Acordei, passava das onze da manhã, sob um vozeio
que se cruzava sobre o meu saco-cama como o chilreio de pardais ao entardecer.
Por a casa já estar com a lotação esgotada, eu e o Rui ficámos a dormir na sala
de estar e agora esta volta a cumprir a sua função primordial. O Rui conversa
com o David (o nosso benfeitor, grego de nacionalidade) e com duas irmãs
austríacas que também dormiram cá. Na conversa, a que me junto logo que me
enfiam uma caneca de chá nas unhas, toma parte uma australiana chamada Teresa
Jezioranski que ontem jantava no templo e que também ficou a dormir em casa do
David.
Invade-nos uma sensação de conforto e bem-estar que
se prolongou pelo resto da manhã, passada no pátio ao fim das escadas, onde, em
cuecas, lavei a nossa roupa suja acumulada. Sentado numa poça de sol ao meu
lado o Rui confecciona, usando pedaços de tecido cru, um bolso interior nas
nossas jeans. Este bolso secreto é cosido na parte interior e fronteira do cós
das calças e destina-se a aconchegar itens importantes como dinheiro e
passaportes, um documento muito almejado para falsificação e venda. No Caminho dos hippies, como é conhecida a
rota que vamos seguir e que, tradicionalmente, se inicia em Istambul, os bolsos
são lugares pouco seguros, assim como o é, por exemplo, o esconderijo clássico
de guardar pertences valiosos no fundo do saco-cama quando nos enfiamos nele
para dormir: por estas paragens, as navalhas são afiadas e silenciosas, e leves
as mãos alheias. Tudo isto vamos aprendendo uns com os outros e na leitura do
excelente Overland to India, um guia
de viagem pouco convencional e que se tornou o meu livro de cabeceira.
Agora o Rui sacode as almofadas e desimpede o
quarto onde dormimos, para que se pareça uma sala outra vez, e, no exterior da
casa, o David arruma e varre a varanda. Uma saborosa manhã de trabalhos
caseiros que termina com um banho em que nos mangueirámos um ao outro como se
lavássemos automóveis e uns jactos malandros atingem David lá em cima, no
varandim, que solta um “ei!” divertido em todo semelhante ao que berraria um
português em semelhante surpresa aquática.
Antes de regressar a casa, passámos a despedir-nos do nosso cafezinho com vista para o templo de Hefesto, aquele onde escrevemos tantos postais e aerogramas para Portugal. O empregado lembra-se de nós.
Hoje, durante a barrela da manhã, o Rui cortou-me o
cabelo, curto, em estilo tijela, no molde do corte que usa actualmente o John
Mc.Laughlin[1].
A coisa fez tanto sucesso que os seus novos dotes de cabeleireiro foram
requisitados pela loura cabeça da Teresa, pois a australiana exige um corte
igual ao meu.
Antes de me deitar, consultei o I Ching, perguntando-me intimamente ao
chocalhar as moedas na mão fechada, as pálpebras concentradas, como nos
correria a viagem dali para a frente, se os ventos nos seriam de feição.
Saiu o Hexagrama 4, Mêng (Youthful Folly), ou seja: A
Inexperiência, a Loucura Juvenil.
Olha a surpresa!
[1] Guitarrista inglês que, no final dos anos 60, integrou o grupo de Miles
Davis. Em 1971, convertido ao hinduísmo e tendo adoptado o nome de Mahavishnu
John Mc.Laughlin, formou a Mahavishnu Orchestra e, em 1973, juntamente com o
também convertido Devadip Carlos Santana, gravou o devoto álbum Love, Devotion and Surrender. Mais
recentemente gravou e fez digressões com músicos indianos como Hari Prasad
Chaurasia, Shiv Kumar Sharma, Zakir Hussain e U. Srinivas.
© Fotografia de Pedro Serrano, Acrópole, Grécia, 2014.
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