Agora
funciona lá a Universidade, mas, no primeiro ano da década de 70, era o liceu
quem ocupava aquelas paredes, que beneficiava do claustro e da fonte ornamental.
Fiz lá as provas finais de três disciplinas – Desenho, Filosofia, Físico-Químicas
– na segunda época, isto é Setembro, do então exame de sétimo ano.
Nesses
dias havia um exame final à saída do liceu e, imediatamente depois, outro para
ingresso na Universidade. Os exames de sétimo ano faziam-se às cinco
disciplinas principais e eu chumbei a três delas na primeira época.
Inimaginável que pudesse ultrapassar o falhanço ainda esse ano e a tempo de
entrar em Medicina, ainda por cima quando só se podiam repetir simultaneamente
duas disciplinas; para a terceira era preciso requerer uma autorização especial
a uma qualquer Direcção-geral do Ministério da Educação, seria também necessário
que um liceu nos aceitasse em candidatura autónoma... E repetir a coisa no meu
liceu de sempre (o D. Manuel II, hoje em dia regressado à designação original
de Rodrigues de Freitas) era impensável, entre outros senãos menos
administrativos porque me pegara com a professora de Filosofia durante a prova.
A examinadora era uma solteirona rosnante, de mentalidade disciplinar, e não
conseguira ainda sobrevoar dos enquadramentos da lógica socrática, encarando
toda a filosofia do século dezoito em diante – a que mais me atraía – com
mal-disfarçado desdém. Assim, quando, em plena prova, me ordenou:
“Olha
pela janela e diz-me o que vês...”; eu respondi:
“Vejo
o céu azul e uma árvore...”; e ela contrapôs:
“E
como tens a certeza que é uma árvore?”
“Porque
a estou a ver...”
E
por aí fora, até ao caldo estar completamente entornado; ela numa de silogismos
e eu numa existencial. A coisa acabou mal com ela a chumbar-me e a anunciar que,
se dependesse dela eu nunca terminaria Filosofia naquele liceu ou em liceu do
Porto e arredores. Acresce que naquele liceu, naquele ano, havia duas
professoras de Filosofia escaladas para exames: a outra era irmã dela, uma
solteirona tirada a papiro químico...
De
algum modo, a que desconheço detalhes, o meu pai conseguiu-me o deferimento da
tal autorização para fazer três cadeiras em Setembro e o liceu de Évora
aceitou-me como aluno externo para repetir os exames em falta. Assim, num dia
de calor abrasador do princípio de Setembro, eu, ele e a minha mãe rumámos a
sul. O meu pai voltou para cima logo no final do fim-de-semana, mas a minha mãe
ficou comigo, a fazer-me companhia e a vigiar os meus progressos nos estudos,
que eu não era de total confiança, como já se tinha visto.
Ficámos
instalados na Pensão Residencial Policarpo, em pleno centro, não muito longe da
Praça do Giraldo, não muito longe do liceu; cada um no seu quarto e em regime
de pensão completa.
Por
energias interiores a que ignoro a génese todo aquele enquadramento quase
monástico me estimulou e passei as três semanas que vivemos em Évora a estudar
como um cão, ainda no outro dia encontrei num armário atacado pelo bolor e pela
melancolia os velhos livros desses tempos: um tratado de Filosofia desirmanado
pelo manuseio; um compêndio de Química sublinhado com esferográficas de cores
diferentes, como se fossem camadas geológicas de repetidas leituras, as margens
repletas de anotações alusivas às leis da termodinâmica e à Tabela Periódica de
Mendeleev.
Fazíamos
as nossas refeições na pensão, mas depois do almoço concediamo-nos um passeio
até ao centro, ao Café Arcada, um estabelecimento enorme e sombrio onde a minha
mãe e eu tomávamos café sob o olhar severo dos outros clientes, pois a minha
mãe – então com 43 anos – era a única mulher no local. As senhoras, na capital
do Alentejo, não frequentavam estabelecimentos públicos nesses dias, estavam
condenadas a espreitar das janelas como se já estivéssemos em Marrocos.
Bem,
aquelas tardes e noites de estudo, sentado na minha secretariazinha estreita da
pensão, cismando – como pausa entre capítulos – as tílias e os ciprestes que
avistava da janela, deram o seu resultado e fiz as três disciplinas sem grande
alarde e magníficas notas, tendo alcançado um 18 a Filosofia, única classificação
de que me lembro por ter sido assim uma espécie de estandarte vitorioso
espetado no cadáver simbólico da solteirona silogística do Porto.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Fotógrafo desconhecido, Évora 1970; (2) foto publicitária da Residencial Policarpo [net]; (3) Pedro Serrano, Évora 2015.
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