21 de Setembro
O padre
acordou-nos às sete da manhã. Já o sentia cirandar por ali, mas mantive-me imóvel
e de olhos fechados, a ver se escapava, agora
que, depois de uma noite às voltas em busca de uma posição impossível naquele
chão duro, o meu corpo tinha atingido uma certa anestesia adaptativa e se
sentia embalado o suficiente para dormir até ao meio-dia.
Uma
meia-hora mais tarde saímos para a rua na sequência da recusa delicada em tomar
parte na oração matinal e em integrar o grupo que vai, por essa cidade fora,
evangelizar os atenienses a distribuir prospectos. Mas será que toda a gente
não tem mais que fazer do que se entreter a brincar às igrejas?! Em Portugal,
um ano antes, eu e o Rui, por tédio e por curiosidade, deixáramo-nos, uma
noite, arrastar do Piolho até à
moradia de uns colegas (todos médicos ou em vias de o ser em breve) ali para a
Avenida da Boavista. O serão consistia em juntar montinhos de papel,
reproduzidos em stencil, e agrafar os comunicados resultantes para um grupo
maoísta e, como música de fundo, o gira-discos entoava cânticos da Revolução
Mexicana (qual delas já não recordo). Como tudo estava a sair ainda mais chato
do que a modorra no Piolho e tendo eu
apercebido o L.A.Woman[1]
na pilha de discos, resolvi pôr a rodar o “Love Her Madly”, que é a animada
segunda canção do lado A do vinil. O que eu fui fazer! O agrafador-chefe
interrompeu o seu ritmo de agrafagem – cadência, pelos vistos, inspirada no
esgravatar das enxadas do campesinato mexicano – calou os Doors sem piedade e
fez-nos logo ali uma prédica sobre os efeitos alienantes da música americana
que não fosse a do Pete Seeger ou, vá lá, a do Bob Dylan pré-1965, antes de
este perpetrar o pecado de electrificação das guitarras. Depois, ainda ao leme
do dirigente, o sujeito quis organizar as brigadas de distribuição dos
panfletos para o dia seguinte. Educados, como éramos, ainda nos oferecemos para
levar alguns para a Faculdade e deixá-los por lá sobre os balcões do vestiário,
pois tínhamos aulas a que tencionávamos assistir na manhã seguinte... Pior a
emenda do que o soneto: o revolucionário-mor, dono da casa e do gira-discos,
ficou assanhado, invectivou-nos a ir distribuir a papelada para as ruas da
baixa do Porto! Quando lhe respondemos “vai tu” convidou-nos a deixar as instalações.
Ora bem,
penso que o padre teve uma reacção semelhante, não que nos pusesse a andar dali
para fora, mas proibiu-nos de deixar as mochilas na casa durante o dia, como se
elas atrapalhassem grande coisa um apartamento vazio! Assim, aqui estamos outra
vez de mochilas às costas, eu ainda a mancar das bolhas, pois as botas com
tacão, isoladas da atmosfera por um fecho-éclair até ao joelho, não favorecem
uma cicatrização rápida.
Voltámos à
agência de viagens e conseguimos comprar bilhetes para Istambul por 600
dracmas, cada! Em seguida passámos pela embaixada de Portugal a despachar parte
dos nossos haveres para casa, pois urge que nos tornemos mais leves.
Obtivemos grande melhoria livrando-nos
de todos os livros (com excepção de um dos I
Ching) e aproveitámos a estadia em território nacional para fazer umas
abluções mais profundas no magnífico quarto-de-banho para funcionários que eles
tinham.
A meio da
tarde, despedimo-nos dos bancos do National
Gardens e decidimos ir reconhecer o local de onde partem as camionetas para
a Turquia, sentando-nos a descansar as mochilas num banco público em frente. Ao
nosso lado acabou por se sentar um tipo louro com o qual metemos conversa, pois
há nele um ar de viajante. É americano, mas detestava de tal maneira viver por
lá que não só deixou o país como também o nome com que os pais o registaram:
agora chama-se Rijath Rubio, sendo o Rubio
uma referencia à cor do cabelo, e há quatro anos que deambula entre a
Turquia, a Espanha e a Grécia. Andou cinco meses pela Índia, diz que é
excelente altura para ir até lá pois as monções estão na fase descendente, e
deu-nos a morada em Nova Deli de uns amigos dele que podemos ir procurar.
