Espicaçados
por não ter onde ficar e, pesado argumento, pelos quase vinte quilos das
mochilas, batemos várias agências de viagens em busca de transporte para
Istambul. Descobrimos que a maneira mais vantajosa de o fazer (700 dracmas,
pouco mais de 3 euros, para aproximadamente 1.100 Km) é de autocarro. Na
quinta-feira, às sete da manhã, parte o próximo. Mas acontece que quinta-feira
é daqui a três dias e não conseguimos arranjar nada antes disso. Ficámos de
pensar e voltar.
Relativamente
mal comidos (as nossas refeições esgotam-se em gyros, uma sandes de pão pita
enrolado em cone e recheado com fatias de carne grelhada, tomate e cebola),
transpirados pelo calor abrasador de uma tarde enevoada e abafada, murchos pela
perspectiva de ter de ficar parados em Atenas, buscámos abrigo no Jardim
Nacional, onde já estivemos. Uma vez que não se pode abusar da relva
sentámo-nos numa alameda que ali há, em bancos de madeira e ferro forjado
plantados entre as colunas listradas de tijolos que suportam um grande e
verdejante caramanchão. Para ali estávamos a cismar na nossa baça sorte e o Rui
preparava-se para se aconselhar com uma consulta ao I Ching quando vi aproximar-se um par vestido com túnicas
cor-de-laranja, tentando vender prospectos Hare Krishna a quem passava. Embora
fossem ocidentais, como estavam vestidos daquele modo pensei que nos pudessem
dar algumas informações úteis sobre a Índia, ou sobre o caminho para lá, e fiz
um sinal à gaja. A expressão de algum frete mudou completamente quando viu o I Ching e o Zen pousados em cima das traves do assento do banco e soube que o
nosso destino era a Índia. Deu-nos uma direcção onde podíamos aparecer à noite
e, até, dormir, se precisássemos.
Como por
arranjo divino, poucos minutos após eles terem desaparecido, esvoaçantes como
açafrão, o céu revolveu-se e por entre trovões despejou sobre a terra uma chuva
que logo se enrijeceu em granizo. Foi lindo ver a dança do granizo sobre a
relva, sobretudo agora que tínhamos onde nos abrigar, pois, vista de outro
ângulo, aquela súbita tempestade do último dia do Verão queimara as nossas possibilidades
de dormir ao ar livre. Mas Krishna viera até nós momentos antes!
Embora vindo
até nós, Krishna não nos facilitou a tarefa: o resto da tarde consumiu-se numa
chuva miudinha e as mochilas molhadas pesavam nas nossas costas como o rochedo
de Sísifo. E, depois, ninguém conhecia Nikiforou Foka, a rua a cujo número 38
deveríamos ir bater, e nós, abandonados aos dizeres indecifráveis do alfabeto
grego, não íamos lá só por olhar as placas toponímicas. Até que, na meta do
desânimo, um indiano nos respondeu, num esganiçado excitado:– O templo Hare Krishna? Eu moro lá!
Seguindo-o
por pátios crivados de poças de água e escadarias de madeira apodrecidas fomos
dar às traseiras de uma casa decrépita, onde escalámos do logradouro para o
primeiro andar agarrando-nos ao corrimão oscilante de uns degraus de madeira
que pareciam ter sido construídos para servir umas obras e ali ter sido
esquecidos. Ao cimo havia um varandim com balaústres para onde davam duas ou
três portas e várias janelas antiquadas, de guilhotina.
O par de
hoje à tarde, agora à civil, recebeu-nos com um sorriso que nos fez sentir
desejados e introduziu-nos em duas salas contíguas de paredes mal pintadas e
chão de tábuas, nu e escarolado. Na primeira das salas estava, sentada pelo
chão, uma dúzia de pessoas e a nossa chegada interceptara uma qualquer
cerimónia religiosa.
Um tipo, em
posição de lótus, estava sentado defronte do grupo e lia excertos de textos
sagrados hindus em inglês; ao que a assembleia correspondia com a entoação de
um hino. Sentado na última fila sobre uma esteira vou observando o que se passa
e olhando as imagens coladas na parede, quase todas representando o deus azul,
de ar amistoso, ora tocando a inseparável flauta, ora em companhia da sua vaca
ora, guloso e criança, rapando manteiga de um pote. Há na assistência alguns
indianos, mas a maioria das pessoas são ocidentais, incluindo o padre (vou
passar a chamar-lhe assim, pois era como se lhe referiam os presentes quando
não o designavam pelo nome de baptismo).
No final das
preces mudámo-nos para a outra sala, onde foi servido o jantar. Dispunhamo-nos
sentados em círculo e, como prato, foi colocada à nossa frente uma folha de
estanho; como talheres, um garfo e um copo. A comida, vegetariana, é estranha
e, do que reconheço, há ali uvas e queijo misturado. Soube-me pela vida, com a
fome que trazia e após o regime intensivo à base de gyros. Outra coisa que, surpreendentemente, me soube bem foi comer
à mão. Comecei com garfo, mas como toda a gente metia a comida à boca usando as
mãos acabei, por imitação dos pormenores, fazer o mesmo: moldada em bico, a mão desce sobre os
alimentos como se fosse uma grua e pinça um pedaço, que mete à boca; o que vai
ficando no prato é rearrumado e aproximado de modo a facilitar a próxima
garfada (neste caso: dedada). Todos estes gestos são praticados com gentileza,
usando unicamente a mão direita, e no final, ao contrário do que seria levado a
concluir, a mão está em estado razoavelmente limpo, para que venha a ficar
impecável com uma última lambidela da extremidade dos dedos e uma secagem com o
pedaço de papel higiénico que nos serve de guardanapo.
Depois do
jantar alguns dos convivas foram-se despedindo, saindo. Ficámos a perceber que
três ou quatro deles moram neste edifício, no mesmo varandim e na porta ao
lado. Como seria de esperar, o padre, que nos estivera a observar atentamente
desde que chegámos, aproveitou a acalmia para conversar connosco. É americano,
deve ter os seus trinta e tal anos e não aparentou problema algum em nos
resumir a sua vida: antes de se converter tinha sido hippie e fumado ópio nas rotas da Índia; esteve preso na Jugoslávia
e andou perdido em Nova York até se encontrar graças a Krishna.
A
hospitalidade continuou-se com um convite para passarmos ao sono, pois ele deve
levantar-se às seis da manhã. Ficámos todos a dormir na sala de orações, nós
dentro dos sacos-cama, ele e um outro dos convidados sobre panos, finos como
uma folha de papel. A última coisa de que me lembro, antes de me apagar e após
me conseguir adaptar o melhor que soube à inflexibilidade das pranchas de
madeira do soalho, é da ladainha monótona da voz dele rezando aos deuses.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pireus (Grécia); (2) Atenas (Grécia), 2014.
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