Quem parece estar mais apetrechada
para, a qualquer momento, levantar voo e desaparecer por entre as nuvens de
estúdio que fazem o fundo do retrato é a minha avó Zaida, propulsionada pelo
seu laçarote, imenso como uma hélice, e estabilizada na rota pelas duas
pequenas ventoinhas penduradas ao pescoço. Mas, de momento, as três senhoras
estão imóveis e o silêncio palpita na fotografia, instantâneo que, a julgar
pelas texturas, idades e parentesco de quem ali posa, deve ter sido tirado ainda
no século XIX, embora já nos anos de mil oitocentos e noventa e muitos, nas
redondezas da última epidemia de peste no Porto, praga que estarreceu a cidade nos
idos de 1899. Para onde terá o fotógrafo aconselhado que olhassem, já que
nenhuma fixa a objectiva ou um horizonte comum?
A dama do centro, a de peito canoro e
bem estofado, é a minha bisavó materna, Emília,Figueirinhas por matrimónio, e
a minha tia-avó, Fernanda, apoia-se nela com a moleza de um marinheiro a um
mastro. Aquele olhar – de sobrolho um pouco levantado, com ecos de pio de
coruja – manteve-o pela vida fora, recordo-o bem, e se aqui lhe dá um ar levemente
misterioso, de facto pouco o era e na família próxima sugeria-se a sua pouca
sagacidade na narrativa dos deslizes compatíveis a quem não se apercebia com
grande acuidade do mundo em que se movia. Dela se contava uma história em que
contracenava também o dono de um talho perto da casa dela, um sujeito bronco e
intratável conhecido à boca pequena pelo “Caraças”. Pois a minha tia Fernanda,
um dia em que a criada não o pôde, foi comprar carne e o tempo todo que esteve
ao balcão a encomendar tratou repetidamente o açougueiro por “e queria também
que me embrulhasse meia-dúzia de fêveras Sr. Caraças, das do cachaço” não se
apercebendo do riso dos outros clientes nem do fumegar do homem! Em casa, a
minha tia controlava os acontecimentos como só uma mulher sem filhos e com uma imaginação
monolítica o consegue fazer e, dizia a minha mordaz mãe, que o meu tio
Domingos, o definhante cônjuge, jazia tão à míngua de confortos gastronómicos
que se refugiava no açúcar do xarope da tosse como consolo de sobremesa. Sim,
lembro-me dele a tossicar ao canto das salas, a esfregar as mãos e sempre
pronto para se levantar e seguir a minha tia no final das visitas.
“Domingos, veste o sobretudo e traz-me
o casaco...”, dizia ela levantando o sobrolho em sua intenção.
Já a adolescente, delicada e de traços
finos, do laçarote viria a ter outro tipo de paixões. A minha avó Zaida tinha
absoluto terror à água canalizada, que achava tão perigosa de ingerir como se
fosse um veneno patenteado, pavor que provavelmente lhe vinha dos tempos
pré-clorados em que a água transmitia perigosas doenças, como a cólera ou a
febre tifoide. Se estivesse por perto nunca nos deixava beber água e, se
forçada a admitir que estávamos demasiado esbaforidos, só da morna, da aquecida,
e depois de passada no filtro de porcelana que existia na copa. Ah, o mundo,
que lugar tão perigoso, assombrando a paz doméstica com bactérias invisíveis e
coristas rechonchudas...
Quem diria, olhando apenas...? Duas rapariguinhas de olhares tão sonhadores, tão desprendidos, nelas podiam pousar as aves na segurança de quem dormita em mármores... E, ao centro, a minha bisavó naquele olhar alçado, entre o rendido e o revelado, de quem vê passar arcanjos.
Quem diria, olhando apenas...? Duas rapariguinhas de olhares tão sonhadores, tão desprendidos, nelas podiam pousar as aves na segurança de quem dormita em mármores... E, ao centro, a minha bisavó naquele olhar alçado, entre o rendido e o revelado, de quem vê passar arcanjos.
© Fotografia: Foto Artística, Rua do Coronel Pacheco, Porto.
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