram contentes do Brasil, a minha mãe muito impressionada com as adivinhações e premonições que se praticavam em casa deles, o meu pai impressionado com a mulher dele, uma mulata – como a da canção - chamada Leonor, requintada, professora na faculdade de letras. E assim se fez a minha sexta tia paterna, na foto a cores com a minha mãe e o tio que nunca vi em carne e osso, uma tia mais dada a emoldurar-se com colares do que com broches; talvez a coisa tenha a ver com os descobrimentos e o clima.



© Fotografias; de cima para baixo: (1) Porto, data e fotógrafo desconhecidos, (2) São Paulo, Brasil, fotografia de Eduardo Serrano, 1972.

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