09 abril 2015

NÃO VENHAS TARDE: 9. A VISITA DE KRISHNA

Espicaçados por não ter onde ficar e, pesado argumento, pelos quase vinte quilos das mochilas, batemos várias agências de viagens em busca de transporte para Istambul. Descobrimos que a maneira mais vantajosa de o fazer (700 dracmas, pouco mais de 3 euros, para aproximadamente 1.100 Km) é de autocarro. Na quinta-feira, às sete da manhã, parte o próximo. Mas acontece que quinta-feira é daqui a três dias e não conseguimos arranjar nada antes disso. Ficámos de pensar e voltar.
Relativamente mal comidos (as nossas refeições esgotam-se em gyros, uma sandes de pão pita enrolado em cone e recheado com fatias de carne grelhada, tomate e cebola), transpirados pelo calor abrasador de uma tarde enevoada e abafada, murchos pela perspectiva de ter de ficar parados em Atenas, buscámos abrigo no Jardim Nacional, onde já estivemos. Uma vez que não se pode abusar da relva sentámo-nos numa alameda que ali há, em bancos de madeira e ferro forjado plantados entre as colunas listradas de tijolos que suportam um grande e verdejante caramanchão. Para ali estávamos a cismar na nossa baça sorte e o Rui preparava-se para se aconselhar com uma consulta ao I Ching quando vi aproximar-se um par vestido com túnicas cor-de-laranja, tentando vender prospectos Hare Krishna a quem passava. Embora fossem ocidentais, como estavam vestidos daquele modo pensei que nos pudessem dar algumas informações úteis sobre a Índia, ou sobre o caminho para lá, e fiz um sinal à gaja. A expressão de algum frete mudou completamente quando viu o I Ching e o Zen pousados em cima das traves do assento do banco e soube que o nosso destino era a Índia. Deu-nos uma direcção onde podíamos aparecer à noite e, até, dormir, se precisássemos.
Como por arranjo divino, poucos minutos após eles terem desaparecido, esvoaçantes como açafrão, o céu revolveu-se e por entre trovões despejou sobre a terra uma chuva que logo se enrijeceu em granizo. Foi lindo ver a dança do granizo sobre a relva, sobretudo agora que tínhamos onde nos abrigar, pois, vista de outro ângulo, aquela súbita tempestade do último dia do Verão queimara as nossas possibilidades de dormir ao ar livre. Mas Krishna viera até nós momentos antes! 
Embora vindo até nós, Krishna não nos facilitou a tarefa: o resto da tarde consumiu-se numa chuva miudinha e as mochilas molhadas pesavam nas nossas costas como o rochedo de Sísifo. E, depois, ninguém conhecia Nikiforou Foka, a rua a cujo número 38 deveríamos ir bater, e nós, abandonados aos dizeres indecifráveis do alfabeto grego, não íamos lá só por olhar as placas toponímicas. Até que, na meta do desânimo, um indiano nos respondeu, num esganiçado excitado:      O templo Hare Krishna? Eu moro lá!

Seguindo-o por pátios crivados de poças de água e escadarias de madeira apodrecidas fomos dar às traseiras de uma casa decrépita, onde escalámos do logradouro para o primeiro andar agarrando-nos ao corrimão oscilante de uns degraus de madeira que pareciam ter sido construídos para servir umas obras e ali ter sido esquecidos. Ao cimo havia um varandim com balaústres para onde davam duas ou três portas e várias janelas antiquadas, de guilhotina.
O par de hoje à tarde, agora à civil, recebeu-nos com um sorriso que nos fez sentir desejados e introduziu-nos em duas salas contíguas de paredes mal pintadas e chão de tábuas, nu e escarolado. Na primeira das salas estava, sentada pelo chão, uma dúzia de pessoas e a nossa chegada interceptara uma qualquer cerimónia religiosa.
Um tipo, em posição de lótus, estava sentado defronte do grupo e lia excertos de textos sagrados hindus em inglês; ao que a assembleia correspondia com a entoação de um hino. Sentado na última fila sobre uma esteira vou observando o que se passa e olhando as imagens coladas na parede, quase todas representando o deus azul, de ar amistoso, ora tocando a inseparável flauta, ora em companhia da sua vaca ora, guloso e criança, rapando manteiga de um pote. Há na assistência alguns indianos, mas a maioria das pessoas são ocidentais, incluindo o padre (vou passar a chamar-lhe assim, pois era como se lhe referiam os presentes quando não o designavam pelo nome de baptismo).
No final das preces mudámo-nos para a outra sala, onde foi servido o jantar. Dispunhamo-nos sentados em círculo e, como prato, foi colocada à nossa frente uma folha de estanho; como talheres, um garfo e um copo. A comida, vegetariana, é estranha e, do que reconheço, há ali uvas e queijo misturado. Soube-me pela vida, com a fome que trazia e após o regime intensivo à base de gyros. Outra coisa que, surpreendentemente, me soube bem foi comer à mão. Comecei com garfo, mas como toda a gente metia a comida à boca usando as mãos acabei, por imitação dos pormenores, fazer o mesmo:  moldada em bico, a mão desce sobre os alimentos como se fosse uma grua e pinça um pedaço, que mete à boca; o que vai ficando no prato é rearrumado e aproximado de modo a facilitar a próxima garfada (neste caso: dedada). Todos estes gestos são praticados com gentileza, usando unicamente a mão direita, e no final, ao contrário do que seria levado a concluir, a mão está em estado razoavelmente limpo, para que venha a ficar impecável com uma última lambidela da extremidade dos dedos e uma secagem com o pedaço de papel higiénico que nos serve de guardanapo.
Depois do jantar alguns dos convivas foram-se despedindo, saindo. Ficámos a perceber que três ou quatro deles moram neste edifício, no mesmo varandim e na porta ao lado. Como seria de esperar, o padre, que nos estivera a observar atentamente desde que chegámos, aproveitou a acalmia para conversar connosco. É americano, deve ter os seus trinta e tal anos e não aparentou problema algum em nos resumir a sua vida: antes de se converter tinha sido hippie e fumado ópio nas rotas da Índia; esteve preso na Jugoslávia e andou perdido em Nova York até se encontrar graças a Krishna.

A hospitalidade continuou-se com um convite para passarmos ao sono, pois ele deve levantar-se às seis da manhã. Ficámos todos a dormir na sala de orações, nós dentro dos sacos-cama, ele e um outro dos convidados sobre panos, finos como uma folha de papel. A última coisa de que me lembro, antes de me apagar e após me conseguir adaptar o melhor que soube à inflexibilidade das pranchas de madeira do soalho, é da ladainha monótona da voz dele rezando aos deuses.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pireus (Grécia); (2) Atenas (Grécia), 2014.

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