Ao fim da
tarde atingimos o patamar do Hare Krishna Temple derreados de tanto calcorrear
a cidade e, quando soube que comprámos bilhetes para o milhar de quilómetros
seguinte, o padre tentou dissuadir-nos de partirmos já para a Índia.
Convidou-nos a ficar a viver no templo, onde teríamos tudo grátis e,
simultaneamente, faríamos a nossa aprendizagem de noviços. Em Fevereiro,
partiríamos então todos para a Índia onde integraríamos o ashram[2]
a que pertence. Recusámos, polidamente. Não nos apetece estar tanto tempo à
espera de seguir em frente e, mais do que isso, não nos agrada a ideia de
ficarmos às ordens de alguém que, como mestre, nos parece deixar muito a
desejar.
Outra vez
grande variedade de gente ao jantar, excelente como ontem. Quase no final da
refeição, na presença de todos, o padre repreendeu Jenny (a rapariga que
conhecemos no parque e que, embora grega, se apresenta como canadiana, pois
anda fugida à polícia local) por ela, afirma o nosso anfitrião repetidamente,
se estar a tornar o centro das atenções. Ao fim de dois ou três apertos na
falha narcísica Jenny saiu da sala e, logo de seguida, ouvimo-la chorar
convulsivamente no quarto ao lado. Criou-se um silêncio constrangido e um dos
convivas tentou levantar-se com o fito de ir consolar a lacrimosa fugitiva.
Porém, o padre não o permite e discorre sobre o sentimentalismo como sendo a
fuga habitual de gente que não sabe nem o que quer nem o que faz. Não deixa de
ter razão, mas a dureza da prédica criou um ambiente de cortar à faca e acabou
por gerar uma discussão com o padre, pois houve mais quem se sentisse tocado
pela argumentação. As pessoas vão saindo, e agora o padre está para ali sentado
a um canto, com ar ensimesmado. Quando ficámos praticamente só nós pergunto-lhe
se podemos ficar a dormir no templo mais esta noite. Diz que não, a não ser que
fiquemos para sempre.
– Não, obrigado;
amanhã nunca se sabe[3]
– respondi, interiormente realizado por poder usar, inteiriço, o título de uma
música para dar a resposta; ainda por cima de uma canção de travo
místico-existencial.
Preparámos a saída para a noite escura, mas, na
despedida, vendo o ar amargurado que transparece na expressão do nosso
ex-senhorio, ainda acrescentámos que compreendemos a decisão dele e não lha
levamos a mal. O homem suspirou, confessou que se sentia muito cansado e que
lamentava ter sido tão duro com a Jenny, que estava apenas no dealbar do seu
caminho espiritual.
Começávamos a descer as escadas quando uma das
portas que existem no varandim do templo se abriu e eis David, um dos tipo que
costuma ir jantar ao Hare Krishna Temple, a convidar-nos para ficarmos em casa
dele. A nossa alegria é imensa: uma porta que se fecha e, sem transição, outra
que se nos abre!
E assim ficámos a dormir paredes-meias com o Hare
Krishna Temple, no qual, especulo, o grosso do movimento de fiéis poderá
resultar de ali se jantar bem e grátis, e onde esta noite houve uma rotura
provocada por alguém que tenta arrastar o mundo atrás de si, mas sem grande
estofo ou carisma para o vir a conseguir. Pobre padre, é um homem só e temo
pelo seu futuro neste ramo de actividade.
[1] L.A.Woman,
Doors, 1971, Elektra/Asylum Records.
[3] “Tomorrow Never Knows” (Lennon-McCartney), álbum Revolver, 1966, EMI
Records.
Imagens, de cima para baixo: (1) © Fotografia de Pedro Serrano, Kyoto (Japão), 2006; (2) Cartaz de propaganda maoísta; (3) © Fotografia de Pedro Serrano, Paul, Santo Antão (Cabo Verde), 2013.
